Mundo cibernético

Repassar e-mail com assinatura pode virar um pesadelo

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23 de julho de 2002, 19h20

De 15 dias para cá, Humberto Alves Santos não teve mais sossego em seu trabalho, devido à enorme quantidade de e-mails e telefonemas que vem recebendo. É como se ele tivesse ficado famoso de uma hora para outra. Tudo por causa de um e-mail que enviou a alguns amigos, tentando ajudar a encontrar uma garota supostamente desaparecida. O detalhe crucial: ele repassou a mensagem com sua assinatura automática, em que constam número de telefone, local de trabalho e endereço eletrônico.

“Recebo telefonemas e e-mails de todos os cantos do país”, afirma. Ele já está tão acostumado a explicar a mesma história dezenas de vezes, que quando alguém liga e pede para falar com Humberto, ele imediatamente pergunta: “É sobre o e-mail?”.

Humberto Santos é mais uma das vítimas dos hoaxes (boatos) que circulam pela Internet. Por ingenuidade ou por solidariedade, milhares de internautas tornam-se cúmplices involuntários na disseminação destes boatos. Fazem isso ao repassar mensagens e correntes de todos os tipos: vírus que não existem, crianças desaparecidas, campanhas humanitárias, denúncias contra empresas e personalidades, promoções para ganhar dinheiro ou produtos apenas com o envio de e-mails, alertas contra golpes e crimes, esquemas miraculosos para obter vantagens financeiras, e tudo o mais que a imaginação de uma pessoa mal-intencionada possa criar.

Por mais que os internautas sejam orientados a não passar estas mensagens adiante, os boatos continuam proliferando. Mas quando alguém repassa um hoax e sua assinatura é automaticamente inserida no e-mail, o gesto simples pode se transformar num pesadelo, pois muito provavelmente esta assinatura acabará se incorporando ao hoax.

No caso de Humberto Alves Santos, uma coincidência agravou a situação: o nome da garota que teria desaparecido é Karina dos Santos Alves. “Muita gente acha que eu sou parente da menina e me liga ou escreve tentando obter informações”, esclarece. Mas é quase certo que o nome da criança seja inventado, assim como outros dados que aparecem no e-mail.

A mensagem afirma que o nome da mãe é Cleodete S. Alves, seu telefone é (11) 3746-8620 e seu endereço de e-mail é [email protected]. Como é funcionário da Telefônica de São Paulo, Humberto resolveu averiguar estes dados. “O número de telefone nunca existiu nos arquivos da operadora, e também não há nenhum telefone associado ao nome da suposta mãe”, informou. Os e-mails que enviou para o endereço citado voltaram com o aviso de

“usuário desconhecido”. InfoGuerra fez o mesmo teste e constatou que as mensagens retornam.

Para seu azar, Humberto Santos só se lembrou de checar os dados depois que já havia repassado o hoax e viu sua rotina de trabalho ser bruscamente modificada.

Latas de bebidas contaminadas

Um outro caso, que ganhou proporções muito além do esperado, aconteceu com Fabio Lopes Olivares, engenheiro agrônomo com doutorado em microbiologia de solos e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. Há mais de dois anos, num gesto inocente, ele repassou para alguns amigos um e-mail contendo um alerta sobre supostas mortes provocadas por leptospirose, ao se ingerir cerveja ou refrigerante diretamente das latinhas de bebidas.

O texto afirmava que as latas poderiam estar contaminadas com urina seca de ratos, devido à falta de higiene nos depósitos dessas bebidas. A mensagem enviada pelo engenheiro passou a contar com sua assinatura automática, na qual constava o título de doutor e o nome do laboratório de biologia em que trabalha. Isto certamente contribuiu para a confusão gerada a partir de então. Olivares afirma que ainda recebe e-mails e telefonemas sobre o assunto, apenas esporadicamente hoje em dia, mas já teve sérios problemas por causa de sua atitude. Ele relata: “Enviei o e-mail em dezembro de 1999. Mais ou menos de março a junho de 2000, houve um pico de pessoas fazendo contato comigo por causa da mensagem. A partir de julho de 2000, a situação se acalmou, mas em novembro houve uma nova onda, que durou até janeiro de 2001. Em março de 2001, o texto foi traduzido para o espanhol e para o inglês, então eu comecei a receber mensagens de toda parte do mundo – Uruguai e outros países da América Latina, Espanha, Estados Unidos, Austrália e vários outros.”

Olivares diz que já recebeu mais de 2 mil e-mails e mais de 800 ligações telefônicas por causa do boato. “Teve uma época em que eu recebia de 45 a 50 mensagens por dia, mas esse número já chegou a 70 mensagens diárias”. Ele afirma que, por esse motivo, praticamente não conseguia mais trabalhar e estava ficando estressado. “Tiveram de montar uma equipe na universidade para me ajudar a lidar com a situação e responder a todo mundo que me procurava”.

Mas seus problemas não pararam por aí. A Associação Brasileira do Alumínio (ABAL) e a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes (ABIR), obrigaram-no a assinar uma declaração afirmando que não era responsável pela mensagem e que não havia nenhum estudo comprovando que se poderia contrair leptospirose a partir de latas de bebidas.

“A ABIR ameaçou me processar, pois seus advogados alegavam que por causa do boato as vendas haviam caído 10%”, afirma. Até hoje ainda é possível ver o documento assinado por Olivares, no site da ABAL, que também traz um esclarecimento sobre o boato. A situação chegou a um ponto tal, que ele começou a receber telefonemas de empresas que, aproveitando-se das circunstâncias, estavam interessadas em patentear invólucros de plástico para as latinhas e queriam que o professor disponibilizasse “seu estudo”.

É provável que uma lata de bebida suja possa conter bactérias causadoras de doenças, mas não há nenhuma prova de que a leptospirose seja disseminada por esse meio. A bactéria que provoca a leptospirose só sobrevive em meio líquido, por isso a afirmação de que a urina seca de rato possa transmitir a doença não tem embasamento científico.

Hoje, Fabio Olivares até ri de toda a situação, mas garante que passou por maus pedaços por causa do boato. “Se há alguma coisa boa nisso tudo, é que a história se espalhou tanto que hoje muitas pessoas tomam mais cuidado com as latas, lavando-as ou usando um canudo para ingerir as bebidas”, conclui.

Portanto, vale o alerta novamente: não repasse mensagens duvidosas, por mais importantes ou urgentes que possam parecer os assuntos. Mas se sua tentação for irresistível, pelo menos retire eventuais assinaturas automáticas do e-mail. Caso contrário, seu dia-a-dia poderá sofrer uma reviravolta.

Abaixo você pode ver a mensagem sobre a “criança desaparecida”, que o funcionário da Telefônica Humberto Alves Santos recebeu e repassou. O mesmo texto com os dados falsos da “mãe” e a foto da garota estão publicados em dezenas de sites, inclusive no da Guarda Municipal de Ubatuba:

NÃO VIU, NÃO CONHECE? ENTAO VÁ REPASSANDO, SIMPLESMENTE REPASSANDO. NÃO CUSTA NADA AJUDAR!

Esta menina está desaparecida. Se você não a viu, não a conhece, simplesmente repasse, repasse, repasse.

Abaixo, o pedido da mãe.

Por favor, me ajude. Eu estava na estação Sé do metrô em São Paulo, quando percebi minha filha não estava perto de mim.

Segundo pessoas que estavam ali na mesma estação que eu, uma senhora aparentando 35 anos, loira, de cabelos encaracolados, estava de mãos dadas com a minha filha. Para o meu maior desespero a segurança do metrô disse não ter registrado em seu circuito interno essa senhora raptando a minha filha.

Agora peço que se você viu a minha filha que entre em contato comigo, pois estou desesperada, perdendo sono e dias de serviço, caso não tenha visto, peço-lhe que passe para seus amigos quem sabe eles não tenham visto.

Abaixo os dados dela: (a foto também é anexada na mensagem)

Karina dos Santos Alves 5 anos, olhos pretos, estava trajando uma blusa cinza da marca “Tigor T.”, calça cinza e tênis branco. Se você tiver alguma informação, por favor entre em contato comigo

Cleodete

(0xx11) 3746-8620

[email protected]

Mas por favor, não passe trote, ou mande e-mail com brincadeira, pois você não imagina o desespero de uma mãe que tem a sua filha raptada.

Grata

Cleodete S. Alves

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