Política suicida

Os gastos com a dívida e a africanização da América Latina

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8 de julho de 2002, 12h34

O exame da gravidade econômica porque está passando toda a América Latina é assustador. O canto da sereia (leia-se Consenso de Washington) era no sentido de que os países pobres e ou emergentes para que pudessem adentrar no mundo novo da riqueza fácil, da fartura, deveriam abrir desde logo suas fronteiras ao capital transnacional, o que foi feito, sem nenhuma reserva e ou ressalva.

Com as privatizações, os bens foram vendidos. Tudo foi a leilão: desde as empresas prestadoras de serviços públicos até manufatureiras. Durante um período curto, as vendas desses bens ajudaram a equilibrar os Orçamentos nacionais e forneceram recursos para manter o consumo. No fim das contas, a receita da privatização rendeu muito pouco em matéria de infra-estrutura melhor ou exportações mais competitivas, sendo que na contrapartida, as dívidas nacionais incharam.

No Brasil, por exemplo, nos oito anos de governo neoliberal de FHC, a dívida brasileira que era inicialmente de R$ 62 bilhões passou a ter somente esse ano R$ 39,3 bilhões de juros — o equivalente ao orçamento anual da Saúde. A dívida pública líquida não pára de crescer e atingiu em maio o montante de R$ 708,454 bilhões (56% do PIB), R$ 23,784 bilhões a mais do que os R$ 684,637 bilhões (54,6% do PIB) em abril. Já a dívida mobiliária federal está em R$ 639,4 bilhões (50,6% do PIB), sendo 28,1% em títulos vinculados à variação cambial, segundo números do Banco Central divulgados no último dia 27 de junho.

A adoção dessa política econômica globalizada que não tem compromisso com a vida, com o social, na prática foi a responsável pela desindustrialização e desnacionalização, provocando o maior desemprego da história, bem como a própria quebra de nossa indústria, de nosso o comércio e de nossa agricultura, sem o resultado esperado que era o de trazer benefício duradouro à população.

O exame desse quadro desolador é certificado pelo conhecido economista Rudiger Dornbusch, que já foi chefe da assessoria econômica do FMI e do Banco Mundial e atual professor de economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Ele concluiu que a América Latina estava se saindo bem quando o dinheiro fácil entrava, mas que essa época está praticamente terminada e que as condições econômicas se agravam em praticamente toda a América Latina, onde a coesão social se desfaz e a instabilidade política aumenta.

Também afirma que esses anos onde os países emergentes puderam contar com dinheiro fácil extraído da poupança dos países ricos, na verdade foram anos em que quem se alimentou foram os gafanhotos, bastando ver o quanto cresceu a dívida interna e externa de cada um desses países.

A política de exportação planejada para todo o comércio internacional virou um fiasco, porque os países ricos exigem dos países pobres que abram seus mercados, sem quaisquer restrições. Mas eles próprios não o fazem, em defesa da produção interna, tal como vem ocorrendo com a questão do nosso aço e ou dos produtos hortigranjeiros e ou da agricultura em geral. Até mesmo os sucos sofrem restrições conhecidas, quer através dos subsídios internos aos produtores locais, quer através de subterfúgios com a imposição de penalidades legais, a pretexto de práticas de antiduping.

Apesar de toda as promessas do modelo neoliberal transnacional globalizante de implantação de uma nova economia mundial de prosperidade ímpar para todos, o resultado prático é que nos últimos 20 anos, o PIB per capita latino-americano só cresceu em média 0,35% ao ano. Nesse ritmo, uma economia levaria 200 anos para dobrar de tamanho.

Na Ásia, o padrão de vida dobra a cada dez anos. Com um crescimento tão anêmico, como pode a América Latina esperar ser capaz de competir no comércio mundial, a não ser por meio da redução dos salários? A culpa da estagnação econômica não é do azar, mas do mau governo. Se a América Latina não mudar, ela pode começar a se parecer cada vez mais com a África.

Leia artigo do economista Rudiger Dornbusch publicado na Folha de S. Paulo – 7/7.

Anos de Gafanhotos

A América Latina estava se saindo bem quando o dinheiro fácil entrava, mas essa época está praticamente terminada.

As más notícias não param de chegar à América Latina. As condições econômicas se agravam em praticamente toda a região, a coesão social se desfaz e a instabilidade política aumenta. Não surpreende, já que boa parte da América Latina passou os últimos 20 anos indo a lugar nenhum. Os bens eram vendidos e as dívidas nacionais inchavam, mas não foi conquistado praticamente nada benéfico e duradouro. Esses foram anos em que quem se alimentou foram os gafanhotos.

Nos últimos 20 anos, o PIB per capita latino-americano cresceu em média 0,35% ao ano. Nesse ritmo, uma economia levaria 200 anos para dobrar de tamanho. Na Ásia, o padrão de vida dobra a cada dez anos. Com um crescimento tão anêmico, como pode a América Latina esperar ser capaz de competir no comércio mundial, a não ser por meio da redução dos salários? A culpa da estagnação econômica não é do azar, mas do mau governo. Se a América Latina não mudar, ela pode começar a se parecer cada vez mais com a África. São quatro os fatores que conduziram a região a esse rumo.

Em primeiro lugar, na corrida ao ouro que foi a privatização latino-americana, tudo foi a leilão, desde as empresas prestadoras de serviços públicos até manufatureiras. Durante um período curto, as vendas desses bens ajudaram a equilibrar os Orçamentos nacionais e forneceram recursos para manter o consumo. No fim das contas, a receita da privatização rendeu muito pouco em matéria de infra-estrutura melhor ou exportações mais competitivas.

Pior ainda, a venda das estatais foi acompanhada pela contração de empréstimos externos maciços. Em alguns casos, especialmente o da Argentina, os empréstimos contraídos por compradores domésticos esgotaram todas as linhas de crédito disponíveis. Outros países não caíram até o nível da Argentina, mas conseguir crédito passou a ser um problema para praticamente todos os países da América Latina.

Em segundo lugar, como as reformas não resultaram em prosperidade, a população já está farta delas. Os fluxos de capital que entraram nos países geraram um efeito de riqueza, mas apenas enquanto duraram. Quando o dinheiro parou de entrar, a riqueza acabou. Nenhum político em sã consciência vai pensar em propor mais uma década de reformas estruturais. No entanto, sem reformas em maior número e mais profundas, não haverá condições prévias que possibilitem o crescimento econômico e atraiam investimentos, sem os quais não há crescimento possível.

Esse dilema do desenvolvimento aponta para o terceiro fator: a política ineficaz. Desapareceram os governos que operavam numa linha tecnocrática e que viam o crescimento econômico como uma maré ascendente que levanta todas as embarcações. Na Argentina, sucedem-se os presidentes ineptos. As instituições são derrubadas, os direitos de propriedade questionados e permanece um esforço de redistribuição aleatório e cada vez mais corrupto.

A situação não é muito melhor no Peru e na Venezuela; e o Brasil corre o risco de começar a enveredar pelo mesmo caminho dentro em pouco.

A popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva e de sua equipe, que lideram as pesquisas de intenção de voto nas eleições presidenciais brasileiras, serve como aviso de que boa parte do público latino-americano está disposta a rejeitar os governos tradicionais.

No México, a democratização trouxe estabilidade maior, mas ela pode se mostrar efêmera. O peso está sobrevalorizado ao extremo. Se a balança comercial externa se deteriorar ainda mais, a economia enfrentará um pouso difícil.

O último fator a levar em conta é o índice baixíssimo de poupança, que é endêmico nas Américas.

A Venezuela sonha com os anos gordos da Opep, na década de 70 -que ela deixou passar em branco porque não desenvolveu seu setor petrolífero. Os ricos da Argentina estão em férias em Miami, talvez para sempre. Brasil e México são ótimos exemplos de países que, em vez de poupar, venderam seu patrimônio e contraíram empréstimos.

O contraste com a Ásia é notável. Consideremos a China, onde os índices de poupança e investimento são de quase 40%, onde a conta corrente apresenta superávit e não há dívida pública. As instituições governamentais favorecem o mercado e a população é instruída, disciplinada e flexível em seus estudos. As recompensas para quem demonstra iniciativa e assume riscos são imediatas.

É verdade que a China permanece um país pobre. Seu PIB per capita é a metade do brasileiro. Mas, com o crescimento na região costeira chinesa chegando a possivelmente 15% ao ano, quem pode duvidar seriamente de que o país vá superar o Brasil nos próximos 15 anos?

A América Latina estava se saindo bem quando o dinheiro fácil entrava, mas essa época está praticamente terminada. Assim, podemos prever mais notícias ruins -econômicas, sociais e políticas-para os próximos anos. Demagogos como o venezuelano Hugo Chávez ou Carlos Menem podem soar como piada de mau gosto, mas quem se importa com o destino da América Latina não deveria estar dando risada.

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