Mundo virtual

Advogado critica sugestão de criminalização de condutas

Autor

19 de fevereiro de 2002, 16h34

O eminente professor Miguel Reale, recentemente discorrendo sobre os críticos ao novo código civil, foi absolutamente preciso (como de costume) observando que “(…) a nova Lei Civil preservou numerosas contribuições valiosas da codificação anterior, só substituindo as disposições que não mais correspondiam aos valores ético-jurídicos da nossa época, operando a necessária passagem de um ordenamento individualista e formalista para outro de cunho socializante e mais aberto à recepção das conquistas da ciência e da jurisprudência. Não faltaram, todavia, críticas à aprovação do novo Código (…).

A primeira não merece senão breve alusão, porque relativa a jovens bacharéis, jejunos de experiência jurídica, que se aventuraram a formular juízos negativos sobre uma lei fundamental que nem sequer leram ou viram, somente pelo fato de seu projeto originário datar de cerca de trinta anos. Compreende-se que as inteligências juvenis, entusiasmadas com as novidades da Internet ou a descoberta do genoma, tenham decretado a velhice precoce do novo Código, por ter sido elaborado antes dessas realizações prodigiosas da ciência e da tecnologia, mas os juristas mais experientes deviam ter tido mais cautela em suas afirmações, levando em conta a natureza específica de uma codificação, a qual não pode abranger as contínuas inovações sociais, mas tão-somente as dotadas de certa maturação e da devida “massa crítica”, ou já tenham sido objeto de lei.

(…) A experiência jurídica, como tudo que surge e se desenvolve no mundo histórico, está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, mas sim graças a leis especiais, sobretudo quando estão envolvidas tanto questões de direito quanto de ciência médica, de engenharia genética etc. exigindo medidas prudentes de caráter administrativo, tal como se dá, por exemplo, no caso da fecundação in vitro. Em todos os países desenvolvidos, tais fatos são disciplinados por uma legislação autônoma e específica, inclusive nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, nações por sinal desprovidas de Código Civil, salvo o caso singular do Estado da Louisiana na grande república do norte, fiel à tradição do direito francês.

(…) De mais a mais, não vejo por que a Internet implica em alterar o Código Civil, pois os negócios jurídicos concluídos por intermédio dela não deixam de ser negócios jurídicos regidos pelas normas do Código Civil, inclusive no que se refere aos contratos de adesão. A Internet atua apenas como novo meio e instrumento de intercâmbio e acordo de vontades, não interferindo na substância das disposições legais quanto aos direitos e deveres dos contratantes.”

Cuidaremos um pouco do Direito Penal nestes escritos. Em nossa área encontramos vozes especialistas em Direito da Informática propondo a criminalização absurda de determinadas condutas e situações apresentadas pela Internet, onde, particularmente, tal expediente seria o extremo, ou melhor, nunca seria a opção adequada. São abordagens absolutamente inacreditáveis, principalmente nos dias de hoje em que a intervenção mínima é a palavra de ordem no Direito Penal.

Como diz o muito competente professor da Escola Paulista da Magistratura, Flávio Augusto Monteiro de Barros, o direito que rege a vida dos homens é formado por um complexo de normas jurídicas, ligadas a uma sanção cominada à sua violação. Fora do Direito Penal, sabemos que essa sanção assume formas múltiplas, como por exemplo: nulidade do ato jurídico, reparação do dano, multa fiscal, demissão do funcionário público, etc. Já no âmbito do Direito Penal, o Estado reage com dois tipos de sanção: pena e medida de segurança.

(…) Na elaboração da lei penal, o legislador deve ter em mente que o crime é o último grau do sistema jurídico, só se justificando a sua criação para a proteção de direitos fundamentais (vida, liberdade, igualdade, segurança, patrimônio).

Segundo Luiz Flávio Gomes, “não se pode esquecer que o Direito Penal é instrumento subsidiário, só se legitima quando outros meios de controle formais, como o Direito Civil, Administrativo, etc. – ou informais – forem inidôneos. O Direito Penal é também fragmentário (apenas os ataques mais intensos ao bem jurídico é que autorizam a sanção penal, a criminalidade deve recair apenas sobre fatos contrastantes dos valores mais elevados do convívio social.). O Direito Penal é a ultima ratio. A pena criminal é a extrema ratio.” Isto deve ser levado em conta pelo profissional do Direito que milita na área do Direito da Informática. Vemos atualmente, e isto nos deixa atônitos, colegas sugerindo a criminalização de fatos que jamais poderiam ser classificados como “contrastantes dos valores mais elevados do convívio social”.


Sabe-se que o método técnico-jurídico (e Monteiro de Barros trata bem deste tema) por “concentrar-se excessivamente no estudo do direito positivo, pode colocar o jurista fora da realidade social. Ao jurista moderno, segundo Heleno Fragoso: ‘é essencial uma postura crítica perante o sistema vigente, para abrir passo às reformas que uma política criminal progressiva recomenda, com base na pesquisa criminológica’. A lei deve ser interpretada de acordo com os fins sociais e as exigências do bem comum (art. 5o, LICC) – Isso, porém, não autoriza o jurista a violá-la para impor um direito penal alternativo, que, ao seu ver, melhor se amoldaria à justiça reclamada pelo caso concreto.”

É importante deixar bem esclarecido que o caráter dogmático do Direito Penal determina, impõe ao operador do direito, a necessária concentração nas normas em vigor, adaptando-as à realidade social através de uma exegese razoável. Destaca-se: exegese razoável.

Como lembra o eminente professor Damásio de Jesus, “fonte” no sentido comum, é o lugar onde nasce a água. No sentido jurídico, fonte indica a origem e a forma de manifestação da norma jurídica. É o lugar de onde provém a norma. As fontes do direito penal podem ser substanciais, de produção, também conhecidas como fontes materiais e formais. A norma penal origina-se do poder legislativo da União. Segundo a Constituição Federal (art. 22, inc. I) compete à União legislar sobre matéria penal.

O parágrafo único traz importante aspecto, deixando claro que os Estados-membros podem legislar sobre questões específicas de direito penal desde que autorizados por lei complementar. Importante destacar (e assim seguimos o exemplo de Flávio Augusto) que no campo das normais penais não incriminadoras, admite-se que a consciência do povo, por refletir as necessidades sociais e a realidade cultural, edite a chamada “norma costumeira”. Isto é: no aspecto penal, o costume jamais pode ser empregado para criar delitos (crimes) ou até mesmo aumentar penas.

Todos sabemos que o costume é a reiteração constante de uma conduta pela sociedade, de maneira constante e uniforme, em razão da convicção de sua obrigatoriedade (acreditando ser a mesma obrigatória), uma prática geral aceita por todos como sendo direito. Flávio Augusto M. de Barros lembra que: “o costume requer dois elementos: o objetivo (repetição de comportamento) e o subjetivo (convicção de sua obrigatoriedade). Os costumes distinguem-se em: a) costumes secundum legem (referidos na própria lei): são os que auxiliam a esclarecer o conteúdo de certos elementos do tipo legal. É o chamado costume interpretativo.

O costume não revoga a lei, mas serve para integrá-la, uma vez que, em várias partes do Código Penal, o legislador se utiliza de expressões que ensejam a invocação do costume para se chegar ao significado exato do texto. Exemplos: art. 139 (reputação), art. 140 (dignidade ou decoro), art. 217 (inexperiência e justificável confiança), art. 215 e 219 (mulher honesta), art. 233 (ato obsceno), etc. Existem também os costumes contra legem/negativo – (contra a lei) – são os que contrariam a lei. Exemplo: Jogo do Bicho. Há também os costumes praeter legem (complementam a lei) – são os que suprem a ausência ou lacuna da lei. É chamado de costume integrativo.”

Importante ressaltar novamente que os costumes jamais podem ser usados para criar crimes e aplicar penas. Se o fato não está definido em lei como crime ou contravenção, exclui-se a incidência do direito penal. Todavia, no campo das normas penais não incriminadoras, o costume pode dar vida a novas causas de exclusão da ilicitude e até da culpabilidade.

Importante lembrar ainda que os atos administrativos podem ser incluídos como fontes formais mediatas/secundárias do Direito Penal, já que em algumas normas penais em branco, o complemento da definição da conduta criminosa depende de um ato da administração pública. Sobre os tratados e convenções internacionais: uma vez celebrados, ainda não se incorporam ao ordenamento jurídico interno. A Constituição Federal exige que, depois de celebrados pelo Presidente da República, os tratados e convenções sejam recepcionados pelo Congresso Nacional, através de Decreto Legislativo (art. 49, inc. I). Enquanto não referendados pelo Congresso Nacional, o tratado ou contravenção não têm força. Todavia, após o referendum, passam a ser fonte como a lei.

Sendo a lei a fonte formal mais importante do direito penal, pois somente ela pode criar delitos e penas, julgamos importante apresentar a tradicional classificação das leis penais, onde encontramos as incriminadoras, que como o próprio nome já sugere, criam crimes e cominam penas. Também encontramos as leis penais não incriminadoras, que se subdividem em permissivas, exculpantes e interpretativas. As permissivas autorizam que determinadas condutas típicas sejam cometidas, prevendo a licitude ou a impunidade de determinados comportamentos, apesar de estes se amoldarem no tipo penal.


São exemplos clássicos: o exercício regular do direito, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal (art. 23, CP), etc. As exculpantes tratam da inculpabilidade do agente ou da impunidade de determinadas condutas típicas e antijurídicas. Exemplos: menoridade, prescrição, perdão judicial, doença mental, etc. As leis penais interpretativas, também conhecidas como complementares ou explicativas são as responsáveis por esclarecer o conteúdo de outras leis ou limitar o âmbito de sua aplicação. Exemplos: a que prevê a contagem de prazo, a que conceitua causa, etc.

Sabemos também que toda lei penal possui dois preceitos, o primário (que descreve a conduta) e o secundário (que descreve a sanção/pena). O preceito primário pode ser completo (não necessitando de complemento normativo, pois já apresenta a definição de todos os elementos da conduta criminosa) ou incompleto (em que o complemento da definição da conduta criminosa está reservado a outra lei ou ato administrativo (norma penal em branco) ou ao magistrado (no conhecido “tipo aberto”).

Para que fique bem claro o conceito de lei penal em branco, recorreremos novamente aos escritos do referenciado Professor da Escola Paulista da Magistratura. Lei Penal em branco é aquela cuja definição da conduta criminosa (preceito primário) requer complementação por outra norma jurídica ou ato administrativo. Seu preceito secundário (sanctio juris) é completo, mas o preceito primário carece de complementação. Em outras palavras: são normas em que o preceito primário é estruturado de forma incompleta e depende de ser completado com outra norma existente ou futura, assim como por atos administrativos.

O exemplo clássico citado por quase todos os autores: é o caso de ser passível de punição o médico que deixar de denunciar à autoridade pública um caso de doença cuja notificação é compulsória. As doenças desse tipo são estabelecidas em outras leis ou regulamentos. O mesmo acontece quando a norma penal usa conceitos do direito civil, ou regulados por outro direito. Lei Penal em branco classifica-se em: a) fragmentária / em sentido lato: ocorre quando o complemento origina-se do mesmo órgão que elaborou a norma incriminadora. Assim, no delito de apropriação de tesouro, previsto no art. 169, parágrafo único, inc. I, do CP, o complemento da lei penal é fixado pelo Código Civil, quando define tesouro.

Da mesma forma, no delito de contrair casamento com violação dos impedimentos absolutos (art. 237, CP), o complemento é fornecido pelo Código Civil, que descreve esses impedimentos. Ressalte-se que o complemento, nesses dois exemplos, emana do mesmo órgão que elabora a lei penal, qual seja, a União. De acordo com o art. 22, inc. I, CF – compete à União legislar sobre direito civil e direito penal; b) lei penal em branco em sentido estrito: ocorre quando o complemento emana de órgão distinto daquele que elaborou a norma penal. Nos delitos da Lei 6.368/76, o rol das substâncias entorpecentes é especificado pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde.

É importante não confundir lei penal em branco com tipo aberto, onde a definição da conduta criminosa é complementada pelo magistrado (ao contrário do que acontece na norma penal em branco, onde a definição da conduta (o preceito primário) é complementada por outra lei ou ato administrativo). No tipo aberto há necessidade de uma complementação valorativa do juiz. O exemplo citado por quase a maioria dos autores é a valoração do que seja o ato obsceno.

A definição da conduta criminosa é incompleta nos crimes de tipo aberto, sendo que ao magistrado incumbe a tarefa complementar. Monteiro de Barros lembra que criar um crime não é definir todos os elementos da relação jurídico-penal. “(…) É conhecida a dificuldade da lei em fixar todos os elementos da figura típica penal. A lei que institui o crime deve alojar o mínimo em determinação (princípio da determinabilidade). O tipo penal deve conter o mínimo necessário da definição, podendo delegar ao juiz ou a certos atos administrativos a tarefa complementar de definição da figura típica. Com efeito, o princípio da reserva legal não exige que a lei crie integralmente o delito.

É salutar a tarefa valorativa do magistrado em relação a certos elementos normativos variáveis no tempo e no espaço, como o conceito de mulher honesta, pois o legislador ao tentar defini-la pode apresentar-se antiquado e ridículo. Nos tipos abertos em que a definição da figura típica contém o chamado “mínimo em determinação”, o preenchimento pelo magistrado dos demais elementos conceituais do crime não afronta o princípio da reserva legal, porque não há obrigatoriedade constitucional de a lei criar todos os elementos do crime. Fundamental, no entanto, que a lei fixe os elementos essenciais, conferindo ao juiz apenas a complementação da definição legal. (…) Outra espécie de tipo penal aberto é o que emprega cláusulas gerais na definição do crime, sem fixar um mínimo em determinação capaz de possibilitar ao intérprete a averiguação de seu conteúdo conceitual. Sobretido tipo penal contraria a velha máxima nullum crimen nulla poena sine lege, deixando completamente em aberto a definição legal da conduta incriminada: a criação completa do crime fica à mercê do arbítrio judicial, violando o princípio da separação dos Poderes.

(…) A doutrina penal contemporânea, de modo geral, mostra-se infensa a essa amplitude de poder atribuída ao magistrado, num indisfarçável sentimento de hostilidade e rebeldia para com o sistema de cláusulas gerais. No tipo penal aberto, a função complementar é do juiz e não da lei. Esta precisa delimitar os elementos essenciais, relegando ao magistrado a tarefa secundária, tal como acontece com o delito de rixa em que a omissão legal acerca do número de rixosos necessários à integração do delito é missão atribuída ao julgador.”


Tais conceitos fundamentais da parte geral do direito penal são imprescindíveis para seguir adiante com a interpretação da lei penal. Recorrendo ao legendário e absolutamente indispensável Carlos Maximiliano Pereira dos Santos: “(….) Em Roma, sobretudo na esfera criminal, não se distinguia, como hoje, entre as funções de legislador e as de juiz; gozava este de autoridade enorme, quase sem peias. Era natural que a restringissem os vindouros, cerceadores de toda onipotência, zelosos da própria liberdade. Entretanto ainda perdurou, relativamente, o arbítrio do magistrado até o século dezoito, quando se generalizou a reação, vitoriosa, contra ele. Daí o nullum crimen, nulla poena sine lege: “não há crime, nem pena, senão quando previstos em lei.” Como sucede com todas as revoltas, caíram em evidente exagero, no extremo oposto: só admitiam condenação, se o caso concreto era clara, explícita, irretorquivelmente mencionado na lei penal.

Resultavam até absurdos irrisórios; p. ex., o de se julgar isento de culpa e pena o que desposara três mulheres, porque o texto só previa o casamento com duas, a bigamia; e o de absolver o que obtivera, por dinheiro, um depoimento favorável, por se referir a lei ao suborno de testemunhas, no plural. Em país nenhum do mundo prevalece hoje semelhante modo de pensar, incompatível com o grau de progresso das idéias sobre as funções do Estado, os deveres da magistratura e os objetivos da repressão. Desapareceram os velhos antagonismos entre o interesse público e o particular; não há mais a desconfiança, prevenção relativamente ao Poder; existe entendimento, colaboração, esforço sinérgico, onde outrora se expandiam atividades divergentes.

Demais, um texto não pode ser casuístico, incluir em fórmulas gerais ou típicas os casos múltiplos e variadíssimos da vida real. Portanto, ou se aceita a intervenção do hermeneuta, ou se decreta implicitamente a impunidade para a maioria dos delinqüentes e contraventores. Houve outrora justo motivo para temer sobretudo o arbítrio; hoje se incorre no risco oposto, de concorrer para o florescimento da criminalidade, pelo excesso de benevolência, mormente entre os povos latinos. Interpreta-se a lei penal, como outra qualquer, segundo os vários processos de Hermenêutica.

Só compreende, porém, os casos que especifica. Não se permite estendê-la, por analogia ou paridade, para qualificar faltas reprimíveis, ou lhes aplicar penas; não se conclui, por indução, de uma espécie criminal estabelecida para outra não expressa, embora ao juiz pareça ocorrer na segunda hipótese a mesma razão de punir verificada na primeira. Ainda que hajam sido postergados os ditames da justiça, se não se verifica um só dos característicos do delito previsto pelo Código, ou falta qualquer dos elementos constitutivos do ato para o qual foi cominado castigo legal, absolvem o réu, não perseguem judicialmente o imputado. Não continua o processo, nem condenam o indiciado, se não concorrem os dois requisitos seguintes: 1.º) constituírem os fatos da causa tal delito previsto pelo artigo tal da lei; 2.º) cominar esta a pena tal para a violação das injunções ou proibições que ela encerra. Só o legislador, não o juiz, pode ampliar o catálogo de crimes inserido no Código e em leis posteriores.

(…)

O Direito Criminal é, como proclamam professores alemães, essencialmente típico: o Código concatena tipos de transgressões puníveis; qualquer falta que se não enquadre em algum daqueles moldes ou tipos, embora do mesmo aproximada, escapa ao alcance da justiça repressiva. A tendência moderna e louvável no sentido do ‘assouplissement du droit’, caracterizada por disposições amplas, elásticas, flexíveis, de extensa aplicabilidade, portanto; só mesmo com a mais discreta reserva se observará no campo do Direito de punir. Estritamente se interpretam as disposições que restringem a liberdade humana, ou afetam a propriedade; conseqüentemente, com igual reserva se aplicam os preceitos tendentes a agravar qualquer penalidade.

O contrário se observa relativamente às normas escritas concernentes às causas que justificam os fatos delituosos e dirimem ou atenuam a criminalidade: devem ter aplicação extensiva desde que os motivos da lei vão além dos termos da mesma; em tais circunstâncias, até a analogia é invocável. Parecem intuitivas as razões pelas quais se reclama exegese rigorosa, estrita, de disposições cominadoras de penas. As deficiências da lei civil são supridas pelo intérprete; não existem, ou, pelo menos, não persistem, lacunas no Direito Privado; encontram-se, entretanto, entre as normas imperativas ou proibitivas, de Direito Público.

No primeiro caso, está o juiz sempre obrigado a resolver a controvérsia, apesar do silêncio ou da linguagem equívoca dos textos; no segundo, não; por ser mais perigoso o arbítrio de castigar sem lei do que o mal resultante de absolver o ímprobo não visado por um texto expresso. No campo do Direito Privado a recusa de decidir perpetuaria o conflito de interesses, a desordem social, a exploração dos fracos pelos fortes, as irregularidades de proceder para com terceiros, embaraçadoras da cooperação, óbices à coexistência humana acorde, pacífica. Escritores de prestígio excluem a exegese extensiva das leis penais, por serem estas excepcionais, isto é, derrogatórias do Direito comum; a outros se não afigura logicamente possível enquadrar em tal categoria um ramo inteiro da ciência jurídica.

Para estes a razão da originalidade é outra; as disposições repressivas interpretam-se estritamente porque, além de serem preceitos de ordem pública, mandam fazer ou proíbem que se faça. Em geral as normas concernentes a determinada função de interesse público ordenam ou vedam, a estas injunções ou proibições, destinadas a assegurar o equilíbrio social, aplicam-se no sentido exato; não se dilatam, nem restringem os seus termos. ‘Permittitur quod non prohibetur’: “o que não está proibido, é permitido.” Admite-se a extensão quando as leis não são imperativas, nem proibitivas; mas indicativas, reguladoras, organizadoras; porque, nesse caso, não interessam os fundamentos da ordem de coisas estabelecida.

(…)

Do exposto já se conclui que se não deve correr o risco de avançar demais, pelo menos inconscientemente, graças ao uso, e também ao abuso, de expressões impróprias. Porque se proibiram as ilações, a interpretação extensiva; logo exigiram a restritiva. Com evitar um erro, incide-se em outro, embora oposto. Se um extremo prejudica, o contrário arrasta a deslizes talvez mais danosos para a coletividade. A exegese deve ser criteriosa, discreta, prudente: estrita, porém não restritiva. Deve dar precisamente o que o texto exprime, porém tudo o que no mesmo se compreende; nada de mais, nem de menos. Em uma palavra, será declarativa, na acepção moderna do vocábulo. (…)

Alguns autores admitem a interpretação extensiva por força de compreensão e indução; outros distinguem entre analogia jurídica, isto é, a que argumenta com os princípios gerais do Direito a fim de preencher as lacunas do texto; e analogia legal, quando aplica às hipóteses não previstas expressamente as disposições sobre casos semelhantes ou matérias análogas. Toleram a última, embora obrigado o juiz a proceder com a máxima cautela a fim de evitar o perigo que ela própria, empregada sem grande discrição, poderia acarretar para a segurança pública e a liberdade dos cidadãos.

Essas distinções devem ser afastadas do campo acidentado do Direito Criminal, sobretudo as primeiras: têm sido, aliás, umas e outras, por vários autores consideradas supérfluas e um tanto artificiais; a verdade é que, na esfera penal, ao invés de guiarem o hermeneuta aclarando-lhe o caminho, aumentam a confusão. Exclua-se também a linguagem absoluta dos que opinam pela exegese restritiva. Fique-se no meio termo, fácil de atingir: procure-se, com os recursos da Hermenêutica, apreender bem o espírito do dispositivo; não se vá além das expressões da lei; porém, aplique-se na íntegra tudo o que nas mesmas se contém; nada de mais, nem de menos.

Talvez seja isto o que rigorosamente caiba na exegese extensiva por força de compreensão; parece, entretanto, mais preciso denominar-se interpretação estrita; pelo menos oferece esta menos margem a equívocos e divergências. (…) Não se confunda exegese estrita com imobilidade da Hermenêutica: até mesmo no campo do Direito Penal a interpretação adapta-se à época, atende aos fatores sociais, afeiçoa a norma imutável às novas teorias, à vitoriosa orientação da ciência jurídica. Todo Direito é vivo, dinâmico. (…) Tanto ao apurar a criminalidade, como ao verificar a existência de circunstâncias agravantes, o fanal (o guia, o norte) do juiz deverá ser a interpretação exata, o sentido estrito da lei. (…) Toda norma imperativa ou proibitiva e de ordem pública admite só a interpretação estrita. Sabiamente o ‘Codex Juris Canonici’, estabeleceu que: as leis que estatuem pena, ou coartam o livre exercício de direitos, ou contêm exceção a preceito geral, estão sujeitas a exegese estrita.” (sem destaques no original)


Além desses indispensáveis argumentos de Maximiliano, como já ressaltamos, o princípio da intervenção mínima deve ser necessariamente considerado nas construções doutrinárias na área do direito da informática e do direito penal. Como bem esclarece Julio Fabbrini Mirabete, “o crime não se distingue das infrações extrapenais de forma qualitativa, mas apenas quantitativamente. Como a intervenção do Direito Penal é requisitada por uma necessidade mais elevada de proteção à coletividade, o delito deve consubstanciar em um injusto mais grave e revelar uma culpabilidade mais elevada; deve ser uma infração que merece a sanção penal.

O desvalor do resultado, o desvalor da ação e a reprovabilidade da atitude interna do autor é que convertem o fato em um “exemplo insuportável”, que seria um mau precedente se o Estado não o reprimisse mediante a sanção penal. Isso significa que a pena deve ser reservada para os casos em que constitua o único meio de proteção suficiente da ordem social frente aos ataques relevantes. Apenas as condutas deletérias da espinha dorsal axiológica do sistema global histórico-cultural da sociedade devem ser tipificadas e reprimidas. Não se deve incriminar os fatos em que a conduta não implique risco concreto ou lesão a nenhum dos bens jurídicos reconhecidos pela ordem normativa constitucional.

O ordenamento positivo, pois, deve ter como excepcional a previsão de sanções penais e não se apresentar como um instrumento de satisfação de situações contingentes e particulares, muitas vezes servindo apenas a interesses políticos do momento para aplacar o clamor público exacerbado pela propaganda. Além disso, a sanção penal estabelecida para cada delito deve ser aquela “necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (na expressão acolhida pelo art. 59 do CP), evitando-se o excesso punitivo sobretudo com a utilização abusiva da pena privativa de liberdade. Essas idéias, consubstanciadas no chamado princípio da intervenção mínima, servem para inspirar o legislador, que deve buscar na realidade fática o substancial deve-ser para tornar efetiva a tutela dos bens e interesses considerados relevantes quando dos movimentos de criminalização, neocriminalização, descriminalização e despenalização”. (destacamos)

Sobre o tema, interessante citar ainda, por fim, trechos do voto-vista do Min. Sepúlveda Pertence em acórdão do STF, também reproduzido nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 240.400, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca (STJ): …Last but not least. Presidente, não posso deixar de explicitar minha convicção de que – ante o quadro de notória impotência do Judiciário para atender à demanda multiplicada de jurisdição e, de outro, a também notória impotência do Direito Penal para atender aos que pretendem transformá-lo em mirífica, mas ilusória, solução de todos os males da vida em sociedade, tendo, cada vez mais, aplaudir a reserva à sanção e ao processo penal do papel de ultima ratio, e, sempre que possível, a sua substituição por medidas civis ou administrativas, menos estigmatizantes e de aplicabilidade mais efetiva.

Mais que tradução de uma simples tendência de política criminal, o princípio da intervenção mínima ( v.g., Nilo Batista: Introdução Crítica ao Dir. Penal Brasileiro, Ed. Revan, 1990, p. 84; Luiz Luisi: Os Princípios Constitucionais Penais, Fabus, 1991, p. 25 p. 25, se me afigura derivado do substantive process of law, consagrado no art. 5°, LIV, da Constituição e que traz consigo, segundo já tem assinalado o Tribunal, o princípio da proporcionalidade: certo que a pena como corretamente observou Roxin (Claus Roxin, Iniciación al derecho penal de hoy, trad., Sevilha, 1981, p. 23, apud Nilo Batista, ob. cit., p. 84) é a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado”, segue-se – como é do subprincípio da necessidade, que o apelo à criminalização só se legitima na medida em que seja a sanção penal “a medida restritiva indispensável à conservação do próprio ou de outro direito fundamental a que não possa ser substituído por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa” (Susana de Toledo Barreos O Princípio da Proporcionalidade. BrasJurídica 2000 p..212.).

Cumpre em nome da intervenção mínima – contra a doença, sempre tendente as recidivas, que Carrara chamou de “nomomania ou nomorréia” penal (Francisco Carrara: Opasculi di Diritto Criminale, IV1521 ss, apud Luisi, ob. cir, p. 28; no texto, indaga o grande clássico: “não seria aplicável a essa mania de ditar leis o velho provérbio que dá como homem de pouca inteligência aquele que se protege da picada dos mosquitos enquanto a mula o escoiceia?’) – a esquecida primeira parte do art. 8° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “La Loi ne doit pas établir que des peines strictement e évidemment nécessaires…”


É justamente em razão do que foi apresentado, que confesso ficar espantado, atemorizado, até mesmo dominado por um certo terror, quando encontro em pleno século vinte e um, nesse razoável estágio de civilização e desenvolvimento da ciência jurídica nacional que nos encontramos, colegas propondo a criminalização de determinadas condutas praticadas pela Internet que nunca, jamais, em tempo nenhum, em hipótese alguma poderiam sequer chegar próximas de serem consideradas objeto de tal expediente. É tema para despertar a reflexão e a responsabilidade científico-jurídica daqueles que se protegem da picada dos mosquitos enquanto a mula os escoiceia.

Bibliografia

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

ELIAS, Paulo Sá. Alguns aspectos da Informática e suas conseqüências no Direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 766, p. 491-500, agosto 1999. (RT 766/491)

_________________. A lei pode ser mais sábia que o próprio legislador. Gazeta Mercantil, São Paulo, 27 jun. 2001. Caderno Doutrina & Jurisprudência. p. 2.

GOMES, Luiz Flávio. Crimes informáticos: Primeiros delitos e aspectos criminológicos e político-criminais. Direito Criminal, São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 22.03.2001.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2001.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2001.

MONTEIRO DE BARROS, Flávio Augusto. Direito Penal – Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1999.

Notas de Rodapé

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

2 Computador desenvolvido pelo legendário Clive Marles Sinclair.

3 A “special offer” do sistema operacional naqueles tempos era o Microsoft Windows Write e o Microsoft Windows Paint. Uma das principais chamadas publicitárias era: “Microsoft Windows – work with several programs at the same time, including popular applications like Lotus 1-2-3, dBase III, IBM Writing Assistant and more” – fazendo referência ao multitasking (multitarefa) irônica característica dos jovens da atualidade.

4 Aliás, sobre este período lateja hoje em nosso pensamento o velho provérbio árabe: “O maior dos erros é a pressa antes do tempo, e a lentidão ante a oportunidade”.

5 RT 766/491.

6 Valdemar W.Setzer é Professor Titular (aposentado) do Departamento de Ciência da Computação da USP. Possui livros sobre computadores na educação publicados no Brasil, Inglaterra, Alemanha e Finlândia. (*) URL: http://www.ime.usp.br/~vwsetzer

7 O artigo original pode ser encontrado no endereço: http://www.bresson.org/monde.htm

8 Especialmente importante no que diz respeito a proteção das chaves privadas.

9 A propósito, a agência Reuters divulgou reportagem do Jornal Washington Post descrevendo problemas em relação à privacidade de pacientes. Segundo se noticiou, o laboratório farmacêutico Eli Lilly divulgou sem intenção em razão de problemas técnicos e operacionais os endereços eletrônicos de alguns pacientes com depressão, bulimia ou desordem obsessiva-compulsiva. Uma mensagem eletrônica divulgou os endereços eletrônicos de 600 pacientes que assinaram um serviço de informações da Lilly que enviava mensagens lembrando-os de tomar o antidepressivo Prozac. URL: (http://www2.uol.com.br/info/aberto/infonews/072001/05072001-3.shl) – disponível em 10.07.2001.

10 http://www.microsoft.com/downloads/release.asp?ReleaseID=28888

http://www.microsoft.com/windows/ie/downloads/critical/q293818/default.asp

11 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992

12 E sobre esta questão, lembramos que nossa abordagem no tema da influência exagerada do “common law” nos jovens juristas nacionais, principalmente entre os especialistas em direito da informática, aconteceu muito tempo antes de 11 de setembro de 2001. A propósito, no início daquele fatídico ano de 2001 (para os norte-americanos) escrevemos sobre a esteganografia, a criptografia e Osama Bin Laden na Revista eletrônica Consultor Jurídico

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!