Negócio de Che

Duas mulheres e um Che Guevara

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17 de julho de 2002, 16h54

Dos lugares onde esteve Che Guevara, da Argentina à serra cubana, do Congo à cordilheira boliviana, foram muitos aqueles em que se sentiu próximo de seus sonhos, mas, certamente, cobrindo o relevo de Gisele Bündchen foi o melhor lugar onde o puseram. Havia quinze Guevaras só na parte posterior.

Noves fora a moda de verão, deve-se chamar à passarela das idéias outra mulher. É Alma Guillermopietro, fenomenal repórter mexicana. Escreve sobre a cena latino-americana para a revista “The New Yorker” e para o “The New York Review of Books”. Fez soberbos relatos da revolução sandinista na Nicarágua e da guerrilha colombiana. É dela um artigo intitulado “O anjo cruel”, audacioso e dramático retrato psicológico de Guevara. Mesmo já tendo saído em livro nos Estados Unidos, está inédito em português.

Sem perder a ternura, Guillermopietro sustenta que o negócio de Che era a morte. “Um fanático consumido pela inquietação e por um ódio assustadoramente abstrato que, ao final, reconhecia apenas um supremo valor moral: a disposição de ser massacrado em nome de uma causa.” “Nunca levou em conta alternativas à violência e ao radicalismo.”

Mesmo antes de chegar ao biquíni de Gisele, Guevara foi o mais famoso latino-americano do século 20, único capaz de provocar sentimentos de admiração em povos tão distantes quanto os das 21 nações do continente.

Produziu aquilo que Guillermopietro chama de “as crianças do Che”. Uma geração massacrada, espremida entre dois olhares. Um, audaz, perdido no futuro, capturado pelo fotógrafo Korda (é a imagem do biquíni). Outro, fixo, do morto colocado sobre um tanque de hospital num lugarejo boliviano, em outubro de 1967. Nele a escritora Susan Sontag viu um eco do “Cristo Deposto” do pintor renascentista Andrea Mantegna.

O Guevara do biquíni não torna o mundo melhor nem pior, apenas mostra o vigor do seu mito. Trata-se de um mito onde fracasso e martírio se juntam para embaçar a compreensão do personagem. Os fracassos do guerrilheiro no Congo e na Bolívia são apenas um pedaço de seu papel histórico. Na América Latina fracassaram também todas as outras iniciativas do gênero.

Guillermopietro impressiona quando conta o sucedido na Guatemala, onde a guerrilha guevarista (ou o massacre dos camponeses) durou vinte anos. Conta a história da poeta feminista Alaíde Foppa. Em 1954, quando um presidente esquerdista foi derrubado por um golpe urdido em Washington, ela acompanhou o marido no exílio. Tinham cinco filhos. Nos anos 70 um deles foi para a guerrilha. Capturado, foi morto. Ela tornou-se mensageira dos combatentes.

Sumiu, e seu corpo nunca foi encontrado. Um segundo filho alistou-se e também morreu. (No Araguaia, onde o PC do B lançou uma guerrilha praticamente desarmada, morreram três de quatro irmãos da família Petit da Silva. O mais velho tinha 30 anos.) Todos morreram por uma causa. Pairando sobre essas tragédias esteve um grito vocalizado por Fidel Castro ao saber da morte do amigo e recitado por milhões de latino-americanos: “Sejam como o Che”.

Parecia o caminho heróico para um mundo novo, certamente melhor.

Nesse ponto Guillermopietro fecha seu raciocínio: “A única maneira de ser como o Che era morrer como ele, e todas essas mortes não foram suficientes para criar o mundo perfeito que o Che buscava”.

Ela prossegue: “Guevara nasceu na hora do herói latino-americano” e tornou-se esse personagem “só, único”. “A imagem desse herói ainda cativa um grande número de latino-americanos que não conseguem cobrar as responsabilidades de seus líderes, mas conseguem, como o Che morto ainda é capaz de fazê-lo, cobrar desses mesmos líderes atos de grandeza, fervores e rupturas.

O Che vivo não foi o herói perfeito para seu tempo e lugar: ele queria que os outros seguissem seu exemplo impossível e nunca entendeu como combinar o que ele queria com o que se podia conseguir. Ficará para a eternidade o debate de se a vida e o exemplo do Che aceleraram o advento dos tempos de hoje, nos quais não há causas perfeitas e as pessoas como ele estão mais do que nunca fora do lugar.”

Fora do lugar, na segunda-feira, não se pode dizer que Guevara esteve. Ainda assim, é preferível pensar o seu exemplo pelo que dele escreveu Guillermopietro.

*Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 17/7/02.

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