Mídia e Justiça no Brasil

O judiciário brasileiro é refratário ao debate de seus atos

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3 de junho de 2002, 22h27

O maior desafio para os operadores da Justiça, advogados e jornalistas brasileiros tem sido encontrar o equilíbrio entre a garantia da livre informação e a inviolabilidade dos direitos individuais.

A Constituição brasileira garante o direito à informação e o direito à privacidade. A Carta Magna dispõe que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. A intimidade, a vida privada, a honra e a imagem são invioláveis e é assegurada indenização pelo dano moral ou material.

O problema é definir o que deve prevalecer: o direito à informação ou o direito à privacidade. O risco para a imprensa são decisões que, a título de preservar a privacidade, limitam o direito de informação, estimulam a censura prévia e a “indústria” das indenizações.

A tendência tem sido:

1) O aumento no número de ações de indenização por danos morais

2) A subjetividade dos julgamentos

3) O arbítrio do juiz no estabelecimento de indenizações.

Está em vigor no Brasil a Lei de Imprensa, criada em 1967, no período autoritário, uma herança do regime militar. Há uma corrente de juristas contrária à existência de uma lei específica para disciplinar a atividade da imprensa. Entendem que os delitos cometidos por jornalistas seriam disciplinados pelo Código Penal.

A Lei de Imprensa divide os crimes de imprensa em duas classes: crimes contra a ordem pública ou a divulgação de segredos de Estado e crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria).

A Lei de Imprensa mantém dispositivos muito criticados:

1) A prisão para jornalistas por crimes contra a honra;

2) A proibição da prova da verdade contra determinadas

autoridades, cerceando o direito de defesa dos acusados;

3) A subjetividade na definição das indenizações.

Muitos juristas defendem que os crimes de opinião não devem ser punidos com pena de prisão. Quanto ao dano moral, a Lei de Imprensa chega a dispor que, ao arbitrar a indenização, o juiz deverá levar em conta, entre outras coisas, “a posição social e política do ofendido”.

Pela lei, o autor do escrito ou da transmissão responde pelo crime. Não havendo identificação do autor, responde o diretor ou o redator-chefe do jornal ou proprietário do veículo. A responsabilidade penal, nestes casos, é sucessiva.

O jornalista profissional tem direito a prisão especial antes da condenação definitiva. No caso de condenação, a pena privativa de liberdade é cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime comum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário.

A Lei de Imprensa prevê que a empresa de comunicação é civilmente responsável e poderá propor ação regressiva contra o jornalista. São civilmente responsáveis pelo ressarcimento resultante de dano o autor do escrito e o proprietário do veículo de divulgação.

A Lei de Imprensa dispõe que o prazo para proposição de ação por dano é de três meses. Mas há decisões judiciais estendendo esse prazo a 20 anos.

A Lei de Imprensa estabelece limites para indenização por danos morais: de até 20 salários mínimos para jornalistas e de até 200 salários mínimos para a empresa. Mas há sentenças extrapolando esses limites, o que estimula a autocensura, incrementa a “indústria” das indenizações e transforma a ofensa em meio de enriquecimento.

O Superior Tribunal de Justiça tem reduzido indenizações e tentado conferir certa unidade jurídica às decisões. Em nove anos, o número de ações por danos morais julgadas nesse tribunal aumentou 50 vezes, enquanto o número global de processos cresceu 4 vezes.

O movimento por uma nova Lei de Imprensa ganhou impulso depois que o então presidente da República Fernando Collor de Mello instaurou processo criminal contra quatro jornalistas da Folha de S.Paulo, inclusive o diretor de redação, numa clara tentativa de intimidação da imprensa.

Tramita há anos no Congresso projeto para uma nova Lei de Imprensa. O projeto prevê o fim da pena de prisão para os crimes de imprensa, mas abre a perspectiva de indenizações milionárias, dando aos juizes o poder de inviabilizar financeiramente uma empresa jornalística. Esse projeto chegou a prever multa por danos morais de até 20% do faturamento da empresa jornalística. Trata-se de uma forma de inviabilizar principalmente os pequenos jornais do interior.

Nas relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário, alguns conflitos têm repercussão na atividade da imprensa. O Executivo exerce forte influência sobre o Judiciário: os membros dos Tribunais Superiores são nomeados pelo presidente da República, após aprovação do Senado. A escolha do Advogado-Geral da União, do Procurador-Geral da República e dos procuradores dos Estados também é feita pelo Executivo. São fatores inibidores da ampla investigação jornalística dos governos e dos serviços públicos.


No Brasil, discute-se a necessidade de uma ampla reforma do Judiciário. A Justiça é lenta. A possibilidade de oferecimento de sucessivos recursos favorece acusados que dispõem de maior poder econômico e sabem tirar vantagem da litigiosidade, além de ser fonte de renda para grandes escritórios de advocacia. As punições para infrações financeiras são simbólicas e contam-se nos dedos os casos de réus presos por crimes financeiros, os crimes de colarinho branco.

Uma das teses em discussão propõe o controle externo do Judiciário. Para muitos juristas, reduzir a independência do Poder Judiciário, pelo controle externo, ou a liberdade de imprensa, por meio de indenizações milionárias, é um desserviço à democracia.

A abertura democrática no Brasil estimulou um jornalismo mais investigativo, preocupado em revelar denúncias de corrupção e violência. A partir da criação do Ministério Público Federal, com autonomia para investigar e propor ações criminais e ações civis públicas, a imprensa passou a encontrar nos procuradores uma natural fonte de informações. Essa relação permitiu maior divulgação sobre investigações de interesse da sociedade. Mas tem gerado reclamações sobre casos de abusos de autoridade e violações de direitos individuais. Haveria certa cumplicidade da imprensa com alguns promotores mais seduzidos pelos refletores. Os jornalistas agiriam assim por temerem vir a perder fontes de informação.

Há dois anos surgiu a tentativa de criação da chamada Lei da Mordaça, que pretendia controlar a atuação dessas autoridades, limitando as declarações à imprensa por procuradores e juizes. A oposição que essa medida gerou é contraposta pela defesa do maior respeito ao princípio do sigilo nas investigações policiais ou do Ministério Público, até mesmo para garantir a eficácia do processo.

O judiciário brasileiro é refratário ao debate de seus atos. Raramente um juiz dá entrevistas. Há queixas de despreparo da imprensa para o trato de questões do Judiciário.

O Judiciário costuma resolver suas mazelas internamente, sem maior prestação de contas à sociedade. Sabe-se de casos isolados de juizes afastados do cargo por suspeitas de práticas irregulares, apuradas internamente sob sigilo, e premiados com aposentadoria antecipada.

Há dois anos, uma Comissão Parlamentar de Inquérito criada no Senado para investigar atos do Judiciário teve forte conotação política e concentrou seu foco em um único caso escandaloso: o desvio de verba pública para a construção de um tribunal, episódio que resultou na cassação de um senador da República e na prisão de um juiz trabalhista – um dos raros casos de prisão de magistrado no país.

Intimidada pelo poder e influência dos magistrados, temerosa de vir a ser condenada a pagar indenizações elevadas, a imprensa brasileira, de um modo geral, é tímida ao investigar as distorções e irregularidades no Judiciário.

Finalmente, se é verdade que a imprensa brasileira nos últimos anos deu forte contribuição à consolidação de instrumentos elementares do exercício de cidadania, como o Código de Defesa do Consumidor, a imprensa é vista pela grande maioria da população, equivocadamente, como a instituição que mais ajuda a fazer justiça no país.

Fazem sucesso na televisão e nos rádios programas com animadores que representam o papel de “justiceiros” e “defensores” do povo. Pesquisa recente, com 200 entrevistados de São Paulo e do Rio de Janeiro, revelou que, para 84% dos consultados, a mídia é a instituição que mais ajuda a população a fazer valer os seus direitos.

A Justiça, no Brasil, é uma instituição desconhecida para a grande maioria da população. É procurada apenas por 30% das pessoas envolvidas em disputas. Na avaliação de alguns especialistas, a imprensa brasileira “compete” indevidamente com o Judiciário. Poderia fazer muito mais para promover o acesso à Justiça pelos cidadãos.

Eis alguns exemplos que ilustram o atual estágio das relações entre a mídia e o Judiciário no Brasil:

1) Calcula-se que as quatro maiores empresas jornalísticas no país têm contra si 1.237 ações indenizatórias por dano moral.

2) Um dos pré-candidatos à presidência da República conseguiu, na semana passada, decisão judicial impedindo que uma revista semanal publicasse o conteúdo de fitas com gravações de conversas telefônicas. O juiz fixou multa diária de R$ 500 mil caso a reportagem fosse publicada. Os editores receberam intimações por telefone.

3) Anos atrás, um famoso cantor popular brasileiro obteve decisão judicial impedindo que um jornal prosseguisse série biográfica que tratava de acidente em que o artista perdera uma perna, na infância. Assim como no casos do pré-candidato, houve censura prévia, pois a alegada violação da privacidade ainda não havia ocorrido.


4) Um grande diário brasileiro responde a duas ações de indenização movidas por juizes que tiveram divulgado o seu patrimônio, que contrasta com o padrão de vida comum dos juizes brasileiros. Por causa da reportagem, os magistrados são investigados por suspeita de enriquecimento ilícito.

Um desses juizes possui vários imóveis e está construindo um conjunto de sete prédios de apartamentos. Foi afastado do cargo, em dezembro, sob a denúncia de favorecer um narcotraficante.

O segundo juiz, proprietário de mais de 30 automóveis, dois grandes barcos, oito propriedades rurais e quatro imóveis na praia, obteve sentença favorável em primeira instância. Neste final de maio, o jornal publicou que esse magistrado e sua mulher foram acusados de falsificar documentos do imposto de renda para omitir sonegação de mais de R$ 1,3 milhão. A empresa que edita o jornal foi condenada a pagar 1.500 salários mínimos por danos morais (a Lei de Imprensa fixa teto de 200 salários mínimos). Está recorrendo dessa decisão.

5) Uma das maiores empresas de comunicação do Brasil teve prédio penhorado para garantir indenização de R$ 4 milhões a um juiz de direito que teria sido injustamente apontado como manipulador de processos de adoção. O juiz talvez receba também a título de indenização R$ 800 mil de uma revista semanal.

6) Parentes de vítimas de um mesmo trágico acidente de aviação foram indenizados em valores diferentes e muito inferiores à reparação financeira recebida por um alto executivo de uma empresa que teve sua imagem indevidamente veiculada em um anúncio.

7) Um pequeno jornal do interior de São Paulo foi condenado a pagar 2.500 salários mínimos, o que deverá levar seus editores à ruína.

8) Finalmente, a título de curiosidade, um caso que tem a ver com nossos países: um grande jornal brasileiro e dois jornalistas foram condenados por texto publicado em 1994, afirmando que a Confederação Brasileira de Futebol teria pago à Federação Equatoriana de Futebol para que o jogo das eliminatórias da Copa daquele ano fosse realizado ao nível do mar, na cidade de Guayaquil. Embora a Lei de Imprensa fixe como limite a pena de 20 salários mínimos para jornalistas, nos casos de danos morais, a indenização, nesse episódio, foi arbitrada em 200 salários mínimos mais correção e honorários. Um dos jornalistas já morreu. A conta ficou para

os herdeiros.

Texto elaborado para o seminário Mídia e Justiça – Fundação Konrad Adenauer – Quito, Equador (Maio de 2002)

Fontes consultadas:

Carvalho Filho, Luis Francisco e Gasparian, Taís Borja – advogados, especialistas em questões de Imprensa e Judiciário – artigos publicados e entrevistas ao autor

Amaral, Ana Lúcia – procuradora da República e membro do IEDC- Instituto de Estudos Direito e Cidadania, artigos publicados no “Observatório da Imprensa”

“Consultor Jurídico” – publicação especializada em assuntos do Judiciário – São Paulo

Lei de Imprensa – Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967

“Noções de Direito para Jornalistas” – Guia Prático – Justiça Federal – São Paulo

“Acesso à Justiça” – Org. por Maria Tereza Sadek – Fundação Konrad Adenauer (Série Pesquisas n. 23)

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