Mundo na Web

O caso da banda avantajada e o acesso à Internet

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5 de julho de 2002, 12h10

Quando uma interpretação leva ao absurdo, já se sabe logo que ela não serve e que outra precisa ser encontrada.

Quando escrevemos sobre o polêmico tema do acesso em banda larga em 20 outubro de 2001 (1), nossa caixa postal foi inundada com e-mail’s de todo o país e até do exterior com mensagens de apoio e considerações em relação à discussão colocada em pauta (2) na Revista Consultor Jurídico (3). Hoje, retornamos ao tema para complementar nossos escritos com algumas considerações importantes e que não podem ser esquecidas no debate:

01. René David quando dizia “ter-se afastado, ao optar pelo estudo do Direito Comparado, dos seus colegas que se dedicaram exclusivamente à exegese das leis e da jurisprudência do seu país, fazendo um trabalho que certamente é útil, acrescentava que o jurista não deve considerar as leis e as decisões jurisprudenciais como fetiches, pois a sua missão consiste em contribuir de modo constante no aprimoramento do direito, que está sempre ameaçado de esclerose, e que, especialmente em nossa época, exige imperiosamente ser renovado.”;

02. O grande Fábio Konder Comparato, em seu artigo “Estado, empresa e função social” lembra que não se pode admitir que o lucro e toda atividade econômica da empresa estejam dissociados da questão social envolvida;

03. Em seu artigo (importantíssimo para o debate atual) “Empresa. Abuso de Poder Econômico. Proteção ao consumidor (1)” – Sérgio Novais Dias, conclui que tanto a liberdade de empresa, como de concorrência, não podem exercitar-se em prejuízo dos legítimos interesses econômicos da população. É preciso conciliar a proteção dos interesses dos consumidores com a liberdade da empresa e da concorrência”. A propósito, eis a razão pela qual não me convence as argumentações que fazem referência às determinações da ANATEL como única responsável pela situação que está sendo considerada irregular na prestação do acesso via banda larga à Internet.

Ainda no texto em destaque (de leitura recomendada), Novais Dias lembra que as leis de repressão ao abuso do poder econômico, aliadas ao Código de Defesa do Consumidor e à Lei de Ação Civil Pública, formam o aparelhamento jurídico para a realização da função social da empresa. Diz ainda que o Brasil é conhecido pelas excelentes leis que dispõe e ao mesmo tempo pela sua quase total inaplicação.

“É preciso, antes de tudo, uma mudança de mentalidade e uma conscientização de todo o povo de seus direitos e das suas obrigações. A efetiva função social da empresa tem de ser alcançada, os abusos do poder econômico devem ser reprimidos, o consumidor haverá de ser protegido e defendido neste país”.

Que o futuro da sociedade capitalista passa por estas mudanças, aliada à melhor distribuição da riqueza nacional que precisa de fato ocorrer sem demora. A liberdade da empresa e da concorrência têm amplo espaço na medida em que se realiza a finalidade social da propriedade e da empresa. Citando Konder Comparato, lembra ao final que “a soberania dos economicamente fracos há de exercer-se, em nosso País, no sentido do desenvolvimento nacional. Não basta, porém, a declaração solene de objetivos no texto constitucional. Importa, sobretudo, organizar a sociedade para a consecução desse resultado, com o aparelhamento de poderes adequados e controlados”.

Eis algumas das questões principais que não podem escapar sorrateiramente do debate. A cada dia que passa, imagino o tanto quanto Hans Kelsen (5) deve irritar-se com a não compreensão de seu pensamento e a colocação de inacreditáveis conclusões em sua boca. A ciência jurídica não pode mais ser encarada como os Romanos a encaravam: dai-me os fatos que eu lhe darei o direito – como fórmulas pré-existentes. Precisamos prestigiar e tentar compreender que é possível o poder transformador do Direito, inovador, frente à sociedade, mesmo que esteja em pontos inexpressivos em um contexto onde predomine o caráter reformador/regulador de fatos anteriores.

Negar tais considerações nos remete às reflexões que já consignamos algum tempo atrás em um de nossos despretensiosos escritos, onde citando Dourado de Gusmão (6) e Morin, ressaltamos que a ciência jurídica trata de realidades. Entretanto, sabemos todos nós que o direito é por natureza conservador, sendo certo que a introdução de novos princípios e normas exigidos pelos reptos dos novos fatos é lenta e gradual.

Há um descompasso freqüente entre a ordem jurídica e as transformações sociais, não devendo o direito conforme a experiência têm demonstrado, distanciar-se com grande intensidade das transformações da sociedade, sob pena de não ser observado voluntariamente. Afinal, o direito eficaz é o direito realmente aplicado e obedecido. A doutrina deve se esforçar para abrir caminho para a ordem jurídica nova, mantendo a antiga, através da conciliação das noções do direito retrógrado com as do direito novo. Não deve assim ser exclusivamente conservadora, pois deve facilitar as inovações reclamadas pelas necessidades sociais.

E mais: como lembrou José Osório, desembargador do TJSP, há a questão do excesso de literalidade como prejuízo elementar de justiça. “Quando uma interpretação leva ao absurdo, já se sabe logo que ela não serve e que outra precisa ser encontrada. Tal interpretação surpreende o advogado e põe em risco desnecessário e gravemente o direito da parte, para homenagear apenas uma sutileza de ordem técnico-jurídica de menor expressão. Como dizia o grande Ascarelli, os tempos modernos exigem do jurista algo mais do que sutis distinções” (cf. Orlando Gomes. Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p.13)

Aos pioneiros Horácio Belfort e Daniel Fraga: desde quando eu estava no colegial (em Ribeirão Preto/SP) há muitos anos atrás e sugeri a introdução do pensamento de Sun Tzu nas camisetas do nosso time esportivo, repetia as seguintes palavras do filósofo e general oriental: “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.”(7)

Notas de Rodapé

1 – http://www.direitodainformatica.com.br/artigos/012.htm

2 – /2001-out-20/duplicidade_pagamento_provedores_internet

3 – Consultor Jurídico: www.conjur.com.br.

4 – Que nos foi sugerido pelo nosso orientador (mestrado) e professor Paulo Roberto Colombo Arnoldi (UNESP – Franca/SP).

5 – Kelsen nos deixou em 1973. Nasceu em Praga, dia 11 de outubro de 1881. Seu primeiro grande trabalho foi sobre Direito Público “Hauptprobleme der Staatsrechtslehre”, 700 páginas.

6 – No tema (como também fizemos no artigo em referência), importante ressaltar como fez Paulo Dourado de Gusmão: “KICHMANN (El carácter a-cientifico de la llamada ciencia del derecho, trad.) em conferência célebre, disse: a ciência do direito, tendo por objeto o contingente, é também contingente: três palavras retificadoras do legislador tornam inúteis uma inteira biblioteca jurídica (…) Mas tal contingência, comum às coisas históricas, só tornaria anacrônica uma forma de saber jurídico, que seria substituída por outra tendo por objeto o novo direito. Anacrônico, mas não sem validade, por ter valor histórico. Capograssi, em 1937, respondendo a essa objeção clássica, admitiu poder ser sustentada a natureza científica do estudo do direito, apesar de sua mutabilidade, desde que não se considere a norma jurídica, que é mutável, como objeto da ciência do direito, mas a experiência jurídica dotada de certa estabilidade, semelhante à dos demais fatos históricos, pois, pelo menos, ao se modificar, não anula a experiência passada, que, como tradição, se mantém viva. Diga-se de passagem: não é a norma que é mutável, mas o seu conteúdo.” – (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992. 15a edição.)

7 – TZU, Sun. A arte da Guerra (trad. José Sanz) – Adap. James Clavell. 4ª ed. São Paulo: Record, 1983.

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