Operação tartaruga

O pedido de audiência no serviço público e a era da burocracia

Autor

11 de julho de 2002, 11h56

Muitas são as burocracias e entraves que ainda atrapalham ou dificultam o cotidiano do cidadão brasileiro, em especial daquele que necessita formular um pedido, cumprir obrigações ou atender a chamado de órgãos como o INSS, Receita Federal e autarquias federais. Assim, até por desconhecer adequadamente seus direitos ou mesmo por não dispor do tempo necessário para enfrentar gigantescas filas ou o famigerado sistema de senhas, é comum que esse cidadão contrate um despachante, ou mesmo, se o caso demandar, um advogado para representá-lo junto à repartição.

As empresas, por sua vez, não têm opção, visto que somente se representam por terceiros, seja por seus diretores, administradores ou mesmo procuradores.

Assim, de um modo geral para as empresas, e sempre que possível, para o cidadão comum, é costume fazer-se representar perante as aludidas repartições para se obter uma solução adequada para os problemas ou pendências que se apresentam.

Todavia, em breve mais uma burocracia virá a perturbar essa quase “rotina”. Sem maiores alardes, foi publicado no dia 15 de maio passado o Decreto n º 4.232, que tem por finalidade disciplinar as audiências e reuniões dos agentes públicos com representantes de interesses particulares.

Em face desse Decreto qualquer pessoa física ou jurídica, para ser recebida em audiência ou reunião por um agente público, deverá ser previamente inscrita nos órgãos ou nas entidades em que pretende ser ouvida, abrangendo órgãos da Administração Pública Federal direta, autarquias e fundações públicas federais, tais como Receita Federal, INSS, Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários, e demais órgãos ou repartições federais dos quais fomos habituados a depender para as manifestações sobre o exercício de nossos direitos fundamentais.

Em outras palavras, a partir do mês de agosto (ver Decreto n º 4.268, de 12/6/2002), qualquer cidadão que, por meio de procurador, ou em se tratando de empresa, por intermédio de seu representante, desejar falar pessoalmente com um agente público, sobre assunto que esteja sobre a alçada ou deliberação desse agente, deverá protocolar previamente um requerimento no qual promova a identificação completa do representante e do representado e, também, indique o assunto a ser abordado na pretendida reunião ou audiência.

E mais: poderá não ser suficiente o simples protocolo do requerimento, pois o aludido Decreto faculta que venha a ser exigida a comprovação das informações prestadas. E, ainda, mesmo assim, não haverá garantia de que o pedido de reunião ou audiência seja atendido, pois o agente público tem a faculdade de não receber o representante ou o representado.

Vale ressaltar, também, que determina o mencionado Decreto seja disponibilizado para qualquer pessoa e pela Rede Mundial de Computadores (leia-se Internet), o cadastro dos representantes inscritos perante a Presidência da República e nos demais órgãos e entidades, compreendendo Ministérios, autarquias e fundações públicas federais. Ou seja: pediu audiência ou reunião, desde que por representante, seu nome e o do representante estarão na Internet. Pelo visto, estamos na era do que poderíamos chamar de “burocracia tecnocratizada”.

Tal imbróglio burocrático se estende também para os agentes públicos, pois estes deverão, conforme o Decreto n º 4.232:

a- estar acompanhado nas audiências e reuniões de pelo menos um outro servidor público, civil ou militar;

b- manter agenda das audiências e reuniões marcadas e publicamente divulgá-las, se possível com antecedência e pela Internet; e,

c- manter arquivado registro específico das audiência e reuniões, com a relação das pessoas presentes e os assuntos tratados.

Será que tanta exigência se coaduna com o princípio da eficiência a que se refere o art. 37 da Constituição Federal? Será esse Decreto uma forma de obstaculizar atuações que possam ferir os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade também elencados no aludido art. 37?

Ao lermos a Exposição de Motivos n º 37, aprovada em 21.8.2000, que contém a proposta do Código de Conduta da Alta Administração, dela poderemos extrair a motivação originadora da disciplina em apreço, particularmente em vista do disposto n o art. 12 do Decreto n º 4.081, de 11.1.2002, (Código de Conduta Ética) também aplicável à Administração Publica Federal direta, às autarquias e às fundações públicas federais, em face do contido no art. 4º do Decreto n º 4.232 em questão.

Consoante a referida Exposição de Motivos, o ponto de partida dessas normas foi a tentativa de prevenir condutas incompatíveis com o padrão ético almejado para o serviço público (sic). Mas, ao mesmo tempo, nessa mesma exposição encontramos o expresso reconhecimento ao fato de que a resposta ao anseio por uma administração pública orientada por valores éticos não se esgota na aprovação de leis mais rigorosas, até porque leis e decretos em vigor já dispõem abundantemente sobre a conduta do servidor público (sic).

Assim, também conforme a mencionada Exposição de Motivos, o aperfeiçoamento da conduta ética do servidor público decorreria da explicitação de regras claras de comportamento e do desenvolvimento de uma estratégia específica para a sua implementação, constituindo tais regras um fator de segurança do administrador público, uma vez que norteadoras de seu comportamento enquanto no cargo e protegendo-o de acusações infundadas.

Será que ética se cria ou se institui por Decreto? É esse o sentido do princípio da legalidade?

Sem maiores indagações, o resultado da aplicação desse Decreto n º 4.232, indubitavelmente, nos fará lembrar um conto do célebre escritor Franz Kafka, intitulado “Diante da Lei” e onde estão descritas as agruras e penas de um simples homem do campo que, jovem, posta-se à porta da Justiça, pedindo para entrar na Lei e ali envelhece e morre sem ser atendido….

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!