Queda de braço

União e RJ acusam-se de desobediência a decisão do do STF

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30 de janeiro de 2002, 8h08

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio, determinou nesta quarta-feira (30/1) o envio à Advocacia-Geral da União o inteiro teor de uma petição (PET 2.600) do Estado do Rio, informando que a União está deixando de cumprir decisão da Corte Suprema.

Trata-se da concessão da liminar na Ação Cível Originária (ACO 615) que suspendeu parte do pagamento mensal de dívidas do Estado do Rio à União, em compensação das perdas provocadas pela queda de receita provocada pelo plano de racionamento de energia. O ministro Marco Aurélio autorizou o Estado a reduzir em até 80% as parcelas mensais pagas à União, a partir de junho de 2001.

“A causa de pedir revelada nesta peça é muito grave. Uma vez procedente, implica justiça pelas próprias mãos e o esvaziamento, por meio condenável, de decisão do Supremo Tribunal Federal. Espera-se do Estado (gênero), sempre e sempre, postura exemplar, a servir de norte ao cidadão comum. Oficie-se, com urgência, à União”, determinou Marco Aurélio.

Na petição enviada hoje, o procurador-geral do Estado do Rio, Francesco Conte, alega que o estado pagou os 20% devidos à União que, por sua vez, não repassou as parcelas relativas ao Fundo de Participação dos Estados (FPE) e ao produto da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados destinados à exportação (IPI – exportação).

A soma desses recursos, que caberiam ao estado, ultrapassa 4,1 milhões de reais, sendo proporcional ao que o Rio de Janeiro deixou de pagar à União por conta da decisão judicial.

Francesco Conte declarou que isso foi uma forma velada de descumprimento da decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal. A versão do governo, contudo, é diferente.

O Estado do Rio teria descumprido as condições estabelecidas pelo presidente do STF para exercer o direito considerado no início do mês. A União chegou a protocolar em Brasília Ação Cautelar Incidental demonstrando o descumprimento da decisão.

Leia a íntegra da representação:

PET nº 2.600

Ação Cautelar Incidental à Ação Cível Originária nº 615-3

Requerente: Estado do Rio de Janeiro

Requerida: União

A UNIÃO, por seu Advogado-Geral, vem à presença de Vossa Excelência expor e requerer o que se segue.

1. INTRODUÇÃO

O Excelentíssimo Senhor Ministro-Presidente dessa Corte iniciou o corrente ano deferindo, em 3.1.2002, nos autos da ação cautelar em epígrafe, liminar com o seguinte teor:

“3. Defiro a medida acauteladora, fazendo-o em extensão aquém da pleiteada. Descabe suspender, de pronto, as amortizações. A esta altura, suficiente é considerar a utilidade e necessidade de concertarem-se os contratos de financiamento referidos no item 40 da inicial, sem que isso resulte no total afastamento das parcelas neles previstas. Limito esta medida à consideração dos prejuízos sofridos pelo Estado do Rio de Janeiro em virtude da QUEDA DE RECEITA VERIFICADA, a partir da data em que ajuizada a ação cível originária – junho de 2001 – até 80% (oitenta por cento) do valor da parcela mensal a ser satisfeita, por contrato. Assento mais, que, se procedente o pedido formulado na citada ação, os valores abatidos serão alvo de dedução e, se improcedente, comporão o refinanciamento previsto nos referidos contratos.”

Irresignada, a União, no dia seguinte ao deferimento da liminar pleiteada pelo Estado do Rio de Janeiro – 4 de janeiro de 2002 -, formulou pedido de reconsideração. No entanto, o Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio manteve a Decisão anterior, nos termos abaixo redigidos (decisão de 7 de janeiro):

“(…) Por último, no tocante à assertiva de que não houve decesso na arrecadação, cabe registrar que o racionamento direciona a conclusão contrária, somando-se a existência da ação indenizatória e do pleito de antecipação da tutela. De qualquer maneira, o ato atacado NÃO SE FEZ COM LIQUIDEZ NUMÉRICA. Em relação ao valor a ser abatido, ficou jungido à DEMONSTRAÇÃO DA PERDA DE RECEITA EM DECORRÊNCIA DO RACIONAMENTO, da queda da comercialização de mercadorias e de serviços que servem de base à incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Ao Estado incumbe quantificá-la, surgindo apropriado o entendimento com a União.

3. Louvando, mais uma vez, a defesa da União, indefiro a reconsideração. Aguarde-se a abertura do ano judiciário de 2002, quando se procederá à distribuição, prevento o ministro Néri da Silveira.”

Cumpre observar que ao deferir a liminar pleiteada pelo Estado do Rio de Janeiro, Vossa Excelência reconheceu que “o ato atacado não se fez com liquidez numérica” e determinou que “ao Estado incumbe quantificá-la, surgindo apropriado o entendimento com a União”.

Assim, infere-se do conteúdo do que restou finalmente decidido, que o cumprimento da r. decisão está condicionado “à demonstração da perda de receita em decorrência do racionamento, da queda da comercialização de mercadorias e de serviços que servem de base à incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços”, pelo Estado do Rio de janeiro.


Ademais, Vossa Excelência sinaliza, claramente, para o fato de que apenas podem ser computados como prejuízos a serem considerados no cálculo da referida perda de receita, aqueles que decorrem direta e exclusivamente do programa de racionamento de energia elétrica.

Evidente, portanto, a necessidade de que o Estado do Rio de Janeiro apresentasse perante esse Juízo, ou mesmo diretamente aos órgãos competentes da União, o valor de tal montante, para que se tornasse possível, mediante entendimento com este ente público, a mensuração do quantum a ser abatido “…até o limite de 80% (oitenta por cento)…”. Mister, também, a comprovação de que alegada diminuição da arrecadação de ICMS é conseqüência direta e exclusiva do programa de racionamento de energia.

Desse modo, sendo certo que um dos pressupostos para o cumprimento da Decisão de Vossa Excelência é a demonstração dos prejuízos sofridos, o Estado do Rio de Janeiro ajuizou petição, em 25/01/2002, na qual alega ter comprovado “os prejuízos causados na sua arrecadação de ICMS de julho a novembro de 2001”, trazendo agora a suposta prova, “dos prejuízos suportados no mês de dezembro de 2001″.

Conforme será exposto, os próprios dados trazidos pelo Estado do Rio de Janeiro demonstram o absurdo e a inépcia da pretensão cautelar.

2. DO DESCUMPRIMENTO DA DECISÃO DE 7 DE JANEIRO PELO REQUERENTE

Cabe noticiar, de início, que no dia de ontem (28.1.2002), o Estado do Rio de Janeiro, no âmbito de um dos contratos relativos à renegociação da dívida daquele Estado com a União (contrato nº 04/99), efetuou o repasse de apenas 20% da parcela devida. Tal conduta é surpreendente, uma vez que ignora – ou melhor, viola – por completo o teor da decisão proferida por Vossa Excelência em 4 de janeiro.

Releva lembrar que a eficácia da decisão de 4 de janeiro tem como pressuposto a observância de três condições básicas, traduzidas na precisa indicação dos seguintes elementos:

a) prejuízos ocorridos a partir de junho de 2001;

b) prejuízos relativos à queda de arrecadação global (não sobre um setor da economia) do ICMS;

c) prejuízos decorrentes direta e exclusivamente do racionamento de energia elétrica.

Nada disso restou comprovado pelo Requerente. Na petição em comento, o Estado do Rio de Janeiro limita-se, novamente, a formular conclusões equivocadas e a tentar induzir o ilustre Presidente da Excelsa Corte em erro. A pretensa argumentação agora trazida pelo Requerente parte de uma relação entre a mera expectativa de arrecadação de ICMS pelo Estado do Rio de Janeiro e a arrecadação efetivamente verificada. Em síntese, pretende o Requerente obter provimento cautelar tendo em vista a mera frustração de uma expectativa de arrecadação tributária.

Tal perspectiva é contrária às duas decisões proferidas por Vossa Excelência, que de modo claro referiam-se a “queda de receita verificada” (decisão de 3.1.2002) e a “demonstração da perda de receita” (decisão de 7.1.2002).

Ora, é absolutamente descabido o pleito do Requerente, que se funda em mera expectativa de receita. Nessa linha, é oportuno destacar o trecho do voto proferido no julgamento do MS nº 21.059, pelo Relator Ministro Sepúlveda Pertence, o qual evidencia a ausência de direito subjetivo a determinado patamar de arrecadação tributária, quando não verificado o respectivo fato gerador:

Quanto à expectativa de arrecadação tributária estadual decorrente das operações de um pólo industrial empreendido ou fomentado pela União, dispensa demonstração que se trata de mero interesse de fato: o direito de tributar só nasce com a ocorrência dos fatos geradores respectivos…” (grifou-se)

Portanto, não configurado o fato gerador da incidência tributária do ICMS, não há que se falar em direito a arrecadação alguma.

Nesse contexto, resta evidente que a atitude do Requerente é inadmissível, haja vista que o Estado do Rio de Janeiro não cumpriu nenhuma das condições fixadas por Vossa Excelência na decisão de 4 de janeiro.

3. DA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ – DA POSTULAÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NO SENTIDO DE QUE O PROGRAMA DE RACIONAMENTO NÃO SEJA EXTINTO

Tal proceder do Estado do Rio de Janeiro revela, ainda, manifesta prática de litigância de má-fé, em clara violação aos arts. 14 e 17 do Código de Processo Civil.

É de conhecimento de todos e ínsito ao princípio da moralidade que o litigante tem o dever processual de agir com lealdade e boa-fé. A ele é vedada a utilização de mecanismos de chicana processual, procrastinatórios, desonestos, desleais, com o objetivo de tumultuar o processo.

Infringe o dever de probidade processual aquele que altera a verdade dos fatos e procede de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo (CPC, art. 17, incisos II e V). Com efeito, configuram a versão mentirosa para fato verdadeiro e o agir afoitamente, com a consciência do injusto, hipóteses de litigância de má-fé.


Assim, ao pretender ressarcimento com base em mera expectativa de arrecadação, apresentando gráfico de estimativas de crescimento para o período, o Estado do Rio de Janeiro teve o claro propósito de burlar os gráficos já apresentados pela União por ocasião do pedido de reconsideração, e que demonstravam não ter havido decesso na arrecadação tributária do Estado do Rio de Janeiro, apresentando versão inverídica aos fatos efetivamente provados.

Para o fim de reforçar, ainda mais, o despropósito dos argumentos utilizados pelo Requerente – e a patente litigância de má-fé -, impende notar que, em 7 de janeiro de 2002, o mesmo Estado do Rio de Janeiro, por meio de seu Secretário de Estado de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo, encaminhou Ofício ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República (Presidente da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica), postulando que o referido Programa Emergencial não seja suspenso. Eis o teor do Ofício:

“OFÍCIO SEINPE/GAB Nº /2001 Rio de Janeiro 07 de janeiro de 2002.

Exmo. Sr. Ministro Pedro Parente

Coordenador da Câmara de Gestão Crise de Energia

Sr. Ministro,

Diante das notícias vinculadas na Imprensa, mesmo não tendo a confirmação de V.Excia, quanto a suspensão do processo de racionamento no país, e diante das condições da hidrologia das últimas semanas, que permitiram um aumento do descolamento dos níveis dos reservatórios em relação as curvas guias traçadas pelo ONS, trazemos nossa preocupação quanto a antecipação desta medida, para antes do fim do período úmido ou da certeza do reestabelecimento da plurianualidade dos estoques dos reservatórios da Região Sudeste/Centro-Oeste.

Outrossim, consideramos que algumas medidas de flexibilização já poderiam ser analisadas para a adoção como:

■ Redução das metas para o setor residencial de 20% para 7%, sobre a média aplicada para os meses de verão, como sendo uma das opções de redução de metas para o subsistema sudeste/centro-oeste. Tal Aplicação poderia ser aplicada já a partir de Fevereiro, aproveitando o período final de férias em regiões turísticas e o período do carnaval;

■ Redução das atuais metas percentuais de 20% para o setor industrial atualmente ainda aplicadas sobre os meses de inverno;

■ Análise do impacto da ampliação do período do horário de verão por mais 14 dias. Alterando a quantidade de dias para 140 dias, o que seria ainda inferior a quantidade de dias adotados em 1999 que foram 147 dias, principalmente pois, ainda perduram medidas de redução de iluminação pública e com reflexos na segurança.

Acreditamos que tais medidas, permitirão uma flexibilização progressiva, em conjunto com a observação da recomposição dos reservatórios dos nos próximos meses, permitindo atender os anseios populares do final das restrições sem colocar em risco o sucesso que foi a mobilização da população de redução de demanda.

Wagner Granja VICTER

Secretário de Estado de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo.

c.c.: Exmo. Sr. Governador Anthony Garotinho

Exmo. Sr. Ministro de Minas e Energia José Jorge de Vasconcelos

Ilmo. Sr. Presidente ONS – Dr. Mário Santos”

Referido Ofício (cópia anexa) – posterior ao ajuizamento da Ação Cível Originária nº 615 e à cautelar incidental obtida pelo Estado do Rio de Janeiro (PET nº 2.600) – demonstra cabalmente que são inverídicas as afirmações de que há relação de causa e efeito entre o programa de racionamento de energia elétrica e as aludidas perdas tributárias, em relação às quais pretende obter insultuoso ressarcimento.

Com efeito, após requerer provimento jurisdicional que tem como pressuposto básico a ilegitimidade da política pública positivada na MP nº 2.198, de 2001, vem o Estado do Rio de Janeiro, de maneira açodada (eis que não há qualquer decisão governamental a respeito), formular pleito no sentido da manutenção daquela política que considera ter-lhe causado prejuízos [curiosamente, no referido Ofício, o Secretário de Estado admite “o sucesso que foi a mobilização da população de redução de demanda” (sic)].

Seria curiosa e esquizofrênica, não fosse achamboada e acintosa, a atitude processual e extra-processual do Estado do Rio de Janeiro. Por um lado, impugna a política governamental e busca obter substancial proveito em razão disto e, por outro, (após a obtenção da liminar) requer que a referida política não seja suspensa!

Desvelar as razões que motivaram o referido Ofício de 7 de janeiro não é uma tarefa difícil. Após quatro dias da liminar obtida junto ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Estado do Rio de Janeiro chega a postular a manutenção daquela mesma política pública que estaria a lhe causar dano civil.

O fato que antes era considerado ilegítimo e causador de dano civil transforma-se em algo aceitável para o Estado do Rio de Janeiro tendo em vista tão-somente uma espúria razão de conveniência: a manutenção daquela suposta ilegitimidade tornou-se algo aparentemente lucrativo para aquela unidade da Federação.


Emerge translúcido, então, que o racionamento de energia elétrica não é o causador das alegadas perdas tributárias pois, do contrário, não seria nada razoável a insistência, por parte do Estado do Rio de Janeiro, em favor da manutenção de programa que, segundo aduz nos autos, vem comprometendo a arrecadação de receita tributária e dificultando a administração do ente federativo.

4. DO EFETIVO AUMENTO DA ARRECADAÇÃO DE ICMS PELO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Outro fato demonstra que o Estado do Rio de Janeiro tinha e tem consciência de estar agindo com deslealdade perante a Suprema Corte. O próprio documento acostado à petição de 25/01/2002 revela esse agir desleal do Estado do Rio de Janeiro. De fato, observa-se que o documento emitido pela Secretaria de Estado da Fazenda comprova que, nos meses de julho a dezembro de 2001, houve de fato um crescimento da arrecadação.

Na petição apresentada, o Estado sustenta que incorreu em perda na arrecadação do ICMS, mês a mês (entre junho de 2001 e dezembro de 2001), “quando comparada a arrecadação verificada no período em questão com aquela projetada para o mesmo interregno”.

Na comparação com período equivalente no ano de 2000, pode-se verificar pela tabela apresentada pela Secretaria de Estado da Fazenda, acostada à petição ora contraditada, que o ICMS ‘realizado’ em 2001 foi sempre superior à arrecadação verificada no ano anterior. Vejamos:

Em julho de 2000, a receita bruta de ICMS foi da ordem de R$ 686.775 milhões. No mesmo período, em 2001, a arrecadação esteve sob o patamar de R$ 778.615 milhões, apresentando, portanto, um crescimento de 13,372 % efetivamente verificado.

Em agosto de 2000, a arrecadação foi de R$ 687.256 milhões. Em agosto de 2001, chegou a R$ 763.875 milhões, correspondendo, portanto, a um aumento percentual de 11,148 % verificado no mês sob enfoque.

No mês de setembro de 2000, segundo consta do estudo feito pela Secretaria da Fazenda estadual, a arrecadação esteve em R$ 673.693 milhões, com um crescimento realizado de R$ 767.040 milhões, no período correspondente em 2001. O valor arrecadado foi, dessa forma, 13,856 % maior do que em relação ao mês de setembro de 2000.

Também no mês de outubro de 2001, verificou-se um crescimento em relação ao patamar de arrecadação atingido em outubro de 2000, observando-se, nesse período, um acréscimo de 6,386% na arrecadação tributária do requerente.

Da mesma maneira, denota-se da tabela apresentada, ter-se alcançado um crescimento no lançamento do ICMS em novembro de 2001, em comparação ao mês de novembro de 2000, dessa vez da ordem de 4,34 %.

Observa-se, por fim, que apenas no mês de dezembro de 2001, a arrecadação tributária estadual sofreu um pequeno decréscimo de 4,3% em relação a dezembro de 2000. Ressalte-se que essa perda foi verificada apenas no mês de dezembro.

Assim, o requerente, ardilosamente, menciona uma queda de receita no período apontado na petição, utilizando-se da arrecadação projetada para aquele interregno, e não da arrecadação de fato realizada. Pelo documento apresentado pelo próprio Estado do Rio de Janeiro, comprova-se que, no segundo semestre de 2001, houve, sim, um crescimento em relação ao segundo semestre do ano anterior.

O que o Rio de janeiro pretende, em franca distorção dos fatos, é que a União ‘pague’ por uma arrecadação ‘projetada’. Conforme tudo o que foi dito alhures e com base no entendimento dessa Corte, esse pleito não encontra nenhum respaldo jurídico.

O direito de demandar não permite à parte desregramentos nem abusos, muito menos permite à parte formular pretensões cientes de que estão destituídas de fundamento.

Vale ressaltar, aqui, portanto, que os parâmetros a serem utilizados para fins de fixação do quantum necessário, em última análise, à reparação do suposto dano, como evidente, deve corresponder, em qualquer hipótese, estritamente ao prejuízo sofrido pelo lesado.

Assim, diante da completa impossibilidade de apurar o quantum correspondente às supostas perdas tributárias, em face de sua não ocorrência, é que o Estado do Rio de Janeiro apresenta petição fundada em uma grosseira deturpação dos fatos, na absurda e repulsiva tentativa de induzir Vossa Excelência em erro.

Cabe registrar, por outro lado, que ao formular o pedido de reconsideração da Decisão de Vossa Excelência, este ente público logrou demonstrar que não houve decesso na arrecadação de ICMS, noticiando, aliás, diversamente do que assevera o Requerente, que há estimativas projetadas pelo BNDES, nas quais se verifica o crescimento da arrecadação em relação ao exercício anterior.

Pede vênia a União, assim, para se reportar, aqui, ao trecho da petição, protocolada em 04 de janeiro de 2002, que muito bem elucida o acima asseverado:


“Diante da existência de fatores sazonais, a análise pertinente à alegada redução de receita deve centrar-se na comparação com períodos equivalentes de anos anteriores. Segundo os balancetes orçamentários mensais disponíveis até outubro do ano passado e disponibilizados pelo Ministério da Fazenda, a arrecadação de ICMS em cada um dos meses de 2001 foi sempre superior aos meses correspondentes desde 1996 (Gráfico 1). Portanto, como não se verifica a queda alegada, mesmo que aceita a tese do Estado, não haveria base para a realização da dedução determinada pela liminar. A arrecadação de ICMS acumulada até outubro de 2001 foi de R$7.769 milhões, superior àquela do mesmo período do ano anterior em R$ 1.163 milhões Estimativas feitas pelo BNDES indicam que, para a totalidade do exercício, o crescimento da arrecadação de ICMS em relação ao exercício anterior seria de 14,8%.

GRÁFICO 1 – ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ARRECADAÇÃO DE ICMS / VARIAÇÃO DA ARRECADAÇÃO MENSAL DE 2001 EM COMPARAÇÃO COM OS EXERCÍCIOS DE 1996 A 2000

(tabela)

Tais dados afiguram-se, destarte, absolutamente reveladores e desqualificam a pretensão do Requerente.

No mesmo sentido, deve-se assinalar que, apesar de ser o principal elemento, o ICMS não é a única fonte de receita do Estado do Rio de Janeiro. A receita bruta apurada em 2001 é também sistematicamente superior à observada nos exercícios anteriores (Gráfico 2). É com base nesta receita que o Estado sustenta suas despesas. A receita bruta acumulada até outubro de 2001 foi de R$ 10.538 milhões, superior a do período equivalente em 2000 em R$ 1.522 milhões. A projeção desta receita para o ano 2001 feita pelo Estado por meio de seu Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal indica que seria suficiente para gerar resultado primário superavitário de R$652 milhões. Esta previsão de superávit já contempla crescimento de R$ 754 milhões na despesa com pessoal e de R$ 737 milhões nas demais despesas correntes de capital, com destaque para um crescimento estimado de R$ 448 milhões nos investimentos. Até o presente momento, nada indica que estas projeções venham a ser frustradas.

GRÁFICO 2 – ESTADO DO RIO – RECEITA BRUTA / VARIAÇÃO % DA ARRECADAÇÃO MENSAL DE 2001 EM COMPARAÇÃO COM OS EXERCÍCIOS DE 1996 A 2000

(tabela)

Finalmente, a série de Receita Líquida Real apurada até o presente momento indica crescimento praticamente ininterrupto. Cabe assinalar que o serviço da dívida do Estado do Rio de Janeiro junto à União corresponde a 13% desta receita e na eventualidade de frustração, esta despesa reduz-se na mesma proporção”.

É de ver-se que a União, após a Decisão deferitória da liminar – quando lhe coube falar nos autos -, demonstrou, à saciedade, que não houve a citada queda de receita.

5. DA INÉPCIA DA PETIÇÃO DE 25 DE JANEIRO

Outra questão crucial é que a petição do Estado do Rio de Janeiro, além de mostrar claramente a litigância de má-fé do autor, ainda é inepta, pois traz algo impertinente ao cumprimento da decisão, não logrando êxito em demonstrar cabalmente o nexo de causalidade entre o racionamento de energia e o suposto prejuízo na arrecadação de ICMS, conforme determina a decisão de Vossa Excelência. O requerente apenas junta documento sobre risco de déficit de energia, na tentativa de culpar a União pelo problema energético (questão que não é pertinente a essa cautelar), desconsiderando todo o fundamento fático apresentado pela União por ocasião do ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 9 (documento anexo) e que foi acatado por essa Corte no momento do julgamento do mérito dessa ação (lembre-se, por oportuno, de que não há responsabilidade civil decorrente de ato declarado constitucional). Ou seja, a partir de uma suposta (suposição infundada, conforme já assentado nos autos da ADC nº 9) causa para o racionamento não logra o Requerente demonstrar aquilo que seria relevante neste Processo e na ACO nº 615, a saber, a relação entre o programa de racionamento e o suposto dano sofrido pelo Estado.

6. DA INVIABILIDADE DE QUALQUER “ENTENDIMENTO” ENTRE AS PARTES

Vossa Excelência deixou claro que a apresentação dos cálculos, pelo Estado do Rio de Janeiro, por si só, não teria o condão de atribuir a liquidez necessária ao cumprimento da Decisão, fazendo-se imprescindível, portanto, o entendimento com a União, sob pena de restar fulminada a eficácia do provimento jurisdicional provisoriamente concedido. Tal entendimento teria como pressuposto o cumprimento daquelas três condições que se extraem da decisão de 7 de janeiro: a) prejuízos ocorridos a partir de junho de 2001; b) prejuízos relativos à queda de arrecadação global (não sobre um setor da economia) do ICMS; c) prejuízos decorrentes direta e exclusivamente do racionamento de energia elétrica.


A par da argumentação jurídica já apresentada pela União nos autos da ACO nº 615 e nesta Cautelar Incidental, os dados trazidos em juízo pela União e pelo próprio Estado do Rio de Janeiro demonstram a inviabilidade de qualquer entendimento entre as partes.

O Estado do Rio de Janeiro não apresentou nenhuma documentação capaz de comprovar o cumprimento daqueles três requisitos, ou sequer as alegadas perdas tributárias. A documentação acostada à petição de 25.01 é obviamente imprestável para o fim pretendido pelo Requerente, uma vez que comprova justamente um aumento de arrecadação.

A União, sim, assaz preocupada – mormente, em razão do vencimento de parcelas relativas aos contratos de renegociação de dívida devidas pelo Estado do Rio de Janeiro a este ente público – encaminhou, por meio do Ministro da Fazenda, Sr. Pedro Malan, ao Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sr. Anthony Garotinho, o Aviso nº 25/MF (cópia anexa), instando-o à apresentação do montante dos prejuízos que diz ter sofrido (assim como a comprovação daquelas três condições já referidas), indispensáveis para se garantir eficácia à decisão de 7 de janeiro.

Não se duvida, pois, da disposição da União para cumprir a Decisão de Vossa Excelência. No entanto, somente em 25 de janeiro de 2002, último dia útil anterior à data do vencimento da parcela mensal referente a um dos contratos firmados entre os entes federativos ora litigantes, o Estado do Rio de Janeiro veio a Juízo se pronunciar acerca do montante ao qual entende ter direito, por meio de uma grosseira manipulação dos fatos e do direito. Mais uma vez, vem o Estado do Rio de Janeiro a juízo de modo temerário, inviabilizando o cumprimento da decisão de Vossa Excelência.

7. DA IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAÇÃO

Conforme já acentuado, o Requerente, a partir de uma desastrosa atuação processual, pretende ver garantida uma indevida compensação de débitos (lembre-se que um dos pretensos débitos – o da União face ao Estado do Rio de Janeiro – sequer existe).

Por outro lado, diante da patente incapacidade de o Estado do Rio de Janeiro demonstrar o cumprimento dos requisitos fixados na decisão de 7 de janeiro, restando absolutamente ilíquido o pleito formulado pelo Requerente, torna-se impossível a compensação que somente pode ser feita entre débitos líquidos, conforme preceitua a art. 1010 do Código Civil, verbis:

“Art. 1010. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis”.

Nesse sentido esse próprio Tribunal já decidiu, quando apreciava matéria infraconstitucional, em acórdão proferido no RE-100782/SP, verbis:

Ementa: CORREÇÃO MONETÁRIA. TERMO INICIAL. LEI N. 6899/81. A CORREÇÃO MONETÁRIA INSTITUÍDA PELA LEI 6899/81 TEM INCIDÊNCIA IMEDIATA AOS FEITOS EM CURSO, A PARTIR DA SUA VIGÊNCIA. – A COMPENSAÇÃO DE DÉBITOS E CRÉDITOS. NOTA PROMISSÓRIA. PROTESTO. CÓDIGO CIVIL, ART. 1010. SE NÃO SE REVESTE DE LIQUIDEZ A DÍVIDA LEVADA À COMPENSAÇÃO, POIS REPRESENTATIVA DE DANOS SUJEITOS A REPARAÇÃO, NÃO HAVENDO COMO APLICAR-SE O PRECEITO CIVIL, INSERTO NO ART. 1010. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO EM PARTE E NESSA PARTE PROVIDO. (Rel.: Min. RAFAEL MAYER, Julgamento: 18/11/1983, Primeira Turma, DJ.: 16/12/1983)”

Não se pode admitir, portanto, a compensação de um eventual débito da União relativamente ao Estado do Rio de Janeiro – pois a depender da procedência da ACO nº 615 (o que, confia a União, não ocorrerá) – com débito daquele Estado, líquido, certo e exigível mensalmente pela União, conforme se verifica dos contratos colacionados aos autos – atos jurídicos perfeitos e acabados em observância às normas legais que disciplinam a matéria contratual e financeira.

Sendo certo que a compensação é uma das formas de extinção do pagamento, acaso se realize em dissonância com a prescrição civil suprareferida, a qual delineia os limites a que está adstrita a possibilidade de sua efetivação, estar-se-ia dando margem à configuração de pagamento indevido, podendo facilmente resultar em inaceitável enriquecimento ilícito.

8. CONCLUSÃO

Em vista das razões expendidas, e em face dos dados trazidos aos autos pelo Requerente apenas em 25 de janeiro, resta evidente que nenhuma das condições fixadas por Vossa Excelência foi cumprida pelo Estado do Rio de Janeiro, uma vez que o Estado do Rio de Janeiro não sofreu prejuízo relativo à arrecadação global de ICMS a partir de junho de 2001 (considerando-se, especialmente, a arrecadação verificada no semestre correspondente de 2000), e que não há qualquer indício ou prova de que os supostos prejuízos decorreriam direta e exclusivamente do racionamento de energia elétrica.

Lembre-se, por fim, quanto a este último aspecto, que o Estado do Rio de Janeiro em momento algum logrou demonstrar a relação direta entre o suposto prejuízo (que, como visto, não houve) e o programa de racionamento, ou ainda, a exclusividade deste fator (racionamento) na configuração do alegado dano. Nesse ponto, é curioso que o Requerente tenha ignorado uma série de fatos notórios que repercutiram na economia nacional ao longo do ano 2001. Ignora, por exemplo, (a) a redução da atividade econômica nos Estados Unidos da América, maior importador do Brasil, (b) os atentados ocorridos em 11 de setembro de 2001, nos EEUU, e a posterior intervenção militar no Afeganistão, (c) a grave crise econômica verificada na Argentina, principal parceiro comercial do Brasil na América Latina. Ora, na perspectiva do Requerente, nenhum destes fatos (ou das inúmeras variáveis que repercutem na economia nacional) foram relevantes para a economia nacional? O programa de racionamento seria o único fato relevante para a definição da intensidade da atividade econômica verificada no Brasil em 2001? Tal perspectiva seria uma expressão de ingenuidade (típica daqueles que ainda não alcançaram a maturidade institucional) e incompetência, não fosse a mais que evidenciada má-fé que é o móvel da atuação do Estado do Rio de Janeiro neste processo.

Por fim, diante do completo descumprimento da decisão proferida por Vossa Excelência em 7 de janeiro, a União requer que Vossa Excelência determine que o Estado do Rio de Janeiro proceda ao imediato recolhimento integral das parcelas devidas no contexto dos contratos de renegociação da dívida daquele Estado perante a União. Cabe comunicar, ademais, que diante do ilegítimo descumprimento da decisão de 4 de janeiro, a União estará procedendo à imediata execução das garantias contratuais pertinentes.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Brasília, 29 de janeiro de 2002

GILMAR FERREIRA MENDES

Advogado-Geral da União

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