O pejorativo Brasil

Advogado analisa o significado pejorativo do elogio 'país do futebol'

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3 de julho de 2002, 11h58

A nossa orgulhosa identidade como Nação, agora como antes, parece encher-se de glória…O que, inobstante, oxigena nosso sentimento? Nada senão aquilo que o escárnio do primeiro mundo consente que tenhamos, ou seja, a imagem exótica de virtudes físicas e desprestígio intelectual. O Brasil é exaltado pelo universo como o país de Jorge Amado, “o país do futebol”, o país das curiosidades tropicais até mesmo no seio da cultura que produz.

A porta de entrada dos dominados no mundo dos dominadores sempre foi a excelência física, como própria de um espécime circense que os diverte. No mundo romano, depois de muito fazerem e servir como bestas amestradas os escravos gladiadores por vezes conseguiam até a liberdade, mas nunca seriam, como é cediço, cidadãos romanos…

A sofrida saga dos negros nos EUA é também emblemática quanto ao que aqui se afirma. Como foi que os negros ascenderam primeiramente nos EUA?, Ora, com o esporte, ou seja, aquela classe de expressão humana acessível a todos e imediatamente perceptível pelos sentidos físicos, por isso cultuada pelas massas.

Quando ainda fortes leis raciais vigiam nos EUA o mesmo país se orgulhava de enviar pra as Olimpíadas na Alemanha Jesse Owens, o incrível atleta negro que com sua vitória desconcertaria as teorias nazistas de superioridade racial. A marcante vitória de Jesse Owens, entretanto, pouco serviu para o desmantelamento do preconceito que os negros sofriam em seu próprio país desde a Guerra de Secessão, quando o próprio Norte, apenas por um recurso de extrema necessidade os deixou participar da luta que culminaria na sua própria liberdade. Na segunda grande guerra o fato ainda persistia, sofrendo os batalhões de negros todo tipo de preconceito. Tal forma de exclusão , uma vez mais, repetia a antiguidade, pois no Império Romano somente os cidadãos livres tinham a “honra” de participar do exército, justamente porque isto lhes conferia direitos e reivindicações.

Foi somente nos anos sessenta, no governo de Kenedy, que os negros adquiriam o direito de freqüentar uma universidade. O que significava isto? Simplesmente que como carcaças de entretenimento, forças de índole espetacular, etc., serviam, mas não lhes era até então franqueada a vida intelectual ou financeira, ou seja, a alma da elite. Continuavam a lhes considerar como “animais de direito” e não como sujeitos de direitos, e nessa participação minguada se expressava todo o desprezo pela sua condição, ainda que com louros e confetes despejados sobre os atletas negros.

Entre Nações desiguais passa algo diferente? Não. O mundo europeu também nos abre a porta como “país do futebol” e parece que todos, inclusive alguns intelectuais, não percebem o quanto há de veneno nesta expressão, como se fossemos todos na América Latina um continente de corpos suados a esbanjar macaquices, seja no esporte, seja no samba, seja no carnaval. Nos reservam o eterno papel de exotismo pitoresco, pletóricos de fenômenos palhaço-esportivos.

É grande o desprezo que sinto por um Jorge Amado e outros que à guisa de revelar ao mundo aspectos regionalistas como firmamentos singulares acabam por intensificar o nosso papel de nação folclórica, o que vem ao encontro do que deseja de nós o primeiro mundo.

É célebre a corretíssima recusa de Villa-Lobos a comparecer nos EUA , enquanto tivesse que ser anunciado como”compositor brasileiro”. Villa-Lobos sabia o quanto sua música era superior a tudo o que se produziu musicalmente, talvez, no século XX, e como tal percebia a minimização que o rótulo, propositalmente, lhe impunha. Até hoje em todo CD-ROM de Villa-Lobos os europeus, no lugar da exaltação à Bachiana nr. 4, talvez a mais inspirada composição do século XX, primam por inserir como exemplo da obra do Mestre o ingênuo e chato “Trenzinho Caipira”, como quem quer vincular o compositor ao regionalismo limitado e gracioso (a chatice boba do trenzinho caipira, com as cordas a imitar o barulho do trem, está para o monumento Villa Lobos como a música do “Leãozinho” está para o genial Caetano).

As letras de um Chico, um Caetano, um Gil, são superiores em tudo ao que fizeram os maiores da música popular estrangeira e suas melodias não ficam atrás, mas ao contrário, além de serem ignorados, o lixo musical do estrangeiro nos invade e sucateiam com ele nossa cultura. Inobstante, sabemos bem como eles nos apresentam um anacrônico Shakespeare (não tenho temor nenhum em dizer que ler ou ouvir Shakespeare hoje em dia é a coisa mais maçante e enfadonha) como se fosse Deus.

Enfim não se trata de de desprestigiar a beleza das jogadas de futebol ou ensaiar um preconceito intelectual; já não convence a velha desculpa dos exilados nos anos setenta de torcer contra o Brasil para impedir a demagogia…Como todo brasileiro vibro e me apaixono pelo que ocorre no gramado, mas não a ponto de aderir à verdadeira coletivização da imbecilidade que toma as nossas mais avisadas personalidades com declarações estapafúrdias sobre 22 pessoas correndo atrás de uma bolinha…

Por tudo isso, recomendo toda cautela para com a expressão “país do futebol” na boca ou na pena de um estrangeiro…Se vc. se deparar com ela e perceber um sorriso dissimulado na mesma, pode ter a certeza de que este sorriso significa tudo isso que chancela um fundo pejorativo da expressão.

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