Penas alternativas

Juizados não são sinônimos de tolerância ou impunidade

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29 de janeiro de 2002, 12h17

A Lei 10.259/01, que institui os juizados especiais no âmbito da Justiça Federal, como já se noticiou difusamente (cf. Folha de S. Paulo de 13.01.02, p. C7; O Estado de S. Paulo de 14.01.02, p. A7), segundo nossa perspectiva, fundada nos princípios da igualdade e da proporcionalidade assim como na doutrina de Silva Franco, Cezar Bitencourt, Suannes, Damásio, Tourinho Filho, Capez e tantos outros juristas que opinaram no site do ibccrim.com.br, ampliou o limite das infrações de menor potencial ofensivo e, em conseqüência, a competência dos juizados criminais estaduais para dois anos (cf. detalhadamente nosso curso pela internet).

Antes os juizados só cuidavam das contravenções e dos crimes punidos até um ano e mesmo assim ficavam excluídos os de procedimento especial (essa restrição, recorde-se, não foi feita pela nova lei).

Quem, pela primeira vez deu o alerta geral (no site do ibccrim) de que a lei dos juizados federais teria reflexo nos juizados estaduais foi um juiz do Rio de Janeiro: Cláudio Dell`Orto. Em seguida os juízes coordenadores de todos os juizados criminais do Brasil aprovaram o enunciado 46 nesse sentido (cf. nosso curso pela internet Juizados Especiais Criminais no www.estudoscriminais.com.br).

No dia 30.11.01, no Tribunal de Justiça do Rio Janeiro aconteceu a maior concentração de juízes do país para discutir o assunto. Dentre tantas conclusões positivas desse frutífero encontro, uma delas partiu do Des. Mayrink da Costa: não podemos dar abrigo nem ao Direito penal que está à direita do Direito penal nem ao Direito penal que está à esquerda dele.

Lamentavelmente, também vem do Rio de Janeiro, mais precisamente do Procurador Geral de Justiça desse Estado, a opinião de que a ampliação dos juizados criminais seria inconstitucional (foi encaminhada nesse sentido solicitação ao Procurador Geral da República para que seja argüida junto ao STF a inconstitucionalidade da Lei 10.259/01 – cf. Gazeta Mercantil de 25.01.02, p. A9; O Estado de S. Paulo de 25.01.02, p. A10).

Haverá inconstitucionalidade, sim, se algum magistrado não estender o novo limite de dois anos, previsto na Lei 10.259/01, aos juizados estaduais. Por quê? Porque é inconcebível tratamento desigual para delitos idênticos: desacato contra juiz federal é uma questão dos juizados federais; desacato contra um juiz estadual seria da competência do juízo comum, sem os benefícios da transação penal?

Aproveitando-se do tenebroso clima de insegurança pública, é dizer, da comoção e histeria nacionais geradas pela absurda violência dos últimos tempos (morte de prefeitos, de promotor etc.), argumenta o referido Procurador o que segue:

(a) que alguns crimes que antes davam cadeia agora poderão ser punidos com penas alternativas: nada mais equivocado! Os crimes punidos até dois anos admitem fiança, “sursis”, penas substitutivas, regime aberto, progressão de regime, liberdade provisória etc.. Desde o princípio do século passado no Brasil, quando foi criado o “sursis”, concebe-se que pena até dois anos não é tão grave; a ciência criminológica e a penologia há décadas vêm demonstrando que penas de prisão de curta duração só servem para desenvolver “carreiras criminais” e além disso embrutecem, dessocializam etc..

Não é verdade, portanto, que nossas cadeias contam com número mais do que ínfimo de presos com pena até dois anos. De outro lado, pretender cadeia para esse limite de penas contraria tudo que as ciências penais evidenciaram ao longo do século XX (cf. Criminologia, García-Pablos e L. Flávio Gomes, SP: RT, 2000);

(b) a lei que aumenta a tolerância é um retrocesso: na linha do programa novaiorquino de tolerância zero (só que no Brasil contra os de baixo, contra os miseráveis, contra a patuléia, até porque quem comete crime até dois anos nem sequer competência teve para praticar crimes mais graves), salienta-se que a tolerância é retrocesso. Passar os crimes até dois anos para os juizados não significa tolerância alguma, com a devida vênia, até porque nenhum delito está sendo descriminalizado. O julgamento, pelos juizados, é mais rápido, funda-se na forma consensuada e nele são aplicadas penas alternativas (que são impostas também no juízo comum). Portanto, não se trata de um retrocesso, senão de um avanço;

(c) a atividade de enfrentamento do crime não pode admitir regressão: correto, mas cada crime deve ser enfrentado de uma maneira. Não se pode usar canhão para matar passarinhos. A eliminação dos crimes menores da competência dos juízes criminais permite que a Justiça se dedique com mais afinco aos crimes que efetivamente perturbam o convívio social: crimes econômicos, financeiros, violentos, crime organizado etc.. Os recursos são escassos, logo, devem ser utilizados naquilo que mais nos aflige (crimes violentos, fraudes monumentais etc.). Os pequenos delitos não devem ocupar o dia-a-dia burocratizante da Justiça;

(d) quem for pego com um fuzil AR 15 não será preso: nada mais incorreto! O exemplo é ad terrorem! Fuzil AR 15 é arma de uso proibido. Logo, não se aplica o caput do art. 10 da Lei 9.437/97, senão a pena do § 2º (até quatro anos), que não admite juizados. É bom que se esclareça: fuzil AR 15 não entra na competência dos juizados, logo, admite prisão em flagrante, não tem consenso etc.;

(e) se o carcereiro facilitar a fuga de um traficante, vai ficar livre e pagar com cesta básica: nada mais falso que isso! Se o carcereiro facilita a fuga de qualquer pessoa (fala-se em traficante para criar o clima ad terrorem evidentemente) a pena é de um a quatro anos (CP, art. 351, § 3º). Logo, não é caso dos juizados;

(f) a lei nova vai amenizar as punições na esfera dos crimes contra o meio ambiente: quase a totalidade dos crimes contra o meio ambiente já era da competência dos juizados. Aliás, como regra, talvez não existam outros crimes mais apropriados para se aplicar penas alternativas que os ambientais (reflorestamento, replantio de árvores, repovoamento dos rios etc.). Que surpresa causa a nova lei, se os crimes ambientais graves e gravíssimos, segundo a praxe forense, são resolvidos com “termos de compromisso” (reparação dos danos) ou de ajustamento de conduta?

Há crimes que, de fato, entram numa zona cinzenta: abuso de autoridade, por exemplo. Ocorre que o fato de o crime ser punido com pena até dois anos é só um dos requisitos da transação penal. Quando concretamente o fato revela efeitos graves e conseqüências drásticas, com fundamento no art. 76 da Lei 9.099/95 tanto o Promotor pode recusar a proposta como o Juiz pode não homologar o acordo. A justiça deve der feita em cada caso concreto.

Argumenta-se ainda: mas “bandido armado” (linguagem de guerra!) não mais será preso em flagrante? O argumento seria válido se a polícia estivesse prendendo todos os “bandidos” e se no cotidiano forense a quase totalidade das pessoas surpreendidas com arma não fossem cidadãos corretos e honestos, que contam, entretanto, com ilusão de estar seguro quando está armado.

Lamenta-se que a orientação da Procuradoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, por ora, tenha sido a de não aplicar a Lei 10.259/01. No nosso curso pela internet sobre Juizados estamos dando dicas de como reagir legalmente a isso.

De qualquer modo, não há como não nos surpreendermos com o deplorável jogo de palavras carregadas de tonalidade repressiva (law and order), que vem acompanhado de exemplos ad terrorem (mas falsos), com o propósito único de infundir ou incrementar, por meio da mídia, o sentimento de insegurança pública, para além de criar clima adverso aos juizados e às penas alternativas, como se fossem eles sinônimos de tolerância, frouxidão ou impunidade.

O autor é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, integrou a Comissão de Reforma Processual Penal.

Autores

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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