Vale tudo

Imprensa e políticos distorcem conceitos em época eleitoral

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20 de junho de 2002, 13h30

É preciso ter muita paciência em época de eleições presidenciais no Brasil. Tudo pode acontecer de ruim: alta do dólar, queda da bolsa, aumento do “risco país”, desvalorização de títulos do governo e prejuízos para os poupadores em geral. A insegurança financeira e social atinge seus níveis máximos; o governo federal acaba demonstrando uma vulnerabilidade anteriormente não percebida pela população.

Além disso, a guerra entre os candidatos produz mortos e feridos de todos os lados. Reputações são irremediavelmente destruídas, com base em fatos verídicos ou não. A impressão que se tem é de que poucos são os que estão seriamente preocupados com o país; os candidatos, em sua grande maioria, pensam apenas em si próprios. Vale tudo no jogo eleitoral.

Ao mesmo tempo, para a cidadania, é da maior importância participar da escolha dos novos governantes. Os meios de comunicação são a única via para que o eleitorado conheça um pouco de cada candidato, a fim de escolher com base em propostas e programas que pareçam adequados ao progresso econômico e social do país. Por essa razão, tanto os políticos quanto a imprensa têm um papel fundamental na divulgação das propostas de governo. Freqüentemente, porém, ocorrem distorções que só atrasam os debates e dificultam a abordagem de questões importantes.

Para citar um exemplo, as recentes declarações de Ciro Gomes no programa de entrevistas do João Gordo, sobre a legalização da prática do aborto por necessidade da mulher, foram propositalmente mal interpretadas e distorcidas por alguns segmentos sociais e da imprensa. Ele não se disse a favor da prática do abortamento, mas apenas contra a proibição legal, o que é muito diferente.

Ciro adotou postura autêntica e corajosa ao dizer ser “errada” a proibição legal do aborto no Brasil. Em vésperas de eleição, candidatos não costumam assumir o que realmente pensam e procuram não tomar posição com relação a assuntos polêmicos para não desagradar parte do eleitorado. Ciro, porém, optou por dizer a coisa certa, ao invés de cultivar uma falsa imagem. Disse o que o Brasil precisa ouvir, há muito tempo, de um presidenciável: o abortamento é uma questão grave de saúde pública, que causa um grande número de vítimas e deixa muitas crianças órfãs de mãe.

Ao ser novamente inquirido pela Folha de São Paulo de 1º de junho de 2002, sobre sua opinião a respeito da proibição do aborto, Ciro ainda se explicou melhor: “evidentemente, qualquer pessoa que tenha o mínimo de razoabilidade sabe que isso é uma tragédia humana, que isso é a morte e a morte é o fim, agora acho que o aborto é um assunto da mulher, da família, que deve ser feito consultando suas convicções religiosas, num ambiente de cuidado com a saúde, de educação e que não é assunto para polícia nem para político”. Sua posição, portanto, está muito clara. Trata-se de uma preocupação com a situação de injustiça social em que vivemos.

Evidentemente, ninguém é favorável à prática do abortamento, mas a proibição legal só tem causado um elevado número de mortes de mulheres pobres, que não têm dinheiro para pagar uma clínica asséptica que realize a intervenção. As classes média e alta não encontram obstáculos diante de uma gravidez indesejada. São as mulheres pobres que pagam pela hipocrisia social.

Por outro lado, há momentos em que a distorção de conceitos parte do próprio candidato, que no afã de agradar determinada platéia acaba se metendo em uma enrascada. Foi o que aconteceu com o presidenciável José Serra, no Rio de Janeiro.

Durante a cerimônia de formalização da aliança entre PSDB, PFL e PMDB para a disputa do governo do Rio, Serra declarou que “O Rio de Janeiro tem uma importância política que o pessoal daqui não entende. Em São Paulo, o que acontece no Rio sempre é levado em altíssima conta, sempre é valorizado. São Paulo ainda é província, do ponto de vista político, em comparação ao Rio de Janeiro” (Folha, 1/6/2002).

Assim, para agradar alguns, desagradou muitos outros. O governador Geraldo Alkmin, chamado a se pronunciar sobre o assunto, foi obrigado a ponderar que Serra “só quis fazer um agrado e não foi feliz. São Paulo é a grande locomotiva que ajuda a impulsionar o desenvolvimento brasileiro. O Estado arrecada quase 50% do total que se arrecada no Brasil.” De fato, Serra é um candidato com potencial para dizer coisas muito mais relevantes e úteis.

A proposta dele de criação do “ministério da segurança pública” também é de curto alcance. Ninguém mais acredita que criação de ministério, seja de que nome for, vai resolver o problema da segurança. Além do que, já existe o Ministério da Justiça, que poderia, isso sim, funcionar melhor. Aprimorar as polícias, agilizar a aplicação da Justiça e sanear os presídios, afastando deles os funcionários corruptos, seria bastante recomendável para diminuir a criminalidade.

O Brasil está cheio de problemas e o momento atual deve ser aproveitado para que se discutam soluções sérias e corajosas. O período pré-eleitoral é importante demais para que tenhamos de perder tempo com distorções.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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