Violência endêmica

Insegurança no país é filha da demagogia e da burrice

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26 de janeiro de 2002, 17h17

O problema da insegurança pública está afetando mortalmente o brasileiro e, certamente, vai recrudescer nos próximos dias e meses, com a perspectiva inevitável de mais mortes de políticos, promotores, policiais, pais e mães de família etc..

Mas é justamente nesses momentos de aguda crime coletiva que a nação tem que parar, refletir e descobrir melhores caminhos que os experimentados até aqui. “[se] nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, nada pode ser mudado se não for enfrentado” (J. Baldwim).

A pergunta desesperada de todos é a seguinte: para preservar nossas famílias, nossa sociedade, enfim, para sobrevivermos, nessa selva desregrada e anômica, o que devemos fazer imediatamente, urgentemente?

Ninguém, com certeza, tem respostas prontas para o problema da violência endêmica, que é fruto de um longínquo e massacrante processo de anos e anos (ou séculos, como no caso da América Latina e, particularmente, do Brasil) de marginalização, exclusão, corrupção, má distribuição de renda, impunidade etc. etc. etc.

Na vida, quando as questões que nos afligem são exageradamente complexas, temos às vezes que modificar completamente o modo de enfocá-las e enfrentá-las. Minha convicção (que aumenta a cada dia) é de que solução para esse tenebroso caos deve passar, antes de tudo, pela precisa delimitação (e contundente refutação) do que é inócuo ou puramente eleitoreiro ou demagógico na questão da segurança pública.

Sociedade civil, governos, partidos políticos etc. temos inadiavelmente que proclamar um decisivo e definitivo basta (um “panelaço”, fariam os argentinos) a:

(a) todas as medidas absolutamente inconstitucionais (embora histericamente sugeridas nos últimos tempos e reiteradas nos últimos dias): pena de morte, prisão perpétua, inversão do ônus da prova, restrição dos direitos fundamentais, indisponibilidade de bens dos parentes dos réus, municipalização da segurança pública etc.;

(b) todas as medidas inteiramente inócuas, estúpidas ou meramente cosméticas: proibição de celular pré-pago, restrição dos direitos dos presos, controle das empresas de segurança, uso de videoconferência, uso de cabo de aço para evitar fugas com helicóptero, fechamento de todas as saídas da cidade quando ocorre um crime (como fazer isso numa cidade como São Paulo?), indisponibilidade dos bens das vítimas de seqüestros etc.;

(c) todas as medidas que pretendem equivocadamente centralizar a solução só na militarização do problema da segurança: presença das forças armadas em todos os lugares, mais rotas, estratégias de guerra etc. Tudo isso pode ser útil, mas tão insuficiente quanto aberrante é a pretensão de muitos policiais de serem mais juristas que técnicos especializados em investigação;

(d) todas as propostas de mais investimentos para se otimizar só a repressão: tolerância zero, mais viaturas, mais policiais, mais prisões, mais armamentos etc. Tudo isso já foi estudado profundamente pelos criminólogos americanos e europeus, particularmente por Jeffery (cf. nosso Criminologia, García-Pablos e Luiz Flávio Gomes, São Paulo: RT, 2000, p. 340 e ss.) que diz: “mais policiais, mais penitenciárias, mais juízes podem significar mais encarceramentos, mas não menos crimes”;

O governo Covas, depois de literalmente torrar milhões e milhões em tudo isso (ninguém gastou mais que ele nessa área), veio comprovar, sem nenhuma margem de dúvida, que essa isolada medida jamais será a solução;

(e) todas as medidas puramente demagógicas, típicas de estelionatários eleitorais, que nos próximos dias apresentarão projetos (eleitoreiros) com sugestões que comprovadamente não resolvem nada: aumento de penas para os crimes, cortes de direitos e garantias fundamentais, endurecimento brutal da execução da pena, aumento do limite máximo de trinta anos de prisão etc.. Depois do fracasso retumbante da lei dos crimes hediondos (proclamado por Silva Franco, Toron etc.) é uma verdadeira hediondez querer enganar a população mais uma vez com essas absurdas propostas;

(f) todas as reações indecentemente verborrágicas, marketeiras ou eleitorais: “guerra contra a violência”, “a violência passou dos limites”, “guerra à bandidagem”, “bandido tem que ter respeito pelo policial” etc.;

(g) todos os discursos fascistas ou talibanizados, cujos “chavões” de sempre em nada ajudam na construção da solução do problema: “policial tem que matar”, “bandido tem que morrer”, “pau, pau, pau neles”, “fogo na bandidagem e na ladroagem” (essa opinião não está computando o risco de perda de grande parte das forças policiais), “caça feroz aos bandidos” etc.

(h) todas as medidas já previstas na nossa legislação, mas com resultados inequivocamente pífios (cf. nosso curso gratuito pela internet sobre a nova lei antidrogas): infiltração policial no crime organizado (aliás, está ocorrendo o contrário), ação controlada, delação premiada, prêmios para o colaborador da justiça, proteção a vítimas e testemunhas, juiz com funções de policial, controle rigoroso das armas de fogo (Sinarm), cadastro nacional dos criminosos etc.;

(i) a sugestão, nessa altura, de medidas clarividentemente óbvias e ululantes, que já deveriam ter sido concretizadas há muito tempo e não tinham que ser sequer cogitadas nesse momento de aguda comoção social: combate à corrupção epidêmica nas polícias, com rigorosa fiscalização externa do Ministério Público, investigação de alguns crimes pelo Ministério Público, construção de penitenciárias federais de segurança máxima, terceirização da administração prisional, uso da polícia federal nos crimes mais graves (como hoje ficou estabelecido na Medida Provisória 27/02), contratação de jovens para substituição de policiais nos serviços burocráticos etc.

(j) nessa mesma linha do evidente acham-se a unificação operacional de todas as polícias, centralização e informatização dos dados e estatísticas criminais (do tipo infocrim), criação de uma central nacional de inteligência, aprimoramento da polícia científica, criação de uma força-tarefa contra o crime organizado (com participação de todos os órgãos de investigação e de inteligência: Coaf, receita federal, quebra de sigilos bancários etc.), desburocratização e descartorialização do inquérito policial, respeito ao policial (pagando-o condignamente), desarmamento da população, policiamento comunitário etc.

Com exceção de algumas graves lacunas que devem ser eliminadas urgentemente, como por exemplo a falta de definição legal do crime organizado, das organizações criminosas, dos grupos delinqüentes etc. (cf. nosso site – www.estudoscriminais.com.br), pouco espaço há para eficazes medidas legislativas, o que não significa que os parlamentares e partidos políticos não tenham que atuar ativamente em todos os debates.

Nesse momento de histeria coletiva e geral, que dificulta ainda mais a capacidade de verbalização racional da população e da mídia, aliás, ao contrário, incrementa a dramatização e banalização da vida humana e dos direitos fundamentais, principalmente por intermédio dos programas televisivos sanguinários (recorde: “se a maneira como você morre nada significa, então a maneira como você vive [também] nada significa” – H. Crews), é de se enaltecer com toda contundência a voz lúcida do general Alberto Mendes Cardoso (do gabinete de segurança da Presidência da República) que, com equilíbrio e prudência, vem procurando enfatizar que as medidas emergenciais não podem ser só de cunho militarizante e repressivo (cf. Valor Econômico de 25.01.02, p. A5).

Da sua correta visão do problema, que subscrevo integralmente e que deveria merecer a reflexão de todos, extrai-se que os que reforçam o aumento da repressão não são capazes de trazer uma só idéia nova para a sociedade; as eleições são um rico momento para a mudança radical da visão da população sobre as causas e soluções para a violência; as medidas emergenciais repressivas devem necessariamente ser conjugadas com ações sociais nas áreas carentes, o que significa não só a presença do Estado como obstáculo ao recrutamento pelo crime organizado dos [mais de oito milhões] de pré-adolescentes e jovens desempregados, que constituem o exército preferencial de reserva do crime.

Ações primárias de prevenção (que vão à raiz do problema: prevenção em algumas áreas geográficas, arquitetônica, comunitária, vitimária etc.), complementadas pelas secundárias (criação de dificuldades para o delito: mais policiais, mais eficiência da Justiça etc.) e terciárias (diminuição drástica da reincidência, ressocialização do preso etc.), que podem ser conhecidas profunda e detalhadamente no nosso livro citado (Criminologia, SP: RT, 2000, p. 347 e ss.), abrem, finalmente, uma nova e promissora perspectiva de busca de solução para o gravíssimo problema da (in) segurança pública.

Quem debelou a inflação no Brasil, que parecia insolúvel, ganhou oito anos de mandato. O político que, com arte e sabedoria, levar avante seriamente tudo que acaba de ser salientado conquistará o poder para a eternidade. Mesmo porque, “a morte não é o inimigo. Viver com medo constante dela é” (N. Cousins).

O autor é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, integrou a Comissão de Reforma Processual Penal.

Autores

  • Brave

    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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