Sigilo bancário

Tendência é flexibilizar sigilo bancário para dificultar sonegação

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14 de junho de 2002, 18h28

O sigilo bancário tem sido alvo de inúmeras discussões em nosso país, especialmente a partir da Constituição de 1988 e da necessidade de uma reforma do sistema tributário nacional, de forma a torná-lo mais justo, onde a carga tributária deixe de ter o peso que tem sobre os ganhos dos assalariados e sobre a atividade produtiva.

Daí é que se fala muito em desonerar a produção, visando uma tributação de peso maior sobre o consumo. Diante desse quadro, é que surge a idéia de quebra de sigilo bancário, para efeito de fiscalização ou para investigação de lavagem de dinheiro, tráfico, etc.

O tema nasce, portanto, sob o manto de princípios éticos tributários. Indiscutivelmente, um grande começo. Nesse contexto, assume, portanto, relevo especial a questão da utilização de dados da contas correntes dos contribuintes para efeito de apuração de crédito tributário relativo a outros impostos, especialmente o imposto de renda, levando os mais brilhantes pensadores do direito a profundas reflexões, de forma a vislumbrar, na utilização de dados bancários, uma forma de invasão da intimidade, vedada pela Constituição Federal (art. 5º, inciso X).

O direito à intimidade constitui, sem dúvida, um dos mais sagrados do indivíduo, para o qual o legislador, os juristas, advogados e os juizes têm de voltar a sua atenção, buscando preservá-lo, como garantia da paz interior de cada pessoa. A honra, a imagem são direitos sagrados, de matriz constitucional que serão arranhados, sempre que violado o direito à intimidade.

No entanto, tal direito não é absoluto e há que ser sopesado, avaliado, em conjunto com outros direitos, alguns individuais, muito mais importantes, como o direito à vida, à liberdade e, com muito mais razão, os direitos coletivos, capazes mesmo de tornar efetivos os próprios direitos individuais. É o caso do direito à igualdade, de contorno individual, mas que só será efetivo se efetivos forem os direitos coletivos.

Assim é que, a igualdade jamais será atingida, se atingidos não forem os fundamentos da República, previstos no art. 1º, da Constituição Federal, consistente na cidadania, na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Comentando a matéria, diz Alexandre de Moraes: (1)

“Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º, da Constituição Federal não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal dos atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram os seus limites nos demais direitos consagrados pela Carta Magna (Princípio da Relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando um redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios) , sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com a sua finalidade precípua.

Apontando a relatividade dos direitos fundamentais, Quiroga Lavié afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem contudo desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.

A própria Declaração dos Direitos Humanos da Nações Unidas, expressamente, em seu art. 29, afirma que:

“toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício dos seus direitos e no desfrute de suas liberdades, todas as pessoas estarão sujeitas às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma ordem democrática. Estes direitos e liberdades não podem, em nenhum caso, serem exercidos em oposição com os propósitos e princípios das Nações Unidas. Nada na presente declaração poderá ser interpretado no sentido de conferir direito algum ao Estado, a um grupo ou uma pessoa para empreender e desenvolver atividades ou realizar atos tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nessa Declaração’.”

Diante disso, revela-se exagerada essa sensibilidade nacional, quando se fala em quebra de sigilo bancário. A sociedade é tomada por uma espécie de estresse coletivo. É um verdadeiro “Deus nos acuda”, parece que o holocausto está próximo, que a cidadania foi extirpada e a democracia está nos estertores.


Em parte, toda essa comoção resulta na luta obstinada dos grandes contribuintes, aqueles que vivem da sonegação, em especial, para pretenderem manter privilégios, sob a justificativa de que o Estado não fornece serviços adequados e que é lícito resistir ao pagamento dos tributos. Com isso, cria-se a cultura da sonegação, “moralmente” justificada, fruto de uma relação a ética entre o fisco e contribuinte.

Essa relação resulta da falta de respeito de certos administradores públicos para com os cidadãos, revelado-se, na atualidade, pela abusiva edição diária de medidas provisórias, usurpando a competência legislativa, criando situações mais vexatórias do que aquelas experimentadas na época da ditadura com os decretos-lei. O aumento da contribuição previdência dos servidores, pretendido em passado recente, e a resistência em atualizar as tabelas do imposto de renda pessoa física são exemplo disso. Há medidas provisórias que, em esbulho a princípios fundamentais, só perdem mesmo para os famigerados atos institucionais, de triste memória.

O que é lamentável é o fato de algumas mentes lúcidas do nosso país deixarem-se envolver por um “discurso humanitário”, de falsos princípios, para, ingenuamente, trabalharem em favor dos sonegadores.

Vale lembrar que todo e qualquer governante necessita de tributos para implementar as suas políticas públicas, optando sempre pela lei do menor esforço, isto é, buscando tributar justamente os seguimentos da sociedade com menor capacidade de resistência, como é o caso dos assalariados.

Não é por acaso, que se discute a elevação da alíquota do imposto de renda pessoa física para certas faixas salariais, o que foi alvo de acirradas críticas do professor Ives Gandra da Silva Martins que, na Folha de São Paulo do dia 04.11.2001, demonstra que, sobre os mesmos valores que busca o governo a incidência de 35% do imposto de renda pessoa física, nos Estados Unidos, a tributação não passa de 15% .

Também na Folha de São Paulo do mesmo dia, o colunista Jânio de Freitas chama a atenção para o fato de que “o imposto sobre o lucro do capital, o chamado lucro fácil, ser três vezes e meia menor que nos países ricos deveria ser, aqui, motivo de um escândalo nacional sem precedentes. São duas demonstrações da política de crescente exclusão social, praticada deliberadamente: uma aquela diferença; outra, tão ou ainda mais merecedora de uma reação nacional, o fato de que a remuneração do trabalho paga, no Brasil, imposto mais de duas vezes superior ao imposto pago pelo lucro sem trabalho, que o eufemismo tecnicista chama de rendimento capital”.

O compromisso de todo brasileiro, principalmente da elite pensante, não deve, no particular, ser o de defender ou combater o governo. O compromisso há que ser com as instituições, com a Constituição, com o Estado, enfim. Se as razões de Estado coincidem, eventualmente, com as razões de um governo acusado de massacrar o servidor público, de não demonstrar sensibilidade social, priorizando o pagamento dos juros da dívida externa, ainda que em prejuízo dos interesses dos nacionais, o que emerge claro das leis orçamentárias, é preciso separar o joio do trigo, para que não se caia no jogo dos sonegadores.

Voltando ao tema, não vejo como desrespeitados os direitos e garantias fundamentais, especialmente o direito à intimidade, por parte da norma do art. 11, parágrafo 3º, da Lei 9.311/96, com a redação da Lei 10.174/2001, que facultou a utilização das informações bancárias, obtidas pela arrecadação da CPMF, para verificar a existência de créditos tributários relativos a impostos ou contribuições outras, posto que a própria norma obriga a resguardar sigilo das informações prestadas.

No particular do sigilo, a regra do art. 11, da Lei Complementar 105/2.001, prevê a responsabilidade civil pelos danos decorrentes do servidor que utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação em decorrência da quebra do sigilo.

O legislador, no particular do respeito ao direito à intimidade, foi tão cuidadoso que só admite a quebra quando instaurado processo administrativo ou procedimento fiscal. É a previsão do art. 6º, do citado diploma legal, com vistas à assegurar a plenitude do direito à ampla defesa.

Por fim, criminaliza a conduta de forma específica, ao prever, como crime, sujeito à pena de reclusão de um a quatro anos e multa, a quebra do sigilo fora das hipóteses previstas na lei. Tem, portanto, o contribuinte a mais ampla garantia e o mais amplo direito de defesa, decorrendo, de todas essas circunstâncias, o dever da autoridade administrativa em, sempre, fundamentar a quebra.

Como se vê, as informações, para efeito de apuração de outros tributos, passam-se no âmbito exclusivo entre o fisco e o contribuinte, com responsabilização pesada sobre o servidor que divulgar os dados, não havendo falar-se em ofensa ao direito à intimidade. A possibilidade legal de divulgação inexiste.


Ainda sobre o direito à intimidade, não devemos esquecer que a vida humana é cheia de exemplos simples, fatos inevitáveis que revelam a impossibilidade total do absolutismo desse direito. Isso ocorre desde o nosso nascimento. Nossas mães são obrigadas a se despirem de qualquer pudor, pelo menos para algumas poucas pessoas, médicos e enfermeiros, quando entram em trabalho de parto, para nos dar à luz. Cuida-se de uma circunstância indispensável para o nascimento com vida, que é um direito maior, mais fundamental, ouso inadequadamente afirmar.

Em nosso quotidiano, temos nossa vida parcialmente devassada, quando nos submetemos a adquirir bens financiados, informando aos vendedores dados íntimos nossos, como ganhos salariais, patrimônio, etc. sem que isso cause qualquer comoção, sem que ninguém se sinta aviltado.

Quem viaja ao exterior, está sujeito a ter sua bagagem totalmente devassada, revelando preferência sobre roupas íntimas, tipo de perfume, desodorante, etc. também sem maiores complicações, embora não deixe de ser constrangedor.

Em nome de um bem maior, que é a segurança do indivíduo, as grandes cidades brasileiras, especialmente as capitais, estão vivendo um fenômeno novo. Volta e meia, a polícia faz descer, dos ônibus urbanos, os passageiros e procede a uma revista constrangedora, onde as partes mais íntimas do corpo das pessoas são apalpadas, para se constatar ou não o porte indevido de armas. O fundamento dessa invasão da intimidade está na segurança pública, que é um dever do Estado.

Jamais li, em qualquer jornal, a mais tênue indignação contra essa forma de revista. Evidentemente que isso ocorre, menos porque os órgãos de imprensa tenham consciência da necessidade da revista, do que pelo fato da revista atender aos anseios das elites.

Pois bem, essa mesma elite toma-se de revolta quando o legislador permite que se use de dados pessoais, de contas bancárias, para apurar-se o crédito tributário. Essa utilização de dados não implica em quebrar-se a intimidade porque a divulgação é proibida. Ainda que se considere como quebra a utilização desses dados, a autorização legislativa para assim proceder-se foi instituída em nome de um bem maior, que é persecução dos objetivos da República, consistentes na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na garantia do desenvolvimento nacional, na erradicação da pobreza, na redução das desigualdades sociais e regionais e na promoção do bem de todos (art. 3º, da Constituição Federal).

A única forma que dispõe o Estado para construir uma sociedade justa, erradicar pobreza e reduzir desigualdade é através da cobrança de impostos. Não existe outra, respeitando-se, evidentemente, as limitações ao poder de tributar.

Foi através da instituição do IPMF e seu sucedâneo CPMF, que o Estado Brasileiro pôde constatar aquilo que os economistas, especialmente os técnicos da Receita já apontavam, que se sonega, em nosso país, o mesmo que se arrecada. Outro PIB brasileiro, de um trilhão e duzentos bilhões de reais constitui a base de cálculo da sonegação. São dados da Receita Federal.

Isso significa que deixamos de ter metade das escolas, metade da segurança, metade da educação e, em um governo empenhado com os grandes interesses nacionais, metade da energia. Enfim, metade de tudo. Enfim, objetivos da República alcançados pela metade.

No país mais rico do mundo, os Estados Unidos, cujo PIB é de nove trilhões de dólares, o fisco tem legitimidade para acessar dados pessoais dos contribuintes, sem que haja manifestações de indignação. As instituições funcionam, a democracia não se sente ameaçada. Ressalte-se que o povo americano tem paixão por ações de danos morais. Os fatos mais banais resultam em indenizações milionárias.

Até em países, onde o sigilo bancário é rígido, como a Suíça, já há uma tendência em flexibilizá-lo, em nome do combate ao crime organizado. Recentemente, com os ataques terroristas aos Estados Unidos e a guerra contra o Afeganistão, o sigilo bancário tende a flexibilizar-se ainda mais.

Sobre essa questão, Peter Lilley apresenta dados interessantíssimos sobre a lavagem de dinheiro. Aponta uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, onde se constatou que noventa por cento das cédulas que lá circulam estão contaminadas por Narcóticos e noventa e nove por cento das notas que circulam em Londres estão impregnadas por cocaína. (2)

Informa mais que as autoridades monetárias francesas calculam que o valor do dinheiro sujo ultrapasse 14 bilhões de francos por ano. No Canadá, segundo o seu Procurador Geral, os recursos ilegais gerados e lavados no país ficaram ente cinco e dezessete bilhões de dólares por ano, enquanto, segundo o Ministério da Fazenda suíço, o país lava 500 bilhões de dólares por ano.

Ainda segundo o autor, “as autoridades monetárias do Reino Unido calcularam que as atividades do crime organizado totalizaram 50 bilhões de libras – o que faz do crime a terceira indústria do país”.(3)


Continua informando que “O Relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano referente a 1999, comentou que os sindicatos do crime organizado auferem 1,5 trilhão de dólares por ano”, algo em torno de 2 a 5% do PIB mundial, segundo o autor. Corresponde, mais ou menos, ao tamanho do PIB da França e da Inglaterra, isoladamente.

O professor Aldemário Araujo Castro, Procurador da Fazenda Nacional, em brilhante análise sobre o tema, manifestou-se, demonstrando que “existe um nítido movimento internacional no sentido da flexibilização do sigilo bancário, sem a intermediação do Poder Judiciário. As razões justificadoras dessa tendência, envolvendo países como os Estados Unidos, Espanha, Bélgica, França e Holanda, entre outros, repousam na necessidade combate à lavagem de dinheiro oriundo de práticas criminosas e de viabilização, em novos patamares, da fiscalização e arrecadação tributárias”. (4)

Informa mais que, “Segundo estimativas das Nações Unidas, o comércio mundial de drogas ilegais atinge U$ 500 bilhões anuais gerando um gigantesco movimento de lavagem financeira de dinheiro que envolve mais de um milhão de empresas-laranja. Já, segundo o FMI, cerca de 8% das transações financeiras internacionais são realizadas com dinheiro proveniente da economia ilegal”. (5)

O autor citado traz, em seu trabalho, dados interessantíssimos, cuja transcrição é indispensável para a análise do tema. Vejamos:

“Os Estados Unidos são o protótipo do Estado Liberal, entretanto, por questões fiscais, toda operação bancária que envolva quantia superior a U$ 10.000,00 (dez mil dólares) deve ser imediatamente comunicada ao Tesouro”.

“Na Espanha, os Bancos são obrigados a encaminhar ao Ministério da Fazenda, no início do ano, a relação de suas conta correntes e valores mobiliários, além de prestar outras informações necessárias para fins de tributação”.

“Na França, o Código Geral de Impostos e outras leis permitem que os agentes fiscais franceses tenham acesso a documentos oficiais em poder das empresas privadas, Bancos e estabelecimentos congêneres, sendo vedado, nos termos do art. 2.006, revelar a terceiros as informações obtidas a respeito da situação patrimonial do contribuinte”.

“Na Bélgica, a Lei de 20.11.62, que procedeu a reforma tributária, outorgou à administração a faculdade de requisitar informações às instituições financeiras sobre a situação econômica, operações realizadas e saldos das contas dos contribuintes. Existem também a Lei de 06.10.44, que obriga os Bancos a comunicarem, por lista nominal, ao Banco Nacional e à Comissão Bancária todos os créditos e empréstimos no valor igual ou superior a um milhão de francos. Também na Alemanha, o sigilo bancário desaparece ante as autoridades fiscais”.

“Na Holanda, a situação é semelhante. A Lei Geral de Contribuições ao Estado, de 02.07.59, dispõe expressamente que os Bancos não podem opor-se ao fornecimento de informações ao fisco”. (6)

Diante dessas circunstâncias globais, onde a tendência é a flexibilização do sigilo bancário, em um país cheio de desigualdades como o nosso, pensar-se em coibir o acesso do fisco aos dados das contas dos contribuintes, que já são acessados pelos funcionários dos bancos, chega a ser fútil. Fútil, não, o que se pretende é a manutenção de privilégios, com cidadãos de duas categorias, aqueles que podem sonegar livremente e os que não podem, ferindo o princípio da igualdade constitucional. Inconstitucional seria a rigidez pretendida.

Inúmeros contribuintes, quando batem à porta do Judiciário, pretendendo obter um provimento que impeça o fisco de acessar os seus dados bancários, sem ordem judicial, valem-se, em abono da sua tese, de uma medida liminar concedida pelo eminente Ministro Celso de Mello contra a quebra de sigilo bancário por parte da CPI do Narcotráfico. A liminar foi concedida, não pelo fato de inadmitir a quebra de sigilo bancário, mas pelo fato de haver-se observado que o ato não havia partido de uma deliberação dos membros da comissão parlamentar de inquérito. Cuidou-se de um vício formal.

No próprio voto do insigne ministro, encontro fundamento para afirmar que a matéria não está amparada pelo princípio da reserva da jurisdição. Reconheço que essa vem sendo a tendência do egrégio Superior Tribunal de Justiça. O Supremo Tribunal Federal, a quem caberá a última palavra, no entanto, ainda não se manifestou definitivamente sobre o assunto, na vigência da atual Constituição.

No voto citado do ministro Celso de Mello, penso que a tendência será admitir que a quebra do sigilo não se acha amparada pelo princípio da reserva da jurisdição. O ilustre Ministro valeu-se do pensamento de Hanna Arendt, com o seguinte trecho: “A transposição arbitrária para o domínio público, de questões meramente pessoais, sem qualquer reflexo no plano dos interesses sociais, tem o significado de grave transgressão ao postulado constitucional que protege o direito à intimidade, pois este, na abrangência do seu alcance, representa o ‘direito de excluir, do conhecimento de terceiros, aquilo que diz respeito ao modo de ser da vida privada'”. (7)


A flexibilização da Lei 10.174/2.001 não se encaixa na hipótese analisada, porque a lei não autoriza que se dê conhecimento ao público sobre a vida privada dos contribuintes. Pelo contrário, cuida de prever a hipótese para reprimir, de forma duríssima, prevendo punições penal, civil e administrativa ao servidor que divulgar os dados

O voto do ministro Celso de Mello é cauteloso. Visou decisões escandalosas, histriônicas, próprias das comissões parlamentares de inquérito, cujos membros, no afã da notoriedade através da mídia, excedem-se em comentários que recomendariam cautela, já que estão imbuídos de função jurisdicional.

Essa é sem dúvida, a tendência do STF. Na mesma linha de raciocínio, destaco trecho do voto proferido pelo eminente Ministro Nelson Jobim, no Julgamento do Recurso Extraordinário 219.780/PE: (8)

“Passa-se que o inciso XII não está tornando inviolável o dado da correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a interceptação da comunicação dos dados. Essa é a razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por correspondência telegráfica e de dados é proibida a interceptação, porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos, dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O que é vedado, de forma absoluta é a interceptação da comunicação da correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a interceptação da comunicação telefônica? Para manter os dados, já que é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados. Nas demais, não se permite, porque os dados remanescem, ficam no computador, nas correspondências, etc.”

Não fosse esse o raciocínio correto, brilhantemente desenvolvido pelo ministro Nelson Jobim, estaríamos diante de uma situação surrealista. A conclusão simples é que nem os gerentes de banco poderiam acessar as contas dos correntistas, o que tornaria por inviabilizar a abertura das próprias contas, o sistema bancário estaria inviabilizado, uma situação totalmente kafkaneana.

De outro lado, as correspondências, quando consistirem em prova de delitos, não poderiam ser objeto de apreensão, nem com ordem judicial. As cartas bombas não poderiam ser desarmadas ou explodidas pela polícia. Os que combatem a quebra de sigilo bancário não são capazes de imaginar o mundo irreal que estão criando em sua volta.

Não é à toa, que os egrégios TRFs., das 3ª e 4ª Regiões já vêm acolhendo a tese de inaplicabilidade do princípio da reserva de jurisdição em inúmeros julgados. A propósito, veja-se o agravo de instrumento 12974 (Proc. nº 2001.03.00.012311-2), que teve como Relatora a Desembargadora Federal Terezinha Carzeta, da 3ª Região, onde, em um trecho do seu despacho, afirma: “Os dados transferidos pelas instituições financeiras à administração tributária limitam-se às operações despidas de transcedência econômica ou tributária, não havendo, portanto, invasão à intimidade ou à vida privada” (9)

No egrégio TRF da 4ª, colho trecho esclarecedor do despacho do eminente Juiz João Surreaux Chagas, proferido no agravo de instrumento nº. 2001.04.01.045127-8/SC, nos seguintes termos: “Da mesma forma, a Lei Complementar n. 105/2001 autoriza o acesso da autoridade fiscal aos documentos, livros e registros das instituições financeiras, inclusive as relativas a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso. Portanto, o repasse das informações pela instituição bancária à Receita Federal e sua utilização para fins de fiscalização pelo do IR tem amparo legal e não afronta as garantias constitucionais”. (10)

Deve-se ressaltar que os agentes do fisco não gozam de imunidade e têm o dever de guardar sigilo sobre os dados, repita-se.

Quanto à possível hipótese de direito adquirido, por força do princípio da irretroatividade da lei, consistente no fato de que, anteriormente à Lei Complementar 105/2001 e 10.174/2001, vigia a Lei 9.311/96, que, em sua redação original, proibia a utilização das informações para a constituição do crédito tributário relativos a outras contribuições ou impostos” (art. 11, parágrafo 3º), tenho a norma como inconstitucional, posto que agride o princípio da igualdade, criando contribuintes de duas categorias, como acima exposto, atentando contra os objetivos da República, pelos fatos já delineados e ferindo o princípio da moralidade e eficiência, do art. 37, da Constituição Federal.

Embora o princípio da moralidade seja carente de definição, situações há em que ele se revela de forma transparente. Penso que toda norma inconstitucional atenta contra o princípio da moralidade.


Não bastasse essa ilação, o CTN, no parágrafo único, do art. 142, diz que “A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

Essa regra, imposta por lei complementar, consagra o princípio da moralidade, não podendo, outra disposição legal proibir o agente administrativo de fazer o que está obrigado. Recepcionada pela Emenda Constitucional 19/98, consagra também o princípio da eficiência administrativa.

Na verdade, sabemos todos, esse privilégio criado originalmente na Lei 9.311/96, resultou de acordo entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo para que a CPMF fosse reintroduzida em nosso ordenamento. Foi criado o privilégio inconstitucional para favorecer parte das elites e viabilizar a aprovação do projeto.

Se a norma é inconstitucional, não há direito adquirido.

Tampouco, há se falar em retroatividade da lei. Este princípio veda a criação de novos tributos, no particular. No caso, o Fisco só pode apurar impostos para os quais já havia a definição do fato gerador, como é o caso do imposto de renda. Não há ilicitude em apurar-se o tributo, com base em informações bancárias obtidas a partir da CPMF.

A utilização das regras da lei nova como método de apuração do tributo não constitui ilegalidade nem consiste em retroatividade. O ordenamento jurídico veda, em sede constitucional, inclusive, a obtenção de provas por meios ilícitos, o que não é o caso. Não apurando hipóteses de incidências novas, não há que se cogitar de irretroatividade.

Finalmente, o nosso texto constitucional não veda a eficácia retroativa da norma. O que não é possível é a retroatividade para atingir direitos adquiridos, o que não se verificou, no caso, como visto acima.

Colho, a propósito, sobre o assunto, trecho do despacho do eminente desembargador federal Mairam Maia, do TRF, da 3ª Região, no Agravo de Instrumento nº. 133407 (Processo nº 2001.03.00.019658-9), nos seguintes termos: “De acordo com o entendimento de José Eduardo Martins Cardozo (in “Da Retroatividade da Lei, Ed. RT, pág. 276, “retroativa é toda norma legal que valorativamente invade e altera o período de tempo anterior ao início da sua própria vigência, seja por descrever, na sua hipótese, isoladamente ou não, elemento fático realizado no passado, seja por definir preceito que implique em modificação jurídica de realidade pretérita”.

A Constituição de 1988 não veda a eficácia retroativa da norma, condiciona-a, tão somente, como já asseverado, à observância do preceito inserto em seu art. 5, inciso XXXVI. Neste diapasão, a lição de Celso Bastos, (in “Comentários à Constituição do Brasil, pp.191 e 192, verbis: “a nossa Lei Maior, ao contrário do que muitas vezes somos levados a crer, não consagra o princípio da irretroatividade, nem de forma implícita, nem explícita”.

Adiante, afirma S. Excia: “Enquanto não decaído o direito do fisco em constituir os créditos tributários de sua competência, as situações jurídicas caracterizam-se como fatos pendentes, estando, portanto, sujeitas à incidência da norma vigente no momento da atividade fiscalizatória, desde que não configuradas algumas das hipóteses previstas no art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal, a obstar a incidência dos efeitos retroativos da lei”. (11)

Essas reflexões objetivam, na verdade, alertar as mentes mais lúcidas deste País para a necessidade urgente de uma reforma constitucional, em que tributo como a CPMF, compensável com outros impostos, seja priorizado, por ser justo e dificultar a sonegação, levando o País a um equilíbrio fiscal com justiça, de forma a atender os objetivos sociais da República.

Notas de Rodapé

1 – Direito Constitucional. 8ª ed. Pg. 58/59. São Paulo: Atlas, 2000.

2 – Lavagem de Dinheiro : Negócios ilícitos transformados em atividades legais. Pg. 39. São Paulo: Futura, 2001.

3 – Op. cit. Pg. 40.

4 – A Constitucionalidade da Transferência do Sigilo Bancário para o Fisco preconizada pela Lei Complementar nº 105/2001. Artigo extraído do site: www.aldemario.adv.br/sigilob.htm

5 – Idem. Nota de rodapé nº 08.

6 – Idem. Notas de rodapé nsº 03, 04, 05, 06 e 07, respectivamente, sempre transcrevendo Maria José Lima Oliveira Roque. Sigilo Bancário e Direito à Intimidade. Pgs. 99, 104 e 105. Curitiba: Juruá, 2001.

7 – MS nº 23.669-DF – Liminar, publicada no DJU em 17.04.2000.

8 – Rel. Min. Carlos Velloso, publicado no DJU em 19.09.1999.

9 – Extraído da Revista Dialética de Direito Tributário – nº 72 – pg. 204 a 206.

10 – Extraído da Revista Dialética de Direito Tributário – nº 72 – pg. 203 e 204.

11 – Extraído da Revista Dialética de Direito Tributário – nº 72 – pg. 206 a 208.

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