Crime hediondo

Professor: 'novo entendimento do STF sobre estupro contraria a lei'

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4 de janeiro de 2002, 12h48

A mudança de entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no HC 81288/SC, ainda pendente de publicação, portanto passível de recurso, para considerar estupro e atentado violento ao pudor como delitos hediondos em qualquer situação merece alguns apontamentos.

Esses delitos são daqueles que causam repugnância a primeira vista, não é por isso, porém, que se deve passar por cima da vontade da lei.

O voto condutor, da lavra do Eminente Ministro Carlos Velloso consigna que a lei 8072/90, artigo 1°, definiu o estupro como crime hediondo, classificação esta ratificada pela lei 8930/94, que deu nova redação àquele diploma legal.

Quase unanimidade da doutrina segue o entendimento da hediondez para capitular o estupro e o atentado violento ao pudor, isoladamente, pois a combinação com o artigo 223 fornece idéia, como não poderia deixar de ser, de soma. Segundo o Ministro Velloso nenhuma redundância há em se tipificar como hediondo o menos (estupro ou atentado violento ao pudor) e o mais (estupro/atentado qualificados por violência grave), face o princípio da reserva legal .Some-se, que o artigo 6° da lei 8072/90, conforme o Ministro Velloso, majorou as penas dos artigos 213, 214 e 223 sem distingui-los.

Diziam os realistas norte-americanos : “Direito é o que a Suprema Corte diz que é”. Não partilhamos, todavia, “concessa maxima venia”, do entendimento. Ausente em nossa legislação, para o caso em espécie, que o sofrimento psíquico é pior que o físico. Não partilhamos não é porque discordamos das pesquisas efetuadas a respeito. Tão somente, porque a lei nacional disso não trata.

Consideramos o voto do Ministro Néri da Silveira o mais acertado. Afinal, se o homicídio simples não é crime hediondo, seria mais repugnante o trazer seqüelas de um ato bárbaro a deixar de existir?

Na verdade, rezava a antiga redação da lei 8072/90, no artigo 1°.: “Art. 1º São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados ou consumados.”

O que vemos neste revogado artigo? A expressão “caput”, do latim, “cabeça”, que serve para isolar o crime de estupro e sua combinação com o artigo 223, “caput”. Esta expressão latina inexistia para o delito de atentado violento ao pudor. Eram crimes hediondos no nascedouro da lei 8072/90, o estupro art. 213 “caput” e sua combinação com o artigo 223. Era crime hediondo o atentado violento ao pudor e sua combinação com o artigo 223 do CP.

Alguns dirão, certamente, que o “caput” referido servia para distinguir do parágrafo único acrescido aos artigos 213 e 214 pela lei 8069/90, o que levaria à singela conclusão de que o estupro simples fosse crime hediondo, mas se praticado contra menor de 14 anos, não fosse. A lei 8069/90, publicada em 16 de julho de 1990, entrou em vigor apenas em 14 de outubro. Direcionava-se a agravar a pena do estupro, ou do atentado violento ao pudor cometidos contra menor de 14 anos, que, na forma simples tinham sanção, respectivamente, de 03 a 08 anos e, dois a sete anos de reclusão. Acontece que a lei 8072/90, em vigor em 25 de julho de 1990, tornou “letra morta” o parágrafo único acrescido ao Código Penal pela lei 8069/90, porque majorou a pena dos tipos simples de estupro e atentado violento ao pudor para reclusão de seis a dez anos. Este, por sinal ,o entendimento da Corte:

“O art. 263 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – que previu para o crime de estupro contra menor de 14 anos pena de 4 a 10 anos de reclusão – foi revogado antes de entrar em vigor pela Lei 8072/90 (“Crimes Hediondos”), que fixou para o estupro, independentemente da idade da vítima, pena de 6 a 10 anos. Com esse fundamento, a 1ª Turma denegou habeas corpus impetrado em favor de paciente que praticara o referido crime contra menor de 14 anos, na vigência da Lei 8072/90. HC 7 2.435-SP, rel. Min. Celso de Mello, sessão de 12.09.95., informativo número 05, site www.stf.gov.br.

Logo, o “caput” do artigo 213, previsto originariamente na lei 8072/90, não procurava distinguir o estupro simples do estupro do parágrafo único incluído pela lei 8069/90. Porque a lei 8072/90,embora publicada depois, entrou em vigor antes da lei 8069/90, que em período de “vacatio legis” não produz efeitos, não entra em vigor, basta ver o famoso exemplo do Código Hungria de 1969. O “caput” servia, sim, para incluir o estupro simples como delito hediondo bem como a sua combinação com o artigo 223 “caput” e parágrafo único. Ressalte-se a ressalva legislativa abranger somente o estupro.

Na nova redação, da lei 8930/94, o legislador não utilizou a expressão latina “caput” especializante para o estupro, e repetiu a ausência da antiga redação para o atentado violento ao pudor, nos incisos V e VI, conforme se depreende: “Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:

….

V- estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, “caput” e parágrafo único;

VI- atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223 “caput” e parágrafo único).”

Não bastasse isso, o espírito da lei 8930/94, quando quis especializar sem a expressão “caput” utilizou a partícula “na”, que o dicionário Aurélio traduz, basicamente, por “o em “. Assim, é delito hediondo a extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (inciso IV ). Ou seja o “caput” da extorsão é crime hediondo e “o em” forma qualificada.

Isto não ocorre com o estupro, por dizer, simples. A redação não é, v.g., “estupro (art. 213 e na sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)”. Se não o diz, se não particulariza o crime de estupro, como o fizera na redação original o art. 1° da lei 8072/90, com a expressão latina “caput”, antes das modificações da lei 8930/94, não cabe ao interprete dizê-lo, por mais humanos sejam os motivos condutores do voto.

Quanto às majorações do artigo 6°, cremos que tinham que ser realizadas isoladamente mesmo, pois, ao contrário do que muitos sustentam, visualizamos que a qualificadora do artigo 223 e parágrafo único, direciona-se, não apenas ao estupro e ao atentado violento ao pudor, também, ao delito de rapto violento, do artigo 219.

Para finalizar, observamos a redação do artigo 9° da lei 8072/90. Aqui, o legislador particularizou o crime do artigo 213 com “caput”, mas não o fez com o artigo 214!

“Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.”

Tal ocorre, ao que parece, porque o artigo 9° segue a revogada redação do artigo 1° da lei 8072/90,que, repetimos, especializava o estupro do artigo 213, como hediondo, por meio da expressão “caput”.

Queremos compreender , v.g., que o estupro simples, artigo 213 “caput”, praticado contra uma menor de 14 anos, tem a pena aumentada da metade. Metade do que resultou do cálculo do artigo 213. Assim, também, em face da particularização, o estupro de que resultou lesão corporal de natureza grave, contra uma menor de 14, também tem a pena aumentada da metade . Metade do que resultou do cálculo do artigo 223. Já o atentado violento ao pudor, não é especializado com “caput”. Logo , para que incida o aumento da pena pela metade, faz-se preciso, por exemplo, que do atentado resulte lesão corporal de natureza grave. Ausente esta no exemplo, o artigo 224 serve como agravante da pena: Dura lex sed lex .

Pode não ser a interpretação mais humanista. Não se pode olvidar, porém, as conseqüências resultantes da ampliação do crime de estupro, ou atentado violento ao pudor, simples, para delito hediondo, em qualquer caso. A possibilitar as conhecidas e severas impossibilidades da lei 8972/90. Não foi, decididamente, o intuito da lei 8930/94. Foi, sem sombra de dúvida, e, o explica o momento histórico, a intenção da primitiva lei 8072/90, tão somente para o delito de estupro .Por ser “lex gravior”, não é ultra-ativa, respeitando-se, assim o postulado do “nulla pena sine lege”.

Veja a íntegra da decisão

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