Eleições 2002

Leia a decisão do TRE-SP que condena Raul Gil, TV Record e Maluf.

Autor

6 de julho de 2002, 13h51

A TV Record, o apresentador Raul Gil e o ex-prefeito Paulo Maluf sofreram punições recentemente pela Justiça eleitoral por causa do quadro “Para quem você tira o chapéu”. O juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, Décio Notarangeli, aplicou uma multa de R$ 53 mil para cada um deles. O pedido foi feito pelo PSDB, representado pelo advogado Ricardo Penteado.

O TRE-SP advertiu ainda que a programação da emissora pode ser tirada do ar por 24 horas se continuar a transgredir as normas da propaganda eleitoral.

A emissora reagiu de forma radical, após a punição. A presença de candidatos, fora dos noticiários, foi proibida na programação da empresa – o que foi considerado um exagero até mesmo pelo TRE paulista.

No programa que gerou o processo, Raul Gil elogiou o ex-prefeito e afirmou que ele “estava se candidatando mais uma vez ao governo”. A lei eleitoral proíbe esse tipo de menção ao candidato. A propaganda eleitoral na televisão é restrita ao horário gratuito, que terá início em 20 de agosto.

Segundo o juiz, o apresentador formulou indagações sobre temas políticos, como cobrança de pedágio em rodovias e o aumento da violência, questões que de resto fazem parte da plataforma de qualquer candidato.

“Empolgado com a oportunidade que lhe fora dada, o entrevistado não se limitou a expor seu ponto de vista contrário à cobrança de pedágio. Foi além, de forma velada tornou pública sua candidatura ao Governo Estadual e avançou para o campo das promessas de campanha”, afirmou o juiz.

(Leia notícia sobre as regras eleitorais).

Veja a sentença

Tribunal Regional Eleitoral

Estado de São Paulo

Proc. nº 12.581

Vistos, etc.

O Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB ofereceu Representação contra Rede Record de Televisão, Raul Gil e Paulo Salim Maluf, aduzindo, em síntese, que no dia 22 de abril último, no programa “Raul Gil tamanho Família”, transmitindo pela Rede Record de Televisão, no quadro denominado “Para quem você tira o chapéu”, o apresentador Raul Gil realizou aberta propaganda eleitoral em favor de Paulo Salim Maluf, a quem fez rasgados elogios, apresentando-o como “pessoa humilde e maravilhosa”, além de afirmar que estava “se candidatando mais uma vez ao Governo”.

Paulo Maluf, por sua vez, prossegue a inicial, assumiu a candidatura ao Governo do Estado e fez abertamente promessas de campanha ao abordar questões relacionadas à cobrança de pedágio nas rodovias e ao aumento da violência, durante mais de uma hora de programa, sem intervalos comerciais, tudo demonstrando a ocorrência de propaganda eleitoral antecipada, atividade proibida pela Lei nº 9.504/97 até o dia 05 de julho do ano da eleição.

Notificados, os requeridos responderam.

A emissora nega ter agido com dolo ou culpa no episódio, argumentando com a inexistência de responsabilidade objetiva e de ilegalidade no convite feito ao entrevistado. Nega ter incitado, permitido ou desejado a divulgação de falas ou conteúdos que tivessem caráter de propaganda eleitoral e que não tem controle sobre a manisfestação do entrevistado, que é livre para responder de acordo com as pessoas ou temas apresentados.

Nega tenha havido favorecimento, divulgação de propostas ou metas, mas mera discussão de idéias segundo a liberdade de manifestação do pensamento e o direito de informação (fls 52/58).

O apresentador do programa argui ilegetimidade passiva ad causam. No mérito, nega a existência de culpa ou má-fé, aduzindo que não há ilegalidade no convite formulado ao entrevistado. Nega a existência de propaganda antecipada sem que haja candidato escolhido em convenção e que a tenha realizado em favor do entrevistado.

Diz que não tem responsabilidade sobre manifestação do convidado, que não é produtor do programa, apenas apresentador, que o programa é gravado e que é da emissora a responsabilidade pela edição e liberação das imagens. De resto, argumenta que recebe bem e de forma calorosa todos os convidados, que não houve divulgação de propostas ou metas, tratamento privilegiado e que agiu dentro da liberdade de manifestação artística, tendo havido debate de idéias, assegurado, inclusive, direito de resposta a quem se sentisse ofendido (fls. 73/86).

Paulo Maluf nega a existência de propaganda eleitoral e que tenha pedido votos ou afirmado que seria candidato ao Governo de São Paulo. Diz que agiu amparado pela liberdade de expressão do pensamento, admitindo, quanto muito, a ocorrência de promoção de caráter pessoal, conduta essa não vedada pela lei (fls. 89/98).

O parecer do Ministério Público Eleitoral é pela procedência da representação (fls. 103/113).

Relatos.

Decido.


Legitimados para figurar como parte no pólo passivo da relação jurídica processual, no caso de propaganda eleitoral antecipada, são prévio conhecimento, o beneficiário desta (art. 36, parágrafo 3º, da Lei nº 9.504/97).

No caso em apreço, Raul Gil é parte legítima ad causam, pois não apenas foi quem apresentou o programa televisivo em que ocorreu a conduta impugnada, mas também porque a ele foi atribuída a autoria de afirmações que podem, em tese, configurar propaganda eleitoral irregular, consoante se infere dos trechos transcritos na inicial (fls. 06 e 07).

Se houve ou não infração à Lei Eleitoral isso é matéria de mérito, mas em termos abstratos, no plano das condições da ação, não há dúvida de que o requerido tem legitimidade para responder ao pedido. Rejeito, pois, a preliminar argüida.

Cuida-se de representação por ofensa ao disposto no art. 36 da Lei nº 9.504/97 pela realização de propaganda eleitoral irregular antecipada. E procede a pretensão inicial.

Em matéria de propaganda eleitoral vigora o princípio da liberdade de propaganda, observadas as restrições de índole constitucional (art.220, parágrafo 1º, CF) e as previstas na Lei nº 9.504/97.

Dentre estas, a primeira diz respeito ao aspecto temporal da propaganda eleitoral – entenda-se propaganda de campanha – que somente é permitida após o dia 05 de Julho do ano da eleição (art., 36, caput, da Lei nº 9.504/97).

Como a matéria versada nos autos foi transmitida antes dessa data (22/04/02), dependendo de seu conteúdo o fato pode, sim, em tese, configurar propaganda eleitoral irregular antecipada. É o que se verá adiante, com a ressalva de que nesta data examinei previamente o conteúdo da fita alusiva ao programa sobre o qual versa a presente representação.

Propaganda, conceitua Fávila Ribeiro, “é um conjunto de técnicas empregadas para sugestionar pessoas na tomada de decisão. Despreza a propaganda a argumentação racional, prescindido do esforço persuasivo para demonstração lógica da procedência de um tema. Procura, isto sim, desencadear, ostensiva ou veladamente, estados emocionais que possam exercer influência sobre as pessoas. Por isso mesmo, com a propaganda não se coaduna a análise crítica de diferentes posições, desde que procura induzir por recursos que atuam diretamente no subconsciente individual”.(1).

Realizada com o propósito de influir na opinião ou na conduta alheia, ensina o renomado mestre, agora com apoio na lição de Serge Tchakhotine, “a propaganda procura fomentar a criação de reflexos condicionados estudados por Pavlov, utilizando um número relativamente restrito de fórmulas decisivas e concisas que devem ser cravadas a grandes golpes no psiquismo das massas postas de antemão em estado de impressionabilidade mais acentuado”. (2)

É o que se faz por meio de propaganda revelada, ostensiva, demonstrando às claras o seu objetivo: ou de revelação retardada, obscurecendo temporariamente o verdadeiro objetivo colimado; e oculta, quando seu caráter fica sempre camuflado, escondendo suas verdadeiras intenções. Esta modalidade, aliás, é largamente utilizada nos casos de propaganda eleitoral antecipada, para dissimular o seu verdadeiro propósito.

Quanto à técnica, a propaganda pode ser resumida a uma estratégia ofensiva, com o propósito de ditar a tônica da campanha a ser cumprida, sitiar o competido no pólo defensivo, embaraçando-o com os temas propostos e imputações difundidas; ou de aguçamento a reações instintivas mediante criação de um quadro artificial para provocar medo e ansiedade nos indivíduos, ao mesmo tempo em que exalta os aspectos positivos do grupo oposto; ou de indução a condicionamentos psicológicos com a utilização de recursos para atuar no subconsciente, como a repetição intensiva de mensagens. (3)

No caso em apreço, não obstante a negativa dos requeridos, forçosos convir que houve efetivamente propaganda eleitoral antecipada para a qual todos concorreram de modo eficaz e decisivo.

Com efeito, embora neste momento inexista impedimento legal à realização de entrevista, fazê-la na prática com políticos que notoriamente pretendem postular um mandato representa um sério risco, pois o assunto tende a resvalar no campo da propaganda eleitoral, hipótese em que os envolvidos evidentemente ficam sujeitos aos excessos cometidos.

Aliás, foi o que reconheceu ainda recentemente o Colendo TSE ao responder questão de ordem sobre o assunto, a oportunidade em que deixou assentado o entendimento de que “eventuais abusos ou excessos, inclusive realização de propaganda eleitoral antes do memento próprio, poderão ser investigados e punidos na forma da lei”(Res. Nº 21.072, de 23/04/02, Instrução nº 57, Classe 12ª, DF, Rel. Min. Fernando Neves).


O interesse primário da emissora, como é óbvio, repousa na obtenção de aumento de pontos nos níveis de audiência da opinião pública e secundariamente no conhecimento e divulgação das idéias e pensamento político do entrevistado para satisfazer o interesse da população. O entrevistado, por sua vez, de olho nas eleições e consciente do formidável poder de comunicação que lhe é proporcionado, não raras vezes acaba expondo seus planos de governo, suas metas, suas propostas, em suma, sua plataforma de candidato. Ambos, em comum, não estão interessados em amenidades ou temas alheios ao pleito que se a vizinha.

Foi o que se viu no programa levado ao ar pela Rede Record de Televisão. Para tornar o quadro a emissora incluiu e o apresentador formulou indagações sobre temas políticos, como cobrança de pedágio em rodovias e o aumento da violência, questões que de resto fazem parte da plataforma de qualquer candidato, especialmente de Paulo Maluf.

Empolgado com a oportunidade que lhe fora dada, o entrevistado não se limitou a expor seu ponto de vista contrário à cobrança de pedágio. Foi além, de forma velada tornou pública sua candidatura ao Governo Estadual e avançou para o campo das promessas de campanha, afirmado que enfrentaria, sim, as concessionárias, que “das vinte e três horas, em todo o Estado de São Paulo, das vinte e três horas, onze da noite, até seis da manhã, nem automóvel, nem perueiros, nem ônibus, nem caminhão paga pedágio, de noite vai passar de graça em todo o Estado de São Paulo, esse é o meu compromisso“.

Nesse ponto, o requerido Raul Gil acabou revelando e traduzindo para o público o que já ficara óbvio, que Paulo Maluf está “se candidatando mais uma vez ao Governo“. Na seqüência, ao abordar a questão da violência, o entrevistado novamente se dirige ao expectadores, agora de forma clara,direta, ostensiva, dizendo, “meus amigos, se o Paulo Maluf for Governador, escrevam aí: queimou colchão, vais dormir no chão, não tem conversa fiada…Tem mais. Se quiser colchão novo, se quiser colchão novo, vá pedir para sua família. Com o dinheiro do governo não compro colchão novo para bandido“.

E para concluir sua fala, de modo consciente, explícito, sem rodeios, alto e bom som, sabendo que seria beneficiado com a medida, reiterou a antiga promessa que já é marca registrada de suas campanhas: “Comigo o bandido vai ter medo da polícia, o Garra e a Rota vão pra rua e o bandido vai pra cadeia“.

Tais afirmações feitas na televisão para uma população carente, ameaçada, amedrontada pela violência, mais que mera promoção pessoal ou debate de idéias, como afirmam os requeridos, constituem, sim forma explícita de propaganda eleitoral destinada a influenciar o pensamento do eleitor de modo a que este seja levado a escolher o nome de Paulo Maluf no momento do voto, o que a todos é vedado pelo art. 36 da Lei Eleitoral. Esse é o mais puro exemplo de propaganda de captação de votos.

Sem razão os requeridos quando invocam a liberdade de manifestação do pensamento e o caráter puramente jornalístico da entrevista. Programa jornalístico é uma expressão composta derivada de jornal, que se traduz por gazeta, folha, periódico, etc. No sentido que nos interessa, ensina Darcy Arruda Miranda, jornal é “veiculo de divulgação de notícias. Antigamente, restringia-se à divulgação escrita, todavia, com o advento da radiodifusão e da televisão, dilatou-se o seu campo para abranger a notícia falada e visualizada”. (4)

Programa jornalístico, pois nada mais é que a adaptação da forma tradicional de jornal aos meios televisivo, radiofônico, cinematográfico, para divulgação de notícias. Não há confundir, todavia, divulgação de notícias com criação de notícias. A propósito, é o que observa Olivar Coneglian, in verbis: “No tocante ao programa jornalístico, tudo aquilo que foi notícia pode ser levado ao ar. Se a emissora dá a notícia de que determinado candidato salvou um menino de um desastre, não está ela privilegiando o candidato, mas dando uma notícia. Se no programa jornalístico, a emissora relata o fato de que determinado candidato ofendeu a colônia do País X, durante almoço no Clube das Senhoras Loiras, não está diminuindo esse candidato, mas dando notícia que o próprio candidato produziu”. (5)

Na esteira desse ensinamento, está claro demais que ao promover a entrevista com requerido a emissora não se limitou a fazer divulgação de notícias, como é da índole do programa jornalístico, mas a criar um fato – a entrevista em si – para transforma-lo em notícia. Logo, não há reconhecer no programa levado ao ar pela requerida o caráter puramente jornalístico do evento.

Por outro lado, não há se falar em responsabilidade objetiva. Tendo sido a responsável pela concepção, montagem, gravação, edição e divulgação do programa em que houve propaganda eleitoral antecipada, forçoso convir que a emissora contribuiu de forma decisiva para o resultado danoso.

Ao não exercer autocontrole (plenamente possível e exigível) sobre o conteúdo do programa previamente gravado e ao não prever o resultado decorrente de sua divulgação, que naquelas condições era plenamente previsível, a emissora agiu com manifesta culpa, excedendo-se no exercício da liberdade de informação, que não é nem pode ser absoluta, incidindo, assim, na conduta punível prevista no art. 36, parágrafo 3º, da Lei nº 9.504/97.

Poder-se-ia afirmar que a culpa, no caso, aproxima-se e muito do dolo eventual, pois entre desistir de levar ao ar um programa gravado e editado contendo cenas de propaganda eleitoral ilícita e prosseguir na temerária empreitada a emissora simplesmente decidiu assumir o risco de produzir o resultado. Não pode, pois falar em responsabilidade objetiva.

Em suma, demonstrado de forma clara a existência de propaganda eleitoral antecipada para a qual os requeridos concorreram de forma eficaz e decisiva, impõe-se o acolhimento da representação. No tocante à dosimetria da pena, tendo em vista a gravidade, o alcance e a extensão do ilícito, perpetrado por influente meio de comunicação social, com forte impacto sobre a população, abuso de concessão de serviço público e prejuízo para o equilíbrio da disputa eleitoral mal iniciada, impõe-se sejam as multas fixadas em seu grau máximo para assegurar o caráter preventivo e reparatório da punição aplicada.

Em face do exposto, Julgo Procedente a representação e Condeno Rede Record de Televiso, Raul Gil e Paulo Salim Maluf individualmente no pagamento de multa no valor de cinqüenta mil (50.000) UFIR prevista no art. 36, parágrafo 3º, da Lei nº 9.504/97, ficando a emissora formalmente advertida de que a transgressão das normas alusivas à propaganda eleitoral poderá sujeita-la à pena de suspensão de sua transmissão normal, por 24 horas, de acordo com o art. 56 da Lei nº 9.504/97.

P.R.I. e cumpra-se.

São Paulo, 18 de junho de 2002.

Décio Notarangeli

Juiz Auxiliar – TRE-SP

Notas de rodapé

1 – Direito Eleitoral, Forense, 4º edição, 1997, pág. 379.

2- Ob. Cit., pág. 380.

3- Ob. Cit, págs. 381/383

4- Comentários à Lei de Imprensa, 3ª edição, pág. 54

5- Radiografia da Lei das Eleições, Juruá, 1998, págs. 262/263

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!