Mensagens indesejadas

Spamming é constrangimento ilegal, afirma advogado

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2 de janeiro de 2002, 8h09

Sugeriu-se que, para publicar um catálogo de pedras preciosas, moedas, antiguidades ou outras curiosidades de um colecionador, por exemplo, sem seu consentimento, seria fazer uso de sua propriedade sem sua permissão, e é verdade, certamente, que um procedimento desta natureza não somente iria angustiar a vida de um colecionador como iria lisonjear outro – não seria somente uma calamidade ideal – mas tornaria a agressão ao proprietário mais vulgar. Tais catálogos, mesmo quando não descritivos, freqüentemente são perseguidos, e, às vezes, obtém preços substanciais. Estes, assim como os outros, não são necessariamente exemplos meramente de sofrimento infligido ao ponto de sentimento ou imaginação; pode ser isto, e outra coisa também(1).

Knight Bruce, V.C., in Prince Albert v. Strange, 2 DeGex & Sm. 652, 689, 690.

(O DIREITO À PRIVACIDADE, de Samuel Warren e Louis D. Brandeis. Foi publicado, originalmente, em 4 Harvard Law Review 193, no ano de 1890. Vide PRIVACIDADE NA INTERNET, um enfoque jurídico, 2001, São Paulo, Edipro, fls. 145).

O artigo 146 do Código Penal Brasileiro

Como tivemos oportunidade de consignar num artigo recentemente submetido à apreciação dos que navegam na WEB, na escada dos ilícitos, o spam se encontra em todos os seus degraus. É contravenção(2) é crime e é ilícito civil, além de atentar contra direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Nas presentes considerações discutiremos seus aspectos penais condizentes ao constrangimento ilegal.

Este crime está capitulado pelo artigo 146 do Código Penal, que dispõe o seguinte:

– Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

O constrangimento(3) pode ocorrer de dois modos: mediante violência ou grave ameaça (vis corporalis ou vis compulsiva) ou depois de haver sido reduzida a capacidade de resistência da vítima. Em ambas as hipóteses, ou alguém é obrigado a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que a lei não determina.

A violência se caracteriza pelo “emprego de força física para sobrepujar uma resistência. É todo meio físico idôneo a cercear materialmente em outrem a faculdade de agir segundo a própria vontade(4).

A ameaça, por sua vez, representa “a violência moral, a intimidação, a manifestação (por palavras, escrito, gestos, meios simbólicos) do propósito de causar a alguém, direta ou indiretamente, no momento atual ou no futuro, um mal relevante (5).

A redução da resistência da vítima pode se dar por quaisquer meios, desde que se mostrem aptos e idôneos para tanto.

Por fim, há os que entendem que, também, faz-se necessário o dissenso, a contrariedade, da vítima. Caso não exista inequívoca resistência, pontuam que não há crime. Dizem, ainda, que a negativa tímida ou o silêncio descaracterizam o crime.

O sujeito ativo e o sujeito passivo podem ser quaisquer uns. O elemento normativo do tipo é a submissão, em decorrência da perda de resistência. O elemento subjetivo é a vontade (a consciência) de constranger a vítima para não faça o que a Lei permite, ou que faça o que a Lei não a obriga fazer (6). O bem jurídico tutelado é a liberdade e o equilíbrio psíquico, que compreendem a tranqüilidade, o sossego e a ausência de aborrecimentos. Para sua consecução o agente pode se valer de qualquer meio.

Consuma-se quando a vítima, impotente em sua capacidade de resistência e defesa, passa a fazer o que a lei não manda que faça ou não fazer o que ela permite.

O spamming é constrangimento ilegal

Apesar da inexistência das palavras spam, spammig, spammer e Internet em nosso Código Penal, a figura delituosa do spamming já se encontra tipificada em seu artigo 146. Nele sujeito ativo é o spammer. O sujeito passivo é qualquer cibernauta que disponha de um correio eletrônico.

O elemento normativo do tipo é o constrangimento de ter que receber a indesejável mensagem do spammer. O elemento subjetivo é a imposição de fazer com que o destinatário faça o que nenhuma Lei o obriga a fazer. O bem jurídico tutelado é o direito de não ter que pagar para receber o e-mail que não solicitou e ter recorrentes aborrecimentos. O meio é a Internet. Consuma-se quando o destinatário recebe o spam.

O constrangimento pode se dar mediante qualquer meio que reduza a capacidade de resistência da vítima. Logo, em sendo qualquer o meio pelo qual pode ser perpetrado o crime, não há como se excluir a Internet.

Caso o spamming tenha por agentes mais que três pessoas, as penas originalmente previstas podem ser majoradas em até o seu dobro (7).

O spamming e a redução da capacidade de resistência da vítima

O spammer, em decorrência da estrutura da própria rede (e dos mecanismos de anonimato que pode se valer), reduz a capacidade do destinatário em se livrar do recebimento de suas indesejadas mensagens.

Em verdade, mais que reduzir a capacidade de resistência da vítima, ele anula essa sua capacidade. O cibernauta destinatário, vítima do constrangimento, não possui qualquer mecanismo eficaz para efetivamente evitar o recebimento dos spams. Existem “gambiarras” (os filtros de computadores ou os filtros das ISPs). Porém esses trazem com eles problemas técnicos e legais(8) e (9).

A situação da vítima do spam se assemelha a da pessoa que está num pátio encharcado de gasolina. Se algum piromaníaco resolver lançar um pequeno palito de fósforo aceso, a destruição ocasionada será absurdamente desproporcional em relação ao tamanho do instrumento causador do ato. Isso porque, qual o ilhado em tão ígneos mares, a vítima do spamming não tem como evitar que venham as mensagens eletrônicas não solicitadas.

Pode apagar algumas labaredas, usando extintores-filtros. Mas não terá como impedir que surjam novos focos de fogo. Pode filtrar os spams recebidos, mas não pode evitar que venham outros.

O spamming e o assédio sexual – analogia

Antes do advento do artigo 216-A (10) do CP, a questão do assédio sexual, consoante boa doutrina e talentosa jurisprudência, era tida como abarcada pelo tipo penal do artigo 146, também do CP.

Esse novo artigo foi fruto da Lei nº. 10.224/01, que por sua vez foi resultado do projeto de lei nº 14/01 do Senado que nasceu do projeto de lei nº. 61/99 da Câmara dos Deputados.

Todavia a Lei, a par de sua intenção de proteger a vítima do constrangimento legiferado, a verdade é que ela reduziu prerrogativas em vez de ampliá-las. Se de acordo com o artigo 146 o assédio sexual poderia se configurar em qualquer situação, de acordo com o artigo 216-A ele terá que decorrer, necessariamente, de uma relação de trabalho.

O fato de a pena ser maior (de um a dois anos), nada muda. De acordo com o artigo 89 da Lei nº 9.099/95, em tese é possível a suspensão condicional da pena (como no crime de constrangimento ilegal). Qual seja, passou-se a designar branco como “algo claro”…

A verdade é que estamos atados àquela velha mania de legislar sobre palavras, não sobre fatos. Se atentarmos aos fatos, veremos que pouco há a legislar. Técio Lins E Silva, com a tenacidade mental que lhe é peculiar, era contrário a uma tipificação específica, posto que essa conduta já estava prevista pelo artigo 146 do CP. “Ele vale para a obtenção de favores sexuais ou para qualquer outra espécie de pressão. Não é preciso criar um tipo especial para as situações de assédio. Seria uma medida deseducativa; as pessoas poderiam se retrair nas relações. Daqui a pouco, será perigoso piscar o olho ou dar um sorriso para alguém”.(11)

Isso porque as implicações decorrentes da valia da condição hierárquica em relações laborais se justificavam como meio para que o constrangimento tivesse vez, a ponto de levar a vítima a fazer o que a proíbe ou a deixar de fazer o que a lei permite.

Do mesmo modo que o empregado é contratado para trabalhar e não para atender aos desejos sexuais do empregador, igualmente o usuário da rede utiliza-a para fins próprios e objetivos, não para o recebimento de correspondência imprópria.

No caso do spam, o agente (o spammer) se vale das fraquezas dos códigos de programa da própria Internet para que a vítima seja compelida a fazer o que nenhuma lei a obriga a fazer, além de ter que pagar pelo que não requereu e ter aborrecimentos – e prejuízos – para ativar filtros que impeçam o recebimento da mensagem indesejada. Qual seja, aproveitando-se da situação das limitações impostas pelo meio informático autorizado pela Web, o spammer reduz as condições de volição da vítima, forçando-a a fazer o que a Lei não o obriga; constrangendo-a a pagar pelo que não solicitou; molestando-a a sair de seu cotidiano para se aborrecer com tarefas que não está disposta a cumprir por desobrigada legalmente para tanto.

Notas de Rodapé

1 Tradução de Omar Kaminski.

2 Contravenção (do latim contravenire, que significa transgredir) é um crime anão, via de regra consumado sem dolo (bastam a ação ou a omissão voluntária) e só é punível se praticado no território nacional. Representa u’a mínima ameaça – ou pouco significativa agressão – à normalidade social. Entre crime e contravenção não existem diferenças ontológicas positivas; o que existe é diferença de grau ou qualidade.

3 A palavra constranger (do latim, constringere) sempre implica a idéia de levar alguém à inação, à impotência, à incapacidade de reagir. Nos dicionários consta que constranger, entre outras coisas, é impedir movimentos de, tolher a liberdade, incomodar, forçar, coagir, violentar, obrigar pela força, compelir…

4 HUNGRIA, Nelson, COMENTÁRIOS AO CÓDIGO PENAL, vol. VI, Rio de Janeiro: Forense, 1958, fls. 153.

5 HUNGRIA, Nelson, COMENTÁRIOS AO CÓDIGO PENAL, vol. VI, Rio de Janeiro: Forense, 1958, fls. 153.

6 Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX).

7 § 1º – As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

8 Quando do recebimento de um primeiro spam teremos que alterar as configurações do sistema de filtragem de nosso correio eletrônico para que, doravante, tal mensagem não mais seja recebida (ou melhor, lida), haja vista que o simples apagar ou o mero filtrar não solucionam o problema. E por diversas razões.

Pro primo porque, pelo menos em algum momento a memória RAM de nosso disco rígido será vítima de um ataque por parte desses indesejáveis posseiros digitais, eis que para o processo da filtragem da não solicitada mensagem – e seu igualmente indesejável remetente – teremos que abri-la, copiar os detalhes que se prestarão para o critério de exclusão (normalmente o email do remetente ou o assunto [subject] reportado), aplicar os filtros de nosso software de correio eletrônico e, finalmente, apagar o indesejável spam. Para uma coisa que os spammers dizem “não custar nada”, nos é imposto um bocado de trabalho… Considerando que não se trata de pugnar pelo não recebimento de um único e solitário spam, mas de centenas ou milhares de mensagens de spammers renitentes, constatamos que o trabalho e o conseqüente aborrecimento crescem na mesma proporção. Pois é… os nossos serviços são unilateral e impositivamente contratados pelos spammers – mas sem carteira profissional de trabalho assinada ¡e com a obrigação de arcarmos com o pagamento de nossos próprios salários e demais ônus de seu empreendimento!

Pro secundo, sempre o recipiente de nossas mensagens eletrônicas (seja o do provedor de acesso à Internet, seja o de um correio baseado) guardará os spams, haja vista que o filtro não impede o recebimento da mensagem. O filtro permite, isso sim, que o tenhamos em nossa lista de emails recebidos apenas os que desejamos receber, mas não evitam que as mensagens indesejáveis permaneçam em nosso computador ou em nosso coreio baseado. Qual seja, os spams terão que ser recebidos e nós teremos o dispensável trabalho de, em algum momento, apagá-los.

Pro tertio, consignemos que há um limite para as mensagens a serem filtradas, do mesmo modo que há um limite para as mensagens que recebemos. Haverá, pois, um momento em que ocorrerá a saturação e os novos spams não poderão ser “filtrados”. Aí atingiremos o no return point.

Nos correios baseados o problema será sentido com mais ênfase – e mais dramaticamente – haja vista que o número de emails que podem ser bloqueados é bem menor. Deve, também, ser ponderado que quanto maior for o número de filtros ativos, mais operações terão que ser realizadas por nosso computador para serem eliminadas as mensagens pré-selecionadas (filtradas), o que reduzirá seu desempenho e provocará um indesejável e inútil aumento temporal em nossas atividades.

Finalmente, o congestionamento que o spamming provoca afeta as comunicações (comerciais ou de negócios e amorosas ou de pesquisa) que têm vez na web, haja vista que mensagens não solicitadas enviadas aos milhões ocupam considerável espaço na banda de transmissão, causando, pois, um sensível prejuízo aos cidadãos/usuários da grande rede de computadores.

9 Por vezes, algumas empresas provedoras de acesso à Internet agem por conta própria e, assim, sem consentimento e conhecimento do usuário/cidadão, filtram determinados emails que vêm em massa (mas que necessariamente não são spams), com o aparente objetivo de evitarem aborrecimentos dos que fruem de seus serviços. Mas… ¿não haverá uma nítida censura à liberdade de expressão consolidada por todas as Constituições Ocidentais modernas? ¿Não poderão existir interesses escusos?

Além disso, existem outros problemas corolários que não guardam características legais ou jurídicas, mas apenas técnicas ou tecnologias. Isso porque quando aplicamos um filtro qualquer surgem efeitos colaterais. Como os antibióticos, além do alvo objetivado, os filtros das ISPs também atacam partes boas e saudáveis do sistema que pretendem preservar.

Emails vindos de um mesmo endereço (www.mesmo-endereço.com.br) mas de remetentes diferentes (spammer@mesmo-endereço.com.br e boa-pessoa@mesmo-endereço.com.br) acabam tendo o mesmo destino se o ISP colocar a URL www.mesmo-endereço.com.br como referência de bloqueio em suas listas de filtragem.

10 artigo 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.(Entrou em vigor aos 16 de maio de 2001.)

11 Tribuna do Advogado, OAB/RJ, maio/98, n° 247, p. 10/11.

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