Direito Quântico

'Justiça precisa rever conceitos para interpretar a Internet'

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3 de janeiro de 2002, 13h29

Novíssimas questões jurídicas têm surgido a partir do advento da informática e, mais recentemente, da Internet. Seriam os instrumentos jurídicos atuais aptos a solucionar estas questões? Ou seria necessária a formulação de novas leis destinadas a estas novas questões, como o domínio eletrônico, o spam, os “ataques hacker“, ou mesmo a tributação do comércio online?

Pensamos que a Internet não suscitou, ao menos em grande parte das questões, a necessidade de formulação de novas leis para a solução jurídica dos problemas surgidos com sua popularização. A revés, boa parte das críticas ao sistema jurídico brasileiro refere-se à existência de uma quantidade enorme de leis, as quais seriam muitas vezes desnecessárias caso os operadores do direito esforçassem-se por interpretar a norma, contextualizá-la à sua realidade.

Cremos ser este o caso da Internet: muitas de suas questões jurídicas podem ser solucionadas mediante um esforço hermenêutico. Para tanto, insta entender como é constituída a Internet e, para isto, deve-se entender qual a realidade física que a constitui, a fim de que a interpretação dos dispositivos normativos traga realmente a norma à realidade.

Negroponte (1) aponta uma perspectiva muito interessante sobre a natureza dos bits, em última instância os componentes essenciais da informação e, portanto, da Internet, comparando-os aos átomos.

Os bits são apenas um registro eletrônico de um estado: ligado ou desligado, verdadeiro ou falso. No entanto, de acordo com Negroponte, fundador do Media Laab, laboratório de multimeios do MIT (Massachussets Institute of Technology), os bits são mais que isso: são os DNA da informação, a sua estrutura básica. Ainda segundo o autor, os bits, em alguns casos, podem valer, financeiramente mais, do que os átomos. Justifica o autor sua posição exemplificando:

“Recentemente, visitei o quartel-general de uma das cinco maiores empresas americanas fabricantes de circuitos integrados. Pediram-me que assinasse um registro de entrada e me perguntaram se eu trazia comigo um laptop. É claro que sim. A recepcionista perguntou-me o modelo, o número de série e o valor do aparelho.

“Alguma coisa entre 1 e 2 milhões de dólares”, respondi. “Mas isso não pode ser, senhor”, replicou ela. “Como assim? Deixe-me vê-lo”.

Mostrei a ela meu velho PowerBook, cujo valor ela estimou em 2 mil dólares. Registrou a soma, e eu pude entrar na empresa. A questão é que, embora os átomos não valessem tudo aquilo, os bits tinham um valor quase inestimável”.

Assim, percebe-se a importância econômica dos bits. Em um apanhado histórico sobre a distinção em debate, Marco Aurélio Greco (2) denota que o paradigma utilizado pela civilização ocidental para basear as suas relações sociais sempre foi baseado em átomos. Assim, os bens têm seu valor aferido a partir das características físicas dos seus átomos: durabilidade, densidade ou mesmo a raridade. Neste sentido, por exemplo, é que o ouro adquiriu o valor econômico que lhe é dispensado até hoje.

Ainda segundo Marco Aurélio Greco, as normas jurídicas, sempre produzidas a partir deste paradigma, foram criadas com vistas a reger situações relacionadas a átomos. Assim, exemplificando, cita o professor da PUC-SP alguns institutos jurídicos: “o furto como apropriação de uma “coisa” (conjunto de átomos), a propriedade e a posse como reportando-se a objetos móveis ou imóveis (átomos); a tributação adotando como critério de sua incidência conceitos que retratam coisas (tributação de ‘mercadoria’)”.

Percebe-se, assim, a impotência da instância jurídica, por força dos paradigmas por ela adotados, em lidar com problemas que envolvem bits. Resta, assim, procurar formular uma teoria que consiga inter-relacionar bits e átomos.

A noção de átomo precisa ser inserida na discussão jurídica. O Direito necessita estar lado a lado com as descobertas recentes das outras disciplinas, porque este, sendo uma ciência social e, portanto, do dever ser, depende dos conceitos oriundos das ciências que estudam o ser. O ser sobrepõe-se ao dever-ser; logo, a ciência ontológica deve providenciar os conceitos com os quais as ciências do dever-ser trabalham, ou a estas não será possível conceder a posição de ciência: serão mera especulação metafísica.

Pode-se observar que o paradigma dentro do qual os institutos jurídicos ainda era o do mundo mecânico reducionista concebido por Isaac Newton. Nele, a matéria difere-se da luz e, por conseguinte, da energia. No entanto, mesmo sob este paradigma, energia e matéria não são excludentes, uma vez que a luz tem tanto características de onda eletromagnética quanto de matéria.

De qualquer modo, Newton define a matéria em seu Opticks:


” All these things being considered, it seems probable to me, that God in the beginning formed. Matter in solid, massy, hard, impenetrable, moveable particles, of such sizes and figures, and with such other properties, and in such proportion to space, as most conduced to the end for which he formed them; and that these primitive particles, being solids, are incomparably harder than any porous bodies compounded of them; even so very hard, as never to wear or break in pieces; no ordinary power being able to divide what God himself made one in the first creation.”

Newton utilizou-se de um conceito postulado, basicamente, entre 470 e 361 AC, pelo filósofo grego Demócrito (3) de Abdera. Segundo ele, o ser é identificado por sua quantidade geométrica, comportando, portanto, a extensão. O ser é dividido em porções de extensão indivisíveis (daí o significado original da palavra átomo) que são separadas pelo vácuo.

A idéia de que a matéria é constituída por um conjunto de átomos indivisíveis só começou a perder sentido com a mudança de perspectiva que culminou com o Projeto Manhattan e a conseqüente invenção da bomba atômica. No conjunto destas transformações uma teoria proposta por Albert Einstein em 1905 merece especial destaque dentro da discussão presente: a Teoria da Relatividade Especial.

Esta teoria chegou a conclusões que modificaram o pensamento humano no século XX, uma vez que são soluções pouco ortodoxas dentro de um paradigma newtoniano. No entanto, uma conclusão desta teoria merece especial interesse, pois envolve uma nova concepção da natureza da matéria. Stephen Hawking (4), físico que ocupa atualmente a cadeira que já foi de Isaac Newton em Cambridge, e aponta:

“O postulado fundamental da teoria da relatividade, como foi chamada, é que as leis científicas são as mesmas para todos os observadores em movimento livre, não importa qual seja a sua velocidade. Isto era verdadeiro para as leis do movimento de Newton, mas agora a idéia abrangia também a teoria de Maxwell e a velocidade da luz: todos os observadores encontram a mesma medida de velocidade da luz, não importa o quão rápido estejam se movendo. Esta simples idéia tem algumas conseqüências notáveis: talvez as mais conhecidas sejam a equivalência de massa e energia, contida na famosa equação de Einstein E=mc2 (onde E significa energia, m, massa, e c, velocidade da luz); e a lei que prevê que nada pode se deslocar com mais velocidade do que a própria luz. Por causa da equivalência entre energia e massa, a energia que um objeto tenha, devido a seu movimento, será acrescentada a sua massa”.

Conclui-se, assim, que matéria e energia equivalem entre si. Objetar esta afirmação é o mesmo que dizer que um carro deixaria de ser um carro só porque está em movimento. Pela teoria da relatividade, a diferença entre Energia e Matéria é, basicamente, uma questão de velocidade; a Matéria, ao adquirir velocidades tais que se aproximem da velocidade da luz, adquire cada vez mais massa, uma vez que a Energia gasta para atingir tais velocidades iria se materializando.

É por isso que a matéria não pode atingir a velocidade da luz: neste ponto, sua massa seria infinita e gastaria também uma quantidade infinita de energia neste processo.

Afinal, se E = mc2, c2 = E/m, de onde se extrai que, caso a relação de proporcionalidade entre m e E seja válida, E e m deverão ter valores altíssimos (Stephen Hawking aponta, inclusive, como infinitos), o que é fisicamente impossível. Doutro modo pode-se concluir matematicamente a identidade entre Energia e massa.

Dentro da obra Relatividade: as teorias geral e restrita, Einstein adota, numericamente, que a velocidade da luz equivale a aproximadamente 300.000 km/s (ou 300.000.000 m/s, no Sistema Internacional de medidas). Substituindo tal valor, temos que:

E = mc2 -> E = (300.000.000)2 . m

Que isso significa? Apenas que Energia e massa (matéria) são idênticos, desde que à velocidade da luz. Por esta equação conclui-se também que, conforme a citação de Stephen Hawking, à medida que a matéria atinge velocidades próximas à da luz, a energia passa a converter-se em matéria. Resumindo: energia é massa à velocidade da luz elevada ao quadrado. Por que então nosso senso comum, desarmado de postulados científicos, percebe diferentemente a massa e a matéria, por vezes classificando ambas como sendo opostos (tangível e intangível, concreto e abstrato, por exemplo)? Isso acontece porque a conversão de energia em massa não é um fenômeno observável no dia-a-dia. Neste sentido, a luz, conforme atesta Stephen Hawking, tem natureza de onda eletromagnética e também de partícula (matéria).

No entanto, mesmo sob o paradigma newtoniano poder-se-ia apontar a natureza material da energia (ou natureza energética da matéria?). Segundo Isaac Newton, em seus estudos sobre a Força Gravitacional, F = (M . m . G) / d2, (F = força; M = massa de um corpo; m = massa de outro corpo; d = distância entre os dois corpos), i. é., um corpo (matéria ) atrai outro corpo com determinada força, força esta cuja intensidade varia em razão inversa ao quadrado da distância entre os dois corpos.


É relativamente fácil perceber o efeito desta força, uma vez que é por causa dela que permanecemos fixos ao chão e os planetas orbitam o Sol, por exemplo.

No entanto, se considerarmos que a luz, sendo onda eletromagnética e, portanto, energia, não tem massa, a conclusão óbvia seria a de que nenhuma massa exerceria força gravitacional sobre a luz, pois:

1) Dados:

M = massa do primeiro corpo;

m = massa da luz = 0 g

G = constante gravitacional universal;

d = distância entre os corpos;

2) Dedução matemática

F = (M . m.. G)/d2 -> F = (M . 0 . G)/d2 . . . F = 0

A conclusão desta dedução é que a força gravitacional inexistiria. Apesar disto, não é o que ocorre. A luz sofre sim interferência da gravidade, e é desviada por ela. A luz, ao passar perto de um corpo com massa gigantesca, desvia, demonstrando que a força gravitacional é atuante; como já observado, premissa básica para esta força atue é a existência de dois corpos com massa. Conclui-se novamente que a luz tem, além de sua natureza ondulatória, também natureza corpuscular. Sobre esta afirmação postula Stephen Hawking (5):

“(… ) Pela dualidade onda/partícula da mecânica quântica, a luz tanto pode ser considerada onda como partícula. Segundo a teoria de que a luz é formada por ondas, não fica esclarecido o fato de ela responder à gravidade. Mas se a luz é composta por partículas, pode-se esperar que elas sejam afetadas pela gravidade , da mesma forma que balas de canhão, pedras ou planetas o são.

Inicialmente, acreditava-se que as partículas de luz se deslocavam em velocidade infinita, de tal modo que a gravidade jamais seria capaz de atraí-las. Mas a descoberta de Roemer, de que a luz se propaga em velocidade finita, implica que a gravidade podia ter um efeito importante.

Com base nesta suposição, um professor de Cambridge, John Michel, escreveu em 1783 uma obra nos Trabalhos filosóficos da Royal Society de Londres, no qual apontava para o fato de que uma estrela, com massa suficiente e devidamente compacta, poderia ter um campo gravitacional tão forte que a luz não lhe pudesse escapar: qualquer luz emitida pela superfície da estrela seria puxada de volta por sua atração gravitacional, antes que conseguisse se afastar muito. Michell sugeriu que deveria haver um grande número de estrelas nesta situação. Ainda que não fôssemos capazes de vê-las, porque sua luz não nos atingiria, poderíamos sofrer sua atração gravitacional. Estes objetos são o que chamamos atualmente de buracos negros, porque é exatamente isto o que eles são: vácuos escuros no espaço”.

Tendo em mente esta concepção da Matéria, resta analisar a distinção supracitada entre bits e átomos proposta por Negroponte. O bit, como já vimos, é um estado de energia registrado em meio eletrônico. Economicamente, o bit enquanto bit, não é importante, uma vez que não tem valor por si só; só é importante na medida em que as informações registradas têm valor. Ou seja, os bits são importantes na medida em que são úteis.

Na verdade, isto também ocorre no chamado “mundo dos átomos”, uma vez que algo é valorizado economicamente de acordo com sua utilidade. Exemplificando, poderíamos citar o caso dos livros. Um livro, fisicamente, é uma folha de papel, uma capa de algum material mais durável, e tinta. No entanto, seu valor econômico não reflete apenas o que materialmente compõe o livro; importa, outrossim, a informação que está nele contida. O mesmo acontece com a informação veiculada por meio dos bits, ou seja, este é valorizado em função da utilidade daquela.

O que diferencia um livro dos bits não é a informação, mas sim o meio como ela é propagada. Marco Aurélio Greco disserta sobre o tema:

“(…) O valor não está mais atrelado necessariamente às características físicas das coisas. As informações, mensagens, dados, instruções, softwares, etc, adquiriram valor próprio, independente dos átomos de que é formado seu meio físico, valor este muitas vezes superior aos respectivos átomos. Isso se estende não apenas a valores de softwares, mas alcança o valor que possuem bancos de dados, registros financeiros de operações bancárias, registros contáveis etc. Até mesmo objetos que originalmente tinham natureza física, passaram a ter feição virtual; é o caso das ações de sociedades anônimas que até certo tempo atrás eram apresentadas em papel, geralmente, coloridas, numeradas, assinadas etc. e que hoje em (6)dia foram substituídas pelas “ações escriturais”que nada mais são do que um “registro” (conjunto de bits) na memória de um computador.

E outros exemplos poderiam ser mencionados.

Ou seja, há uma dupla mudança: por um lado, a informática deu vida a novos “bens” (softwares, bancos de dados, etc.); por outro lado, bens clássicos assumiram nova feição (virtual) em razão dos avanços da tecnologia e da informática (basta lembrar os chamados “livros eletrônicos).”

Mas como relacionar Einstein a bits? Ora, bits, sendo um estado da energia elétrica, deve comportar-se de acordo com as leis da física, subordinando-se, portanto, às premissas e conclusões da teoria da relatividade. E se uma destas conclusões é de que matéria e energia são equivalentes, os bits equivalem aos átomos: são matéria. Afirmar o contrário é o mesmo que afirmar que o gelo deixa de ser composto por duas moléculas de Hidrogênio e uma de Oxigênio só por causa da temperatura.

Aliás, ironicamente, a razão é a mesma, embora a nível molecular: o processo de solidificação (transformação da água em gelo) ocorre por causa da diminuição da temperatura, que é a medida da velocidade de choque entre as moléculas.

Assim, diversos conceitos jurídicos, necessitam ser reinterpretados a fim de que o Direito possa dar solução a questões novíssimas surgidas com o advento da informática, como a tributação das operações realizadas no âmbito da Internet, o conceito de “coisa móvel”, que precisa ter seu sentido adaptado para que se possa combater, ao menos no plano jurídico, os tão temidos hackers sem que seja necessária a formulação de novas leis.

O bom operador do direito não pode ficar inerte, esperando do legislativo respostas para estes problemas, pois, como assegura Kelsen, inexistem lacunas no Direito. O bom operador do direito deve ser, antes de tudo, um hermenêuta, apto a contextualizar a norma jurídica e a transpô-la para seu tempo.

Portanto, o Direito, para atualizar-se frente às novas conquistas científicas e responder adequadamente às questões jurídicas, deve aceitar as conquistas da física contemporânea, uma vez que a Internet, tendo sido gerada sob paradigma diverso do newtoniano, não pode ser regida por um sistema normativo nele baseado.

Notas de Rodapé

NEGROPONTE, Nicholas. A Vida Digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

2 GRECO, Marco Aurélio. Internet e direito. 2a Ed. São Paulo: Dialética, 2000

3 MARITAIN, Jacques. Elementos de Filosofia I: introdução geral à filosofia. Trad: Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado. 18a ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998

4 HAWKING, Stephen W. Uma Breve História do Tempo – Do Big Bang aos Buracos Negros. Trad: Maria Helena Torres. Rocco: Rio de Janeiro, 1997

5 HAWKING, Stephen W. Uma Breve História do Tempo – Do Big Bang aos Buracos Negros. Trad: Maria Helena Torres. Rocco: Rio de Janeiro, 1997

6 GRECO, Marco Aurélio. Direito e Internet. São Paulo: Dialética, 2000

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