Colcha de retalhos

Parte da lei antitóxicos perde eficácia por ter expressões vagas

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6 de fevereiro de 2002, 8h44

O deputado Elias Murad (Correio Braziliense de 04.02.02, p. 5) censurou duramente o ministro da Justiça por ter atendido as forças do retrocesso e concorrido para o estrangulamento do projeto sobre drogas aprovado pelo Congresso Nacional (recorde-se que foi ele o autor da proposta original).

De fato, a intenção de eliminar a pena de prisão para os usuários de drogas é muito correta. Mas isso ficou escrito no projeto de maneira absolutamente atécnica e confusa. Aliás, é muito difícil encontrarmos em toda história republicana brasileira um período de produção legislativa tão paupérrima e capenga como o dos últimos anos. Sinal dos tempos! Nosso legislador vai conseguindo se superar em cada momento. Talvez nunca tenha havido um projeto de texto legal tão mal cuidado. Na era digital é muito chocante ver uma legislação tão analogicamente elaborada!

Continha o projeto aprovado boas novidades como o reconhecimento do princípio da progressão de regime, a distinção entre traficante e usuário de drogas etc. De todas, destaque especial merece a pretensão de acabar definitivamente com a pena de prisão para o usuário de drogas. O presidente da República, no entanto, diante de tantas incorreções e absurdos técnicos acabou vetando cerca 30% do projeto e mantendo em vigor grande parte da antiga Lei 6.368/76.

Conclusão: tudo da lei precedente que não foi revogado pela posterior continua vigente. Com isso, passou a legislação brasileira sobre drogas a ser o resultado de uma justaposição entre a lei anterior e a nova (10.409/02). E aqui está o problema: criou-se uma verdadeira colcha de retalhos, que significa obviamente mais insegurança para o cidadão.

Vários dispositivos do novo diploma legal (arts. 27, 33, 46, por exemplo), fazem expressa referência “aos crimes previstos nesta Lei”. Pergunta-se: quais, se todo o capítulo III, que previa os crimes e as penas, foi vetado pelo Presidente da República?

Do mesmo modo como ele não acolheu vários dispositivos legais (arts. 36, 43 etc.) porque tinham estreito nexo de dependência com o citado capítulo III, deveria ter também vetado todos os artigos antes citados. Não o fez. Pergunta-se, agora: teriam eles eficácia jurídica?

Essa é a primeira grande questão jurídica que vai desafiar a sabedoria dos juízes. Procuramos demonstrar no nosso curso de acesso grátis pela internet sobre a nova lei de tóxicos (site Estudos Criminais) que tudo quanto foi determinado naqueles dispositivos legais podem ter aplicação em parte e em termos. Em jogo está o princípio da legalidade. Todas as medidas que restringem direitos fundamentais da pessoa (quebra de sigilos, interceptação telefônica etc.) devem observar rigorosamente a estrita reserva legal.

A lei nova, de outro lado, fala em “organização criminosa” e em “grupos” (art. 32, §§ 2º e 3º) e ninguém sabe (juridicamente) o que é isso no Brasil! Previu-se a infiltração de policiais nas quadrilhas, porém, nem sequer se regulamentou quais crimes o infiltrado poderá cometer para ser admitido nela. O Ministério Público doravante vai poder fazer acordo com traficantes e deixar de propor a ação penal (art. 37, IV), todavia, com base em quais critérios? Ele poderá escolher qual indiciado vai processar? Teremos um Ministério Público (pro-ativo) fazendo acordo com traficantes à moda da justiça norte-americana?

Lógico que muitos dos absurdos técnicos da nova lei darão ensejo a uma interpretação corretiva (cf. nosso curso pela internet), mas há normas, como a que prevê a inversão do ônus da prova (art. 44, parágrafo único), que conflitam flagrantemente com a Constituição.

Os pontos positivos da Lei 10.409/02, que entrará em vigor no próximo dia 27/2/02 (destaque-se, por exemplo, a defesa preliminar, que é a defesa feita antes do recebimento da denúncia), foram superados em muito pelos antagonismos, aporias e absurdos.

O caos normativo em que o legislador brasileiro está nos lançando é causa não só de uma situação de absoluta insegurança jurídica, como já está levando muitas pessoas e empresas (nacionais e estrangeiras) a não mais acreditar na nossa Justiça.

Rousseau (um pensador respeitadíssimo no século XVIII) foi o grande responsável (lógico que dentro de um contexto histórico bem conhecido) pela elaboração de alguns mitos em torno das leis (ainda hoje, aliás, inexplicável e aberrantemente seguidos, particularmente em alguns seguimentos do ensino jurídico).

Concebeu-se então que a lei (a) é expressão da vontade geral e, portanto, norma geral; (b) é infalível (incapaz de errar); (c) não pode ser injusta; (d) é a “lei das liberdades”; (e) é uma revelação divina; (f) é a garantia dos direitos. Em suma, a lei já não seria o que agradava ao rei (quod principi placuit legis habet vigorem), senão o veículo mágico das liberdades dos indivíduos.

O legislador brasileiro há anos vem demonstrando que nenhum dos mitos citados, depois de dois séculos, subsiste. Mas o que nos chama mais atenção neste princípio de novo milênio é a sua inigualável capacidade de ser cada vez mais confuso, incoerente, prolixo e irracional.

Exemplo expressivo dessa leviandade legislativa, dentre tantos outros que poderíamos citar, constitui, indiscutivelmente, o texto inicial e final sobre drogas aprovado no Congresso Nacional (depois de onze anos de discussão, remarque-se!). Com ele foram destruídos definitivamente todos os mitos de Rousseau.

E o que é mais preocupante em tudo isso é que a jurisprudência, particularmente a penal, para ser equilibrada e eficaz, precisa de uma legislação feita com prudência (leia-se: de uma legisprudência). E legisprudência, como afirma o jurista português Taipa de Carvalho (Sucessão de leis penais, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 27), “pressupõe e significa bom senso, racionalidade jurídica, coerência normativa, domínio da dogmática e da técnica legislativa em geral e do ramo do direito em que o legislador intervém em especial, rigor e precisão lingüística – o que exige domínio da estrutura e da semântica da língua”.

A falta absoluta de técnica legislativa (“arte”) e saber jurídico (“sabedoria”) levou o presidente da República a vetar quase um terço do projeto de lei aprovado pelo Congresso. Mas outra grande parte da Lei tampouco terá eficácia prática por se referir ou se achar atrelada a expressões vagas, juridicamente indefinidas, como por exemplo “grupo”, “organizações”, “organizações criminosas” etc.. Nada disso está definido no Brasil.

Como assinala com muita precisão e incensurável acerto Taipa de Carvalho (ob. cit., p. 28), “as leis multiplicam-se irracionalmente; atropelam-se, contradizem-se e, desse modo, se neutralizam (…); o casuísmo legislativo impera, com uma proliferação infindável de leis avulsas. Esse fenômeno, pelo seu exagero, desagrega o sistema e corrói a ordem jurídica, especialmente a jurídico-penal, ao mesmo tempo em que gera a insegurança jurisprudencial e a desconfiança do cidadão face ao direito e aos tribunais”.

A míope e tecnocrática visão do nosso tempo, de flexibilização de tudo, inclusive e especialmente das garantias mínimas do Direito penal e do devido processo legal, assim como o pragmatismo eficientista, seguido às vezes inclusive por alguns importantes setores da magistratura, inclinam-se para uma arrogante autosuficiência e são os responsáveis pelo caos legislativo e jurídico (repugnantemente) reinantes (neste agudo momento) no nosso país.

Assim navega a (incontrolada e irracional) nave legisferante brasileira. Por esse mesmo caminho trilha tendencialmente nossa (às vezes cega) Justiça. Até quando?

Autores: Luiz Flávio Gomes Alice Bianchini são doutores em Direito Penal

Willian Terra de Oliveira é promotor de Justiça em São Paulo

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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