Obrigação alimentar

Título extrajudicial embasa ação de execução de alimentos

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2 de janeiro de 2002, 8h12

Embora seja procedimento bastante comum na lide diária do operador de direito (se não for o mais comum, se pensarmos nas filas que se formam nas Assistências Judiciárias das faculdades de Direito), a ação de alimentos tem aspectos, tanto materiais como processuais, que podem intrigar mesmo o mais experimentado jurista.

O presente texto visa expor alguns desses aspectos, pouco conhecidos, da ação de alimentos, ressaltando, de plano, que não se tratará de nenhuma nova teoria acerca de Direito de Família ou de Direito Processual Civil. Também não irá propor qualquer inovação legislativa, mas apenas será oferecida uma nova perspectiva da ação de alimentos, a partir de ângulos jurídicos pouco explorados, decorrentes das diferentes naturezas jurídicas, materiais e processuais que podem ser atribuídas à obrigação alimentar e, por conseqüência, a seu instrumento de manejo processual, a ação de alimentos.

Nossa atenção se concentrará sobre uma natureza que nos parece mais relevante, tanto por seus aspectos capitais em relação à ação de alimentos como pelo seu interesse processual: discutir-se-á a natureza do título executivo, que autoriza à parte ingressar em juízo com o pleito de alimentos.

Nossas considerações, partindo de conceitos e idéias fundamentais em Direito, visam somente oferecer alternativas de pensamento aos operadores de direito, frente a um combalido tema jurídico, no caso a ação de alimentos, que, por vezes ignorado, constitui-se, por sua própria natureza ontológica, em assunto do mais profundo interesse forense.

Considerando, inicialmente, o plano processual, levantamos a questão: pode título executivo extrajudicial embasar ação de alimentos?

Comumente, o título executivo que embasa a ação de alimentos trata-se de um título executivo judicial, ou seja, trata-se de uma sentença, condenatória ou homologatória, ou então uma decisão interlocutória, que concede os alimentos provisionais ou provisório, em sede de liminar.

Entretanto, não parece inadequado propor a ação de alimentos, fulcrando-se o autor em um título executivo extrajudicial, dentro do rol oferecido pelo artigo 585, II, do CPC vigente: na realidade, não há qualquer óbice de natureza processual ao manejo dos referidos títulos para fundamentar ação de alimentos.

O capítulo III do Título I do Livro II do Código de Processo Civil de 1973, que trata dos requisitos para realizar qualquer execução, elenca dois elementos como indispensáveis para o manejo do processo de execução: o inadimplemento do devedor, descrito no artigo 580, e o título executivo, previsto nos artigos 583 e seguintes do mesmo diploma legal.

O parágrafo único do artigo 580, que objetiva delimitar o interesse processual para o ingresso em juízo com ação executiva, oferece luxuoso argumento que nos autoriza a dizer que é perfeitamente cabível a execução de alimentos, fundada em título executivo extrajudicial; transcreve-se o parágrafo, in verbis:

Art.580.(…) Parágrafo único. Considera-se inadimplente o devedor, que não satisfaz espontaneamente o direito reconhecido pela sentença, ou a obrigação, a que a lei atribuir a eficácia de título executivo.(grifo nosso)

Logo, a insatisfação, pelo devedor, do conteúdo obrigacional do título executivo, nas condições, termos e modos constantes do título, determina o inadimplemento da obrigação e autoriza o ajuizamento da ação de execução.

Não distinguiu o legislador de 1973 entre títulos executivos judiciais e extrajudiciais, servindo-se apenas da expressão genérica (“título executivo”) para indicar o primeiro requisito necessário para realizar qualquer execução.

Assim, devem ser descartadas interpretações que busquem excluir o título executivo extrajudicial como título hábil a embasar a executiva de alimentos, tendo em vista o supramencionado parágrafo único do artigo 580 do CPC, que apenas menciona o gênero (“título executivo”), sem distinguir as espécies (judicial ou extrajudicial).

Atente-se para o fato de que o comando normativo transcrito disciplina a questão do interesse processual, impondo a regra geral para a validade da execução o inadimplemento, sem estabelecer exceções acerca da natureza do título, que deveriam ser expressas, por tratar-se de Direito Público.

A lei não distinguiu entre as duas espécies de título executivo, e sim proibiu o credor de iniciar ou de prosseguir a execução antes do inadimplemento, a teor dos artigos 581 e 582 do CPC, cabendo nesse caso a aplicação da regra de hermenêutica segundo a qual “onde a lei não distingue, não pode o intérprete fazer distinções”: Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.

Certo é que, inexistindo qualquer vício no título executivo, mesmo o instrumento particular (artigo 585, II) é válido e eficaz nos termos da legalidade em que for constituído, cujo direito é tutelável mediante ação de execução de alimentos, sendo forçoso reconhecê-lo como fonte válida nas relações obrigacionais alimentícias e como título executivo sadio, capaz de embasar a execução alimentícia.

Mesmo razões de Hermenêutica Jurídica assistem à defesa dos títulos executivos extrajudiciais como base para ação executiva, de acordo com o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, abaixo transcrito:

Art. 5º. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Têm-se assim, que o transcrito artigo 5.º da LICC, indica o sentido da aplicação da Lei, quando da exegese, tratando-se, pois de interpretação teleológica, baseada nos fins sociais pelas quais foi criada e às exigências do bem comum.

Quanto à interpretação teleológica, Carlos Maximiliano legou-nos o seguinte trecho:

“Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesses para a qual foi regida.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito; 13.ª Edição. Editora Forense. 1993. pp. 151/152).

Entender que título extrajudicial não é hábil para embasar ação de alimentos é esquecer do disposto no artigo 5º da LICC, é rechaçar a interpretação teleológica daquela norma, que possui certamente um caráter sociológico, o de proteger os economicamente hipossuficientes contra o inadimplemento dos alimentos a que tem direito, fato este que, infelizmente, ainda é comum no país.

Ainda na seara da interpretação da norma jurídica, os professores e incontestes mestres da ciência jurídica Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho teceram as seguintes considerações:

“Também se revela de caráter sociológico, pois só penetrando as necessidade práticas da vida, só adquirindo contato com a realidade social, é que se torna possível o estudo dos fins práticos de justiça e de utilidade geral. O conhecimento dessas necessidades deriva, forçosamente, do exame dos fatos, que devem ser considerados no seu conjunto, em forma tal a poder orientar sobre a verdade das exigências sociais. EX FACTO JUS ORITUR.

Lembre-se a fórmula, extraordinária de concisão, mas inexcedível de eloqüência, pela sua grande, insuperável verdade, com que o juiz americano BRANDEIS traçou uma verdadeira orientação, para todo movimento da justiça bem compreendida: “nenhuma lei, escrita ou não, pode ser entendida sem o pleno conhecimento dos fatos, que lhe deram origem ou a que vai ser aplicada. A lógica das palavras deve ceder à lógica das realidades” (A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. 2ª edição. Editora Renovar. 1995. pp. 203)

Insista-se que o fato que deu origem à tutela diferenciada das prestações alimentares foi o caráter famélico das mesmas prestações, isto é, o credor de pensão alimentícia depende dela para comer.

Assim, no plano do direito processual civil, ao menos no que concerne à possibilidade de título executivo extrajudicial embasar ação de alimentos, nenhuma razão assiste aos defensores do contrário, pois a norma que permite tal interpretação é cogente, de observância obrigatória, tanto no plano processual como no plano material.

Esta é a interpretação mais condizente com o fim social para o qual a mesma foi criada, devendo pois, ser a exegese adotada em nossos Tribunais.

Considerando-se, novamente, o especial caráter da prestação alimentar que, ao contrário de outras formas obrigacionais, não diz respeito ao aumento ou diminuição do patrimônio do credor, mas sim à própria subsistência do mesmo, há que perguntar se uma autêntica interpretação teleológica indicaria a necessidade de uma ação declaratória, prévia a uma execução de alimentos, baseada em título extrajudicial, ou se indicaria uma execução plena, jurídica e sadia?

Sem dúvida que a última opção, seja por sua celeridade, seja por sua juridicidade, deve merecer a opção do operador do direito; entretanto, conforme já foi indicado, a natureza famélica da prestação alimentícia demanda certos cuidados, quando da constituição do título que pode vir a fundar a ação executiva, a fim de evitar-se contratempos processuais.

Assim, o documento escrito que descreve a obrigação alimentícia (escritura pública assinada pelo devedor, o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas, o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados das partes), deve conter menção expressa à natureza alimentar do conteúdo obrigacional ali descrito, bem como os termos, condições e modos de cumprimento da prestação alimentícia, além dos valores a serem pagos pelo devedor.

Trata-se de preocupação que visa, além de facilitar a prova do interesse processual do credor, representado pelo inadimplemento da prestação, permite a execução in mora debitoris, em caso de inadimplemento parcial da obrigação.

Tal cuidado ainda tem o condão de evitar uma desnecessária discussão, em sede de embargos, acerca da liquidez, exigibilidade e certeza do título oferecido, possibilita o pleito de liminar, a fim de possibilitar que o devedor deposite as prestações em juízo, agilizando o processo.

A conclusão a que chegamos é que o título executivo extrajudicial pode embasar ação de execução de alimentos.

Tal conclusão deriva de pressupostos jurídicos: nada há no CPC nem na legislação processual esparsa que nos desautorize a concluir o acima, em reverência ao Princípio da Legalidade (“É proibido o que a Lei não permitir”) posto que o artigo 580 fala apenas em “título executivo”, genericamente, sem descer à minúcia de discriminar suas espécies.

Deriva, igualmente, de pressupostos fáticos, dada o caráter famélico da prestação de alimentos, que exige pronta tutela jurisdicional, e mesmo a possibilidade de entrave processual deve ser evitada.

O que se pretende com a conclusão apresentada é marcar posição em dois planos: o reconhecimento do título extrajudicial como hábil a fulcrar ação executiva de alimentos e a necessidade de apontar-se alternativas processuais à tradicional ação de alimentos, como forma de desonerar o Judiciário de desnecessárias discussões jurídicas, o que, sem dúvida, constitui-se em ato de sã consciência e de viva cidadania.

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