Reserva de vagas

Sistema de cotas pode reduzir abismo racial no Brasil

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17 de fevereiro de 2002, 9h22

Para advogado deve haver critério para definição racial

Advogado defende cota para negros em universidades

Em conclusão, podemos afirmar que o sistema de cotas em benefício dos integrantes da raça negra é justo, pelo aspecto histórico, e é constitucional, podendo ser imediatamente implantado (superada a controvérsia sobre o critério de definição racial), porém, não é o principal ponto de cisão social no Brasil.

O sistema de cotas é a forma pela qual o Estado se propõe a compensar os integrantes da raça negra, mediante a reserva de vagas em concursos públicos para provimento de cargos e empregos públicos e, ainda, para o preenchimento do corpo discente das faculdades públicas.

Notória é a forma brutalizada e genocida do processo de libertação dos escravos no Brasil, aliás, a mais tardia alforria do mundo. As classes dominantes brasileiras sempre souberam manipular a mão-de-obra necessária à manutenção de suas riquezas, utilizando-se de métodos por vezes cruéis.

Em verdade, os escravos africanos, de tão massacrados no Brasil, opunham sua resistência pelo método que mais demonstrava seu desamparo: a fuga.

Logo que foi publicada a “Lei Áurea”, os negros, ávidos por liberdade e respeito, precipitaram-se pelas estradas, sem paradeiro, sem destino. Como afirma Darcy Ribeiro (1): “… os escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar,…, plantando milho e mandioca para comer.

Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se substancialmente”. Essa miserabilidade da massa negra jogada ao léu, produz efeitos até hoje em nossa pirâmide social. Dessa forma, os negros são maioria nas favelas, nas prisões, nos índices de analfabetismo, etc. São, todavia, minoria nas faculdades, nos índices de maior longevidade, na composição dos órgãos públicos, etc. Negou-se aos negros, afirma Darcy Ribeiro (1) “…a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudessem educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência”.

Delimitado está o panorama social que deve prevalecer na análise do presente tema. Pode-se afirmar que os negros foram “recrutados” para servir de mão-de-obra barata e, depois, enxotados para a marginalidade social.

Temos como principais argumentos a favor da implantação do sistema de reserva de vagas nos concursos públicos e nos vestibulares das faculdades públicas, o débito estatal em relação à forma de recolocação social dos negros na fase de pós-libertação, o princípio da igualdade, em sua acepção material, e a possibilidade da instituição de políticas compensatórias, albergadas pela Constituição da República.

Diz-se que o Estado brasileiro foi extremamente injusto com os recém-libertos. A situação dos ex-escravos foi tratada de forma unilateral pelo Estado, sem a colaboração das vítimas da escravidão. Além disso, os ex-donos de escravos receberam apoio do Estado para a recuperação de sua mão-de-obra barata, havendo uma intensa “importação” de europeus desiludidos em busca de uma redenção qualquer.

Afirma-se que o principio da igualdade deve ser interpretado em sua acepção material, ou seja, que a verdadeira igualdade é tratar desigualmente os desiguais. Como afirmou Rui Barbosa (6): “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”. Ao pretender, o Estado, realizar seu fim de reduzir as desigualdades sociais, somente o fará com a adoção de políticas afirmativas que encontrem eco nas camadas mais oprimidas da população.

Alinha-se como defesa do sistema de cotas a assertiva de que a própria C.R. está a demonstrar a substancialidade do princípio da igualdade, como, por exemplo, no caso da reserva de vagas, em expressão percentual, dos cargos e empregos públicos para os deficientes físicos, determinada pelo art. 37, inciso VIII, da C.R., sendo legítima, portanto, em face do contexto histórico, a compensação social também em benefício dos negros.

Todavia, argumenta-se em sentido contrário à implementação do sistema de cotas, a impossibilidade de definição idônea dos integrantes da raça negra, o óbice constitucional do princípio da igualdade e a assertiva de que há política compensatória (ação afirmativa) apenas de forma expressa na C.R.

No que respeita à definição da raça negra, teme-se pelo critério voluntário, utilizado pelo IBGE, pois poderia qualquer pessoa de pele mais escura afirmar-se negro em busca das facilidades deferidas. Em geral os movimentos de defesa da raça negra refutam tal argumento, afirmando que o preconceito racial afasta o risco de auto-afirmações raciais falsas, aceitam, apenas, o critério voluntário, pois apenas este resgataria a identidade cultural do negro.

Como principal óbice constitucional temos o princípio da igualdade, que impediria qualquer forma de privilégios entre os indivíduos. Tal princípio seria, como toda lei é, abstrato e basilar para a garantia dos direitos fundamentais. A igualdade entre os homens seria incompatível com reserva de vagas, pois esta importa em tratar desigualmente os iguais, posto que todos são homens.

Como exemplo para a afirmativa de que a ação compensatória é admitida pela C.R. apenas de forma expressa, cita-se a reserva de vagas para deficientes físicos. O argumento consiste em dizer que a regra é a igualdade plena (abstrata), sendo exceção a outorga de “privilégios”. Sendo exceção, somente admite-se por disposição expressa na C.R.. Para os deficientes físicos há a previsão constitucional ( art. 37, inciso VIII), não assim em relação à cota racial.

Submetida a questão para uma análise percuciente, vemos que o princípio da igualdade não representa sério obstáculo ao sistema de cotas. Tal princípio é relativizado em diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.

O argumento de que nenhum direito garantido pela C.R. é absoluto, há de ser mais uma vez lembrado, com a relativização do próprio direito à vida mediante a pena de morte (2). Ainda mais razão assiste ao entendimento da concreção do princípio igualitário, quando se leva em conta o fim estatal de amenizar as abismais diferenças sociais entre os indivíduos, não podendo o Estado contentar-se em declarar direitos e igualdades e nada fazer concretamente para atingir seu precípuo fim.

O argumento de que o princípio da igualdade jurídica entre os homens pode ser relativizado, porém apenas de maneira expressa na C.R., também não procede. Além da disposição expressa de reserva de vagas para os deficientes físicos, temos outros exemplos de ações afirmativas baseadas no próprio princípio da igualdade. É o caso das reservas de vagas para concorrência a cargos eletivos, com limites no mínimo e máximo de candidatos de cada sexo, disciplinada pelo art. 10, § 3º, da lei n.º 9.50497.

À obviedade tal dispositivo só foi implementado devido à opressão imposta às mulheres, que resultou no alijamento das mesmas do processo de disputa e exercício do poder.

Ademais, como explicita Fábio Konder Comparato (3), ao comentar sobre o mito da democracia racial no Brasil, “nas raras vezes em que se invocou a Constituição contra as leis, o objetivo não era defender a vida ou a liberdade, mas sim, o patrimônio. Assim, é que promulgada a Lei do Ventre Livre, em 1871, o maior jurisconsulto do império, Augusto Teixeira de Freitas, entendeu-a inconstitucional por violar a garantia da propriedade e por desrespeitar os direitos adquiridos”.

Não é de se estranhar que, ainda hoje, juristas plantonistas prontamente declarem a inconstitucionalidade do sistema de cotas, ressaltando o desrespeito de tal sistema aos direitos dos demais concidadãos. Aliás, o próprio Fábio Konder Comparato (3), no arremate do artigo acima, afirma que “seria imperdoável erro político imaginar que essa situação de bloqueio mental e de insensibilidade ética já foi superada”, e ainda diz “…o fato é que o espírito conservador continua o mesmo, sólido e incontrastável, em sua visão imobilista do mundo”.

O óbice que parece ser mais sério dos opostos ao sistema de cotas é o que trata do critério de definição da raça negra. Como já dito, os movimentos de defesa dos negros não admitem o critério científico, biológico ou antropológico de definição de raças. Entendem que a auto-afirmação racial, sistema voluntário, é o que melhor garante a preservação da cultura negra. Aqui, no entanto, há uma confusão de conceitos que atrapalha a correta disposição do problema.

Com efeito, o traço cultural pouco ou nada tem a ver com o conceito de raça, posto que uma mesma raça pode albergar diferentes culturas. Pedrinho A. Guareschi (4) assevera que “etnia é a identidade que liga essa experiência a uma história cultural comum (ser italiano, alemão, brasileiro). Raça é a identidade que liga essa experiência a ancestrais biológicos comuns”.

Vemos, pois, que etnia é mais consentâneo com traço cultural, que meramente a raça a que se pertence. Pinto Ferreira (5) dispõe que “a raça é formada pelo conjunto de homens que se assemelham somente por seus caracteres físicos, isto é, anatômicos e fisiológicos ou somáticos. É pesquisada pela antropologia física ou raciologia”. Sobre etnia o ilustre pensador diz: “Já etnia é conceito novo, introduzido pela ciência, e significa o grupo social aparentado por caracteres somáticos, lingüísticos e culturais”.

Precisamente o que ocorreu no Brasil foi a escravização de indivíduos da raça negra pertencentes a diversas culturas. Sendo assim, apenas o critério racial poderá ser utilizado na aplicação do sistema de cotas, posto que os diversos traços culturais trazidos pela raça negra estão atomizados e integrados a outros traços culturais dos europeus e indígenas. Há no Brasil uma constante fusão cultural que impede a utilização do critério da etnia para a prática da reserva de vagas.

Apesar de também haver uma “fusão racial”, a mestiçagem, a ciência dispõe de meios seguros para a definição correta da ascendência racial do indivíduo. Não é critério seguro a auto-afirmação, pois tal critério leva em conta muita vez a predominância da cor da pele, o que em um país tropical e de formação racial mestiça compromete a seriedade de tal método.

Enfim, apenas o critério científico pode ser utilizado para a resolução do impasse na definição dos componentes da raça negra. O raciocínio asseverando que o preconceito racial da sociedade inibe a auto-afirmação racial falsa, utilizado pelos movimentos de defesa dos negros, é tão inconsistente quanto o argumento utilizado pelos opositores do sistema de cotas, de ser o mesmo uma marca indelével, uma cruz a onerar eternamente os beneficiados da reserva de vagas, pois estes seriam “apontados” pelos demais membros da comunidade.

Ora, é óbvio que as vantagens concretas oferecidas pelo sistema de cotas, o emprego público e a vaga na faculdade, tanto podem incentivar a auto-afirmação racial falsa, quanto podem amenizar bastante a suposta carga discriminatória suportada por seus beneficiários.

Em conclusão, podemos afirmar que o sistema de cotas em benefício dos integrantes da raça negra é justo, pelo aspecto histórico, e é constitucional, podendo ser imediatamente implantado (superada a controvérsia sobre o critério de definição racial), porém, não é o principal ponto de cisão social no Brasil.

O abismo mais gritante na sociedade brasileira é o que afasta os abastados dos miseráveis, separação esta que exige dos poderes públicos uma resposta não meramente compensatória, mas sim estrutural e voltada para o futuro da nação.

Bibliografia.

1. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. Companhia de Letras, 1995.

2. BARROS, Maria Magdala Sette. Violabilidade das comunicações. Boletim dos Procuradores da República, ano IV, n.º 42 de 2001.

3. COMPARATO, Fábio Konder. Ordem sem progresso, Folha de São Paulo, publicado no dia 05121995.

4. GUARESCHI, Pedrinho A. Sociologia da Prática Social. Editora Vozes, 1992.

5. FERREIRA, Luiz Pinto. Espaciologia Social, 2ª edição, Editora da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, 2000.

6. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Editora Dicopel.

Outras Obras Consultadas:

7. BARBOSA SOBRINHO, Osório Silva, A Constituição Federal vista pelo S.T.F. , 2ª Edição, SP. Editora Juarez de Oliveira, 2000.

8. ROOS, Alf. Direito e Justiça – Tradução: Edson Bini, Bauru, SP. EDIPRO, 2000.

9. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo – 19ª edição, editores Malheiros, 2000.

(O artigo foi elaborado no dia 1º de fevereiro de 2002.

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