Críticas liberadas

Justiça rejeita pedido de indenização de juiz em ação contra a Globo

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8 de julho de 2002, 17h19

A juíza da 27ª Vara Cível de São Paulo, Ana L. Liarte, rejeitou pedido de indenização por danos morais em ação proposta pelo juiz Airton Pinheiro de Castro contra a TV Globo. O juiz disse que se sentiu ofendido com reportagem do Jornal Nacional sobre o acesso ao Judiciário. A juíza não acatou os argumentos. Castro pode ainda recorrer da decisão.

Na reportagem feita pela jornalista Sônia Bridi discutia-se o acesso da população à Justiça. A reportagem citou dois casos distintos: o de uma mulher que foi presa por furtar mercadoria de pequeno valor e o de Ricardo Maluf, acusado de tráfico de entorpecentes. Nesse segundo caso, o acusado teve a liberdade provisória concedida por Castro. O juiz entrou na Justiça contra a emissora porque não concordou com o enfoque da notícia.

Para Ana Liarte, o “ocupante de cargo público, e integrante do Poder Judiciário, está sujeito a críticas”. Por isso, não aceitou as alegações do juiz.

“Ao proferir suas decisões, por mais fundamentadas e escorreitas que sejam, pode contrariar alguns interesses, vale dizer, o Juiz, mesmo que correto, nem sempre contenta a todos. E é lógico que o autor tem conhecimento deste ônus que acompanha sua vida profissional, porém, no caso específico, sentiu-se o autor moralmente atacado. Sem razão, contudo”, afirmou a juíza.

A TV Globo foi representada pelo advogado Luiz Camargo de Aranha Neto.

Leia a decisão:

PODER JUDICIÁRIO

SÃO PAULO

VIGÉSIMA SÉTIMA VARA CÍVEL

Foro Central

Proc. n° 000.00.612562-0- Ordinária

Sentença

VISTOS,

AIRTON PINHEIRO DE CASTRO, qualificado nos autos, ajuizou a presente Ação de Indenização por Danos Morais, pelo rito ordinária em face de TV GLOBO LTDA e TV GLOBO SÃO PAULO LTDA, objetivando a condenação das rés ao pagamento de indenização pelos danos à sua imagem e honra, causados por matéria jornalística.

Afirmou, em prol de sua pretensão, que o autor é magistrado, integrante dos quadros da Justiça Estadual de São Paulo, ora exercendo suas funções como Juiz Auxiliar das 1ª e 2ª Varas Centrais da Família e das Sucessões da Capital.

Alegou que ingressou na carreira da magistratura em 28 de dezembro de 1994, e, desde então, sempre desempenhou suas atividades de modo impoluto e ilibato, inexistindo qualquer mácula em sua reputação, e, como todo bom magistrado, sempre toma suas decisões de acordo com a interpretação dos fatos e do direito que mais se adequa à sua consciência, exercendo suas funções com a independência e honradez pertinentes ao cargo que ocupa.

Aduziu que, por determinação da Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, foi o autor designado, no período de 02 a 31 de janeiro de 2000, para exercer suas funções perante a 13ª Vara Criminal Central, e, dentre os diversos processos, deliberou o autor nos autos n° 1162/99 do processo que a Justiça Pública move contra Ricardo Maluf, conceder ao réu liberdade provisória, sem prejuízo da ulterior análise do mérito da ação penal, decisão que foi proferida de modo fundamentado, em atenção ao princípio constitucional respectivo, sem que tenha havido qualquer recurso por parte do Ministério Público.

Afirmou que, no dia 21 de junho de 2000, as requeridas transmitiram, no noticiário do programa jornalístico “Jornal Nacional”, cuja audiência, como se sabe pública e notoriamente internacional, informações supostamente destinadas a criticar as alegadas contradições do Poder Judiciário no País.

Entretanto, da forma como foi ao ar a matéria, verifica-se que as rés violaram a sagrada moral do cidadão e magistrado autor, bem como sua imagem, quer por não fornecerem maiores dados sobre o processo acima aludido, quer por compararem o caso aludido no item supra, com outro, referente a furto, dando a entender que o magistrado deixara presa a pessoa humilde processada por furto, mas mandara soltar a pessoa – alegadamente – de posses, processada por tráfico de entorpecentes (sendo que o autor não participou do processo que supostamente gerara a prisão da pessoa do sexo feminino que a matéria refere como tendo praticado furto); seja por editarem a matéria, logo após mencionarem o nome do ora autor no vídeo, com entrevista de Deputada Federal sustentando que os juízes merecem ser fiscalizados e punidos, reforçando a tônica de que o ora autor teria agido de forma irregular ou ilícita.

Salientou que o autor, ainda tentou, mediante a intervenção de seu órgão de classe, a respeitável ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MAGISTRADOS – APAMAGIS -, que as rés realizassem a competente retratação, esclarecendo o público sobre o que realmente ocorreu, reparando a honra e a imagem do requerente, entretanto, as requeridas sequer se dignaram a oferecer ao autor qualquer resposta.

Pugnou, ao final, pela procedência da ação, requerendo as medidas processuais atinentes à espécie.


Com a inicial, vieram os documentos de fls. 30/305.

Após regular citação, a requerida TV GLOBO LTDA apresentou.

Afirmou que a responsabilidade civil ou patrimonial das

empresas jornalísticas, tanto em sua conotação material quanto moral, está disciplinada, exclusivamente, pela Lei n° 5.250/67 que foi recepcionada e integra o artigo 220, parágrafo 1° da Constituição Federal, estabelecendo hipóteses visando a contenção dos abusos e ilegalidades da imprensa, tornando os dispositivos do Código Civil inaplicáveis às hipóteses de “abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação”.

Alegou que a reportagem tinha como objetivo mostrar a induvidosa existência de diferença no acesso à Justiça, encontrado pelas diversas classes sociais, sendo que, em nenhum momento, a jornalista Sonia Bridi disse ou demonstrou ser o autor o magistrado do caso da moça condenada por furto no supermercado, assim, qualquer vínculo possível de ser feito entre o autor e a reportagem deve ater-se à exibição da decisão proferida no processo criminal, cujo acusado, Sr. Ricardo Maluf, teve a liberdade provisória concedida por ato do autor.

Argumentou que o objetivo da reportagem foi demonstrar que uma pessoa com melhores condições financeiras, obtêm melhores resultados na esfera judicial, considerando o seu poder aquisitivo para a contratação de melhores advogados, peritos, etc, daí a comparação entre o acusado Ricardo Maluf, e a moça de origem humilde.

Na verdade, como o crime imputado ao Sr. Ricardo Maluf é caracterizado como inafiançável e entendendo a jornalista demonstrar um lado oposto na busca da justiça, optou por retratar esse caso, sendo que da análise do processo juntado aos autos pelo autor depreende-se que a quantidade de drogas apreendida pela Polícia no apartamento do acusado não poderia ser entendido como consumo próprio, por mais dependente químico que fosse o acusado, e tal fato, somado a apreensão da balança de precisão levou o Ministério Público a denunciar o acusado por tráfico, e todos os fatos corroboram com o entendimento critico e desfavorável pela liberdade provisória concedida pelo autor, trazido na série de reportagens sobre o sistema judiciário brasileiro.

Acrescentou que a ré apenas utilizou-se do seu direito e dever de informação e divulgação dos fatos ocorridos e o direito de informar decorre e é corolário de um outro que lhe dá origem e dá razão de existir: o direito da sociedade de ser informada, inexistindo ilicitude.

Acrescentou que a reportagem trouxe, também, o depoimento da advogada e também deputada federal, Dra. Zulaiê Cobra, que acumulou experiências suficientes para ser nomeada relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional, cujo tema é a Reforma do Judiciário, sendo o tema debatido com ênfase pela sociedade, e, um dos pontos da discussão foi a ausência de fiscalização dos atos dos magistrados, e a ré, em nenhum momento, fez qualquer juízo de valor acerca da delicada questão, mas trouxe ao público um ponto polêmico e de bastante discussão, por se tratar de interesse social.

Esclareceu que em nenhum momento pode-se entender pela violação do direito à honra do Autor, que não teve sua reputação profissional atacada. Ademais, o nome do autor sequer foi mencionado na controvertida reportagem, sendo que apenas foi exibida a imagem do despacho concedido por ele; quando da concessão do benefício.

Requereu a improcedência da ação, com a inversão do ônus da sucumbência.

Réplica às fls. 370/379.

VIERAM-ME CONCLUSOS.

É O QUE ENTENDO DE RIGOR.

DECIDO.

Presente a hipótese contida no artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, passo ao julgamento da lide, independentemente da produção de outras provas.

Em face do pedido e da causa de pedir, inegável fundarse a pretensão na Lei de Imprensa, pois busca o autor ver-se indenizado por dano moral, por suposta ofensa a sua honra, decorrente de reportagem veiculada em programa de televisão.

Inegável o nexo da pretensão com o conteúdo da matéria jornalística, tido como calunioso e difamatório, o que implica, porque veiculada essa por empresa que explora meio de comunicação, a análise da questão à luz da legislação específica, qual seja, a Lei n° 5.250/67, afastada a pretensão do autor de sujeitar a hipótese às regras do direito comum (artigo 159, do Código Civil), na medida que vigente a norma contida no inciso I do artigo 49 da Lei 5250/67, que trata da responsabilidade civil nas hipóteses de violação de direito ou de prejuízo no exercício da liberdade de manifestação do pensamento ou de informação, com dolo ou culpa.

Restou incontroverso nos autos o teor da reportagem levada ao ar no dia 21 de junho de 2000, parcialmente transcrita pelo autor na petição inicial.


A ação é improcedente.

Em que pesem os argumentos do autor, o fato é que, pela prova dos autos e leitura dos trechos da reportagem veiculada pelas requeridas, ausente a ofensa à honra e dignidade do autor a permitir a reparação reclamada.

Situando-se a reportagem dentro do contexto, assim entendido o momento vivido pela sociedade, tem-se que, na ocasião, promovia-se intensa discussão em todos os segmentos da sociedade acerca do controle externo do Poder Judiciário. Assim, oportuna a reportagem, se for levado em consideração o papel primordial representado pela imprensa, qual seja, de informar à população todos os fatos quais tenha conhecimento, para que o povo possa delas extrair suas opiniões concernentes à política, economia, cultura, e demais assuntos de interesse geral, dentre os quais destacam-se os atos daqueles que integram os três poderes: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Mesmo porque, odiosos os tempos em que a imprensa foi abruptamente calada por Atos Institucionais…

Assim, o Juiz, na qualidade de ocupante de cargo público, e integrante do Poder Judiciário, está sujeito a críticas. Ao proferir suas decisões, por mais fundamentadas e escorreitas que sejam, pode contrariar alguns interesses, vale dizer, o Juiz, mesmo que correto, nem sempre contenta a todos. E é lógico que o autor tem conhecimento deste ônus que acompanha sua vida profissional, porém, no caso específico, sentiu-se o autor moralmente atacado. Sem razão, contudo.

A reportagem abrangia o amplo tema do acesso à Justiça, que, pela Constituição da República, é a todos resguardada. Analisando friamente a questão, tomando por base alguns casos concretos, citou a repórter dois casos distintos: o da mulher simples que estava recolhida ao cárcere pela prática de furto de mercadoria de pequeno valor e o do acusado de tráfico de entorpecentes, de nível mais elevado, que havia sido solto, por decisão – bem fundamentada – do autor.

A reportagem não mencionou que o autor fosse responsável pela prisão da mulher e nem acusou o autor de ter proferido a decisão libertadora, em função do estado de riqueza (?) do “traficante”. Limitou-se, apenas, a salientar que as pessoas com melhor poder aquisitivo têm condições de contratar advogados que defenderão com mais vigor os seus interesses…

Vê-se, então, que a ré limitou-se a informar os eventos derivados de trabalho jornalístico e material recolhido de fonte (despacho do autor concedendo a liberdade provisória ao acusado de prática de tráfico de entorpecentes), não convencendo a prova haver ela agido com dolo ou má-fé, ainda mais se considerado o conteúdo dos informes de evidente interesse da comunidade, até pelos efeitos decorrentes do caso noticiado.

Daí e porque o conteúdo da matéria veiculada no dia referido não diz respeito apenas à vida privada do autor, mas à atuação de todos os integrantes do Poder Judiciário, sendo que a decisão proferida pelo autor foi mencionada como parte integrante da matéria, sem qualquer destaque ou enfoque à sua imparcialidade, implica reconhecer que a matéria em nada denegriu a imagem do autor, acarretando, por conseqüencia, o afastamento da pretensão por ausente ânimo difamatório ou caluniador.

Por derradeiro, lembre-se, quanto à necessidade de demonstração da negligência e imprudência, ensinando a doutrina que: ” A calúnia e a injúria são puníveis, à título de dolo. Poder-se-ia imaginar que somente quando o órgão de comunicação atuasse como dolo direito, haveria a obrigação de indenizar, repita-se. Porém, basta a culpa, verificada quando a notícia é publicada ou difundida sem as cautelas necessárias para saber-se que ela é veraz. Em assim agindo, somente com culpa, incide a obrigação de indenizar. A ilicitude se perfaz com a negligência e imprudência. A vontade deliberada de ofender, sempre presente em notícias agravantes, dá ensejo ao dano moral, como também a ausência dos cuidados necessários ao exercício da profissão de jornalista” (Antonio Jeová da Silva Santos, in “Dano Moral Indenizável”, 2ª edição, Lejus, pág. 332).

Na esteira de tais considerações, hei de negar acolhida à pretensão deduzida na inicial.

POSTO ISSO, e diante do mais que dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTE a ação proposta por AIRTON PINHEIRO DE CASTRO em face de TV GLOBO LTDA e TV GLOBO SÃO PAULO LTDA.

Em razão da sucumbência, carreio ao autor o pagamento das custas e demais despesas processuais e verba honorária que fixo em R$ 800,00 (oitocentos reais), atenta ao disposto no parágrafo 4° do artigo 20 do Código de Processo Civil.

P. R. I. C.

São Paulo, 18 de junho de 2002.

ANA LUZA LIARTE

Juíza de Direito

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