'Pacote eleitoral'

Casuísmo na produção das leis criminais gera inconsistência

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22 de janeiro de 2002, 12h04

A comoção nacional causada pela morte do prefeito Celso Daniel levou o presidente da República a dizer que a violência “passou dos limites”. Deixemos de hipocrisia: a violência só passa dos limites quando bate às portas das pessoas influentes. Não se vê nenhuma reação indignada (como a desses dias), seja das autoridades ou da mídia, em relação às 35 mortes diárias somente no Estado de São Paulo, às 70 mortes em todos os finais de semana na Grande São Paulo, às 30 mortes violentas de brasileiros por ano para cada 100.000 habitantes (quando a média mundial é de 5/100.000).

Enquanto a violência se esconde na periferia, por intermédio das chacinas principalmente, é tolerável. Morrendo a patuléia, ainda estamos no limite do suportável. Afetou “gente graúda”, lá vêm os pacotes de segurança pública.

Esse filme, aliás, já é bem conhecido. Depois do seqüestro de um “Medina” no Rio de Janeiro em 1990 a reação foi imediata: lei dos crimes hediondos, que aumentou penas, cortou direitos fundamentais dos acusados e endureceu a execução da prisão.

Depois da “Favela Naval” veio a lei antitortura (que só não “pegou”, como se sabe, porque essa violência não atinge sequer a classe média). Logo após o “ônibus 174” do Rio de Janeiro vieram os planos de segurança nacional. Agora, morto Celso Daniel, anuncia-se mais um mirrado pacote antiviolência (com várias sugestões de Alckmin), que de diferente tem a linguagem de guerra: “guerra à bandidagem”, “medidas concretas”, “guerra à violência” etc.

Essa guerra, antes de tudo verborrágica, marqueteira e eleitoral, não só começa a fazer concorrência desleal com alguns sanguinários programas televisivos (que estão “aquieagorizando” ou “ratinizando” o Direito Penal), como incrementa a banalização da violência, da morte e do respeito aos Direitos Humanos fundamentais.

É justamente no momento de histeria coletiva ou de comoção nacional que os governantes devem mostrar prudência, equilíbrio, preparo técnico e emocional. E no momento de se formular propostas de solução de um megaproblema como é o da insegurança devem estar cercados de gente que entende de cada uma das intrincadas áreas envolvidas.

Repassando a interminável lista das medidas antiviolência que acabam de ser pregadas e/ou anunciadas:

(a) prisão perpétua e pena de morte: ignorância jurídica total! São absolutamente impossíveis no atual quadro Constitucional; há proibição expressa protegida por cláusula pétrea; esse assunto nem sequer pode ser discutido no Congresso Nacional;

(b) uso da polícia federal nos seqüestros, roubo a bancos, lavagem de capitais etc.: medida salutar, mas fazendo-se antes uma “limpeza” em todas as polícias;

(c) eliminação da corrupção na polícia: nada é mais urgente do que isso! Dizem que o “bandido” deve ter medo da polícia; mas para isso a polícia tem que se dar o respeito (o policial deve ser íntegro) e antes de tudo tem que ser respeitada (não pode ganhar salário de fome nem viver de “bicos”); as pessoas hoje morrem de medo não da polícia, sim, da extorsão de alguns policiais;

(d) “execução da bandidagem e da ladroagem” (do tipo “pau, pau, pau neles”): segurança pública é assunto muito sério para ser talibanizado”! Será que os autores dessa absurda proposta estão computando o risco de extermínio de uma boa parcela da polícia, da justiça, dos governantes etc.?;

(e) construção de penitenciárias federais de segurança máxima: urgentemente! Antigamente se dizia: a polícia prende e o juiz solta; hoje o juiz não solta, mas o preso foge (foram 20.000 fugas nos últimos cinco anos);

(f) proibição de aparelhos celulares pré-pagos: sugestão disparatada! O uso indevido (por alguns) das invenções tecnológicas não pode impedir a grande maioria de delas usufruir. Há conhecimentos técnicos para se fazer interceptação desses celulares. Se for para acabar com tudo que causa mal para a sociedade deveríamos então proibir a fabricação de carros (que matam 45.000 pessoas por ano no Brasil, deixando 600.000 feridas);

(g) uso de cabo de aço para evitar fuga por helicóptero: solução pragmática mas ridícula! Dentro de pouco vamos começar a bater pedras dentro dos presídios para conseguir faísca;

(h) bloqueio de celulares nos presídios: sim, mas antes é preciso acabar com a corrupção no sistema penitenciário que permite o ingresso do celular no cárcere;

(i) aumento de policiais: providência urgente (mas bem treinados, preparados, equipados e motivados); do contrário só vamos aumentar a infiltração deles no crime organizado;

(j) controle das empresas de segurança inclusive pelos Estados: medida acertada! A “segurançabras” foi a indústria que mais cresceu nos últimos anos. Mais de um milhão de homens armados precisam ser controlados;

(l) indisponibilidade de bens dos seqüestradores: já há meios jurídicos para isso nas leis vigentes; indisponibilidade de bens dos seqüestrados e de sua família: medida de eficácia discutível porque a vítima pode, para salvar sua vida, tomar dinheiro emprestado para pagar o resgate;

(m) aumento de pena para o porte ilegal de arma: que adianta aumentar a pena se são poucas as pessoas (mal intencionadas) que são flagradas com arma ilegal? Essa providência só pode ser pertinente quando a polícia apreender todas as armas ilegais (mais de 8 milhões, só no Estado de São Paulo);

(n) restrição dos direitos dos presos: já existe na legislação vigente – lei de execução penal – meios adequados para isso;

(o) uso de videoconferência na justiça: urgente! Resguardando-se os direitos do acusado e da defesa. Não se pode controlar o crime digital com meios e métodos analógicos;

(p) definir o que se entende por crime organizado: urgentemente! Temos duas leis no Brasil que cuidam do crime organizado (Leis 9.034/95 e 10.217/01) e não sabemos juridicamente o que é isso. É um absurdo! (Veja mais detalhes no site Estudos Criminais)

(q) unificação das polícias: só é possível a unificação operacional. Comando único nas atividades policiais é indispensável. No mais, impossível unificar água e óleo!

(r) inversão do ônus da prova: absurdo inqualificável! Há quase 800 anos o Rei João Sem Terra firmou a Magna Carta de 1215 estabelecendo no seu art. 39 que ninguém pode ser privado de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, que assegura que quem acusa tem que provar.

O fracasso do modelo de política de segurança até agora implantado (mais leis, aumento de penas, endurecimento da execução, mais viaturas, mais policiais etc.) é retumbante. É preciso pensar esse assunto com mais profundidade, para se chegar a sua origem.

O plano emergencial contra a violência passa por algumas medidas repressivas mas sobretudo por programas preventivos de cunho alimentar, educacional e ocupacional (o que não será conseguido nunca se continuarem cortando as verbas da segurança pública, como fizerem no orçamento desse ano).

Nenhuma política de segurança terá sucesso se desacompanhada de políticas urbanas que requerem intensa participação do Governo e da sociedade civil, que finalmente está descobrindo que só blindar o carro não adianta. Nos anos 80 e 90 todos imaginávamos que a inflação nunca seria controlada e foi. Agora é a vez de assumirmos o controle da violência, por meio de um pacto suprapartidário, em favor da paz e contra a violência e que poderia ter seus primeiros passos traçados no encontro desta terça-feira (22/1) entre Lula e Fernando Henrique.

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