Cartéis em questão

'Uniformidade de preços não prova existência de cartéis'

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5 de fevereiro de 2002, 8h56

As recentes declarações de autoridades a respeito da alegada formação de cartéis – no caso de postos de revenda de combustível – deve levar à reflexão sobre a correta conceituação dessas infrações, além de, obviamente, sobre como fazer a prova de sua existência.

Cartéis, em princípio, são acordos entre concorrentes, com a eliminação da livre concorrência. Define-os o próprio Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE), por meio da Resolução nº 20, de 1999: “acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio”.

A infração, no caso, é a de “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa” por meio de “atos sob qualquer forma manifestados” (Lei nº 8.884, de 1994, art. 20 e respectivo inciso I). A conduta específica que pode caracterizar a infração em tela é a de “fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, preços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços” ou “obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes” (Lei nº 8.884, de 1994, art. 21, incisos I e II).

Assim, indo direto ao ponto principal, existirá uma infração – cartel, no caso – se a livre concorrência entre os agentes econômicos – titulares de postos de revenda de combustível, no caso – deixarem de concorrer entre si, fixando preços e/ou condições gerais de revenda de combustível e/ou de prestação de serviços. Note-se bem: não basta, para a caracterização do cartel, que os preços e/ou condições gerais de revenda de combustível e/ou de prestação de serviços sejam uniformes; é preciso que essa uniformidade seja resultado de acerto entre concorrentes.

Assim, se o titular de um posto de revenda de combustível constata que o seu vizinho vende mais porque tem preço mais baixo, nada impede que o preço seja copiado (desde que não seja combinado). Se o vizinho tem sucesso porque presta uma gama de serviços acessórios, também nada impede que o titular do posto em questão passe a oferecer a mesma gama de serviços (desde que não seja combinado). O que é proibido é, enfim, o acerto.

Mais ainda, não é qualquer acerto que resulta em infração. Com efeito, a base constitucional da Lei nº 8.884, de 1994, é o § 4º do art. 173 da Constituição Federal: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Assim, é necessário, para a caracterização da infração, que haja (i) poder econômico, (ii) abuso desse poder econômico e (iii) intenção (veja-se o texto constitucional: “que vise à”) de acertar preços e/ou condições gerais de revenda de combustível e/ou de prestação de serviços.

Esse poder econômico é manifestado dentro de um mercado relevante que, em linguagem concorrencial, significa a convergência entre produto e espaço delimitando a atuação dos concorrentes. Melhor explicando, há, de um lado, a dimensão material, que é a delimitação dos produtos que concorrem entre si. No caso dos postos de revenda de combustível a tarefa é fácil, pois o produto é exatamente a revenda de combustível (embora muitos postos incorporem outras atividades, aparentemente acessórias).

De outro lado, a dimensão geográfica define a área de atuação em que os concorrentes disputam o mercado; esse dimensão pode ser, conforme o produto, global, nacional, regional, municipal ou mesmo local. Assim, não se pode imaginar que um motorista – e aqui consideramos a Grande São Paulo – saia do bairro de Santana para abastecer seu veículo em um posto de Santo André somente porque neste último os preços são mais baixos. Desta forma, o mercado relevante geográfico é a área em que os consumidores racional e normalmente vão à procura do produto.

Dentro desta idéia, por exemplo, vinte titulares de postos de revenda de combustível de uma ampla e hipotética região acertam preços e/ou condições gerais de revenda de combustível e/ou de prestação de serviços; se nesta ampla e hipotética região existem vários outros postos de revenda de combustível cujos titulares não participam do acerto, obviamente não há infração, pois a concorrência não é eliminada, até porque o poder econômico dos titulares desses postos de revenda de combustível não é suficiente para ensejar tal infração.

Ainda no exemplo acima referido, é claro que, se esses vinte titulares de postos de revenda de combustível são os únicos ou constituem grande maioria em uma determinada região, existe a infração, pois a livre concorrência é eliminada ou sensivelmente diminuída. Todavia, é básico observar que, se o consumidor tem opções razoáveis fora do conjunto de postos cujos titulares fazem acordo, não há eliminação da concorrência e conseqüentemente não há infração.

Resta um problema sério: como provar o acerto entre os concorrentes? Obviamente os agentes econômicos, ao elaborar acordos dessa espécie e cientes da ilegalidade da conduta, não o fazem por escrito, deixando provas visíveis. O acerto em geral é resultado de entendimentos verbais.

Mas as reuniões para esses entendimentos são sempre muito difíceis, já que os agentes econômicos desse mercado são em grande número, o que dificulta o entendimento. Além disso, quanto maior é o número de participantes, maior é a instabilidade do acordo. Assim, quando o alegado cartel tem um número grande de participantes, normalmente existe um agente coordenador, que pode ser um dos integrantes do cartel ou um dirigente de entidade de classe; mas essa coordenação não pode ser simplesmente presumida, é preciso que seja provada, sendo que o ônus dessa prova é da autoridade que acusa.

A prova pode consistir dos meios clássicos (documentos, testemunhas, perícias). Todavia, tendo a Lei nº 10.149, de 2000, alterado a Lei nº 8.884, de 1994, permite-se (§§ 2º e 3º do seu artigo 35) “inspeção na sede social, estabelecimento, escritório, filial ou sucursal de empresa investigada, sendo que “poderão ser inspecionados estoques, objetos, papéis de qualquer natureza, assim como livros comerciais, computadores e arquivos magnéticos”.

Há ainda a possibilidade do chamado “acordo de leniência”, que é o acerto que um dos envolvidos no cartel pode fazer com a autoridade, com esta colaborando e fornecendo os elementos de prova necessários para a condenação, obtendo, em troca, extinção ou atenuação da ação punitiva (Lei nº 8.884, de 1994, art. 35-B). Fique claro, entretanto, que a prova buscada não é a da uniformidade de preços e/ou de condições gerais de revenda e/ou de prestação de serviços, mas sim a do acerto entre concorrentes.

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