Era das Redes

Regulamentação da Internet: legislar ou reciclar?

Autor

  • José Caldas Góis Jr.

    é advogado professor universitário especialista em Metodologia do Ensino Superior mestre em Direito Público e presidente da Escola Superior de Advocacia no Maranhão.

29 de agosto de 2002, 12h01

Atualmente, quando se fala em controle das relações jurídicas realizadas via Internet uma tônica predominante é a afirmação de que a rede não dá ensejo a que se inicie um processo de criação legislativa voltado especificamente aos conflitos cibernéticos vez que, em linhas gerais, a rede seria somente um meio para realização de velhos crimes ou um novo lugar para as nossas velhas práticas associativas.

Nos últimos tempos tenho refletido muito sobre essa idéia. Por ocasião da realização da III Conferência dos Advogados do Maranhão tive, inclusive, a oportunidade de ouvir de viva voz as razões de tal posicionamento de dois grandes nomes na matéria, os advogados e professores Alexandre Jean Daun e Amaro Morais e Silva Neto, sem que, entretanto, minhas inquietações tenham cessado por completo.

A respeito é importante alertar que o entendimento de que a Internet não necessita de uma regulamentação especial contraria frontalmente uma das bases sobre a qual estabeleci a minha pesquisa de conclusão do mestrado e que acabou resultando no livro o Direito na Era das Redes. Naquela obra afirmo que a internet carregada sim um traço característico que lhe diferencia das formas de relacionamento humano havidas até o momento e este traço consiste precisamente no fato de que historicamente “as relações entre as pessoas têm se materializado, sempre, dentro do espaço físico em que a sociedade está inclusa. O laço do casamento pressupõe a coabitação; uma compra e venda, a tradição, e assim por diante, sempre numa cadeia de necessariedade em relação a um contato físico e material. No espaço cibernético as relações se estabelecem de maneira quase instantânea, indiferentemente de quão longe estejam as pessoas“. (1)

Na Conferência que proferiu no Maranhão, a respeito da questão da prova nos processos que versam sobre questões ligadas ao uso das redes, Amaro de Morais foi enfático ao reproduzir a idéia, já exposta no seu livro Privacidade na Internet, de que o surgimento da eletricidade não deu ensejo a que se criasse um direito da eletricidade, nem o surgimento do rádio a que surgisse um direito do rádio de modo que não seria a Internet que haveria de merecer um direito próprio, construído em face de uma suposta nova realidade que decorresse dela.

A despeito das palavras do mestre e guru de muitos estudiosos da Internet no Brasil, continuo inquieto diante da questão e não posso me recusar a enfrentá-la mesmo sabendo que talvez não possa contribuir com respostas mas, tão-somente, com a dúvida.

A intenção, portanto, que me impulsionou a escrever o presente artigo foi a de trazer mais uma vez a matéria para o centro da discussão vez que, como já dito, a questão está sendo cada vez mais relegada ao lugar de uma premissa já afirmada dentro do discurso de que precisamos aprender a interpretar a legislação vigente de modo a aplicá-la à Internet. O espírito científico que me impulsiona a não somente repelir a tese contrária àquela que esposei no meu trabalho é o mesmo que me leva também a não aceitar como dada a premissa acima colocada sem antes um último esforço de indagação a respeito da sua veracidade.

Prefacialmente, portanto, necessário afirmar mais uma vez que não me considero um legalista que só consiga enxergar a possibilidade de ordenação das relações interpessoais através da criação de leis. Ao contrário, tenho procurado ao longo das minhas pesquisas me balizar pelas novas noções de Direito, derivadas da crítica ao modelo positivista e jusnaturalista. Tal posicionamento, entretanto, não me impede de reconhecer que a lei têm uma importante função instrumental dentro do processo de distribuição da justiça e, dentro de tal contexto, mudadas as condições da realidade a que se aplica, ela pode se tornar um ferramenta inadequada para os fim de pacificar e harmonizar as relações humanas.

De outro modo concordo com a idéia de que o trabalho de adequação interpretativa do ordenamento vigente para a regulação dos conflitos cibernéticos é mais simples, concreto e pragmático que qualquer esforço legislativo e louvo os progressos que já tivemos graças ao espírito científico de estudiosos como o Amaro de Morais e tantos outros. Um bom exemplo deste valoroso trabalho de “reciclagem legal” nós temos na proposta apresentada por Amaro no Maranhão de se utilizar a ata notarial, um instituto jurídico mais antigo que o próprio país, pois nos foi legado pelo Direito Português, para fazer prova de uma fato jurídico relevante ocorrido na internet. Pelo entendimento do Amaro, a quem remeto o leitor interessado em maiores esclarecimentos, o interessado em produzir a prova poderia se dirigir a um tabelião e pedir que o mesmo acessasse a página ou documento eletrônico e que depois fizesse constar num ato notarial o que viu, materializando assim aquilo que antes estava tão somente no etéreo ambiente do ciberespaço.


Entretanto, creio que nem mesmo o maior esforço de adequação vai nos permitir chegar a um sistema de controle eficaz das relações via rede de computadores se não partirmos para a criação de leis específicas enriquecidas já pelos novos conceitos que o ciberespaço nos propõe por mais difícil, demorado e oneroso que seja o processo legislativo na atualidade.

Pensemos naquelas áreas do direito que mereceram um esforço de especialização como, por exemplo, os recentes direito do consumidor e o direito ambiental e veremos que não existe no espaço próprio de positivação em que desenvolvem nenhum novo caracter que possa justificar tal aprimoramento. Ao contrário, o direito ambiental se desenvolve sobre um meio (-ambiente) e estabelece a sua tutela sobre objetos por vezes mais antigos que a própria ciência jurídica.

O que impede que se possa disciplinar uma relação de consumo com o direito civil comum ou um crime ambiental com o direito penal comum se a realidade é a mesma e todos os aspectos subjacentes à materialidade das relações são iguais àqueles tratados na teoria jurídica tradicional ?

O que justifica, então, a existência de um direito do consumidor? Uma relação de consumo poderia ser muito bem interpretada como uma compra e venda ou outro instituto cível se vista tão somente sob um ponto de vista mecânico procedimental.

Acho que a resposta está no fato de que as mudanças históricas causam alterações de princípios e conceitos que vão muito além da simples materialidade das transações e ou mesmo de uma mecânica inerente ao processo. Assim, um consumidor não é um simples comprador assim como matar um papagaio hoje não tem a mesma significação criminal que tinha há cem anos.

O que faz a verdadeira diferença numa relação de consumo não é nada relacionado com a troca de dinheiro por mercadoria ou serviço mas sim conceitos e princípios como o da hipossuficiência do consumidor, que reclama o estabelecimento de um direito também especial que equilibre as partes trazendo o prumo da justiça para o seu local adequado. Assim, vê-se, que o que reclama a especialização não é a materialidade da relação nem mesmo a sua mecânica; mas sim o uso de conceitos e princípios embasadores alterados em função da dinâmica histórica.

No meu livro cito diversos desses pressupostos que são bastantes para que se possa falar da necessidade de uma legislação voltada aos novos problemas surgidos com o advento do uso de redes de computadores. Para não me estender em exemplos citarei apenas um fundamental: a internet é um espaço sem fronteiras ou ulltrafronteiriço onde se dissolvem conceitos importantes do nosso direito como o conceito de território, o de jurisdição, o de materialidade e outros.

No último capítulo do meu livro enumerei algumas de tais características que adiante abordarei em síntese com o intuito único de provar que a questão não é tão simples como pode parecer a princípio, vejamos:

1 – A Internet hoje não é mais tão-somente o espaço libertário e romântico de uma democracia de informação, como se afigurou nos seus primórdios. Ao contrário, o que vemos atualmente é um avassalador processo de apropriação da rede pela sociedade capitalista transformando-a em apenas mais um meio de viabilizar o consumo em massa a nível global.

Dentro desse novo quadro, a luta pela liberdade na rede pode e está sendo usada numa perspectiva ideológica, mesmo que assim não tenha sido concebida. Sob o manto da preservação das liberdades públicas se escondem, por vezes, interesses econômicos vários, com o intuito de não estender ao ciberespaço a regulamentação existente no espaço social nacional e assim, tornar a rede uma espécie de paraíso liberal; deixa fazer, deixa passar.

2 – Muito mais que em qualquer outro, uma boa lei sem um arcabouço técnico operacional que lhe garanta aplicabilidade pode vir muito rapidamente a se transformar em apenas uma página de boas intenções. Assim é que nenhuma lei será realmente eficaz se não se desenvolverem, concomitantemente, técnicas e métodos de polícia investigativa e mecanismos de cooperação internacional que permitam ao menos se chegar ao ponto inicial da aplicação da lei: a constatação da prática do ilícito ou da negação a um direito garantido.

Assim, inicialmente, é necessário afirmar que, neste campo, nenhuma legislação que desconsidere os esforços mundiais de regulação poderá tornar-se efetiva.

Marcos Sakamoto, intitulado Direito das Gentes e Informática, faz uma longa demonstração de como o campo da informática reflete a tendência de formulação de padrões aceitos internacionalmente em detrimento das arquiteturas particulares. Segundo Sakamoto as forças de mercado e a pressão da competição reduziram o número de fabricantes de hardware e o mercado de software a seguidores de padrões básicos e estratificados vigentes internacionalmente.


Continua Sakamoto, demonstrando que sistemas inteiros de apoio ao comércio internacional: aquisição, armazenagem e recuperação de dados, foram montados sob plataformas comuns de modo a atingirem eficiência, em diferentes países do mundo, enquanto, em paralelo, ocorria uma revolução nas telecomunicações: facilidades de transportes de dados a preços menores e mais confiáveis.

Por fim, conclui que, uma vez que tal rede já se encontra montada e em funcionamento, constitui a Internet uma inegável força de pressão no sentido de que seja criada uma legislação compatível a atender demandas baseadas em tecnologia comum. Segundo o autor “uma base tecnológica comum (a rede mundial de computadores) gera uma nova dimensão de demandas, que possui uma identidade própria, são demandas baseadas não em uma cultura regionalizada, mas sim em uma cultura uniforme, toda ela baseada na informática. Não mais existem as fronteiras físicas, políticas… estamos diante de um fenômeno global” .

Segundo Sakamoto, a solução definitiva para algumas das questões previamente citadas passa não por uma adaptação, mas por uma revolução a nível da Estrutura e dos Conceitos do Direito como os conhecemos, aplicados a esta nova realidade.

3 – As formas atuais de limitação estatal ao uso das redes de computadores ainda estão quase que completamente ligadas a uma tentativa de controle político ou ideológico como é o caso do Afeganistão, da China e mesmo dos Estados Unidos, com o esforço de dar à rede um padrão adequado à cultura e à moral nacional. Tais países se sentem ameaçados com o modelo quase anárquico que a Internet propõe.

Entretanto, a tentativa de se estabelecer fronteiras na rede parece ser uma iniciativa fadada ao fracasso o que indica, mais uma vez, que o caminho tem que passar pela regulamentação internacional de certos aspectos da Internet.

Em alguns casos, é bem verdade, o nosso sistema legal nacional pode até ser suficiente para regular as relações via rede, já que muitas dessas relações são apenas aparentemente novas mas, na prática, repetem, tipos e modelos já encontrados na vida real.

Existem casos, entretanto, em que uma legislação de âmbito nacional será totalmente inadequada para dar uma resposta ao desajuste social criado por não contemplar tipos específicos ou simplesmente não conseguir conceber a complexidade desse novo meio de comunicação.

Visão global, regulamentação dinâmica e célere, respeito aos direitos individuais com a preservação dos valores sócio-culturais, cooperação a nível de política criminal e de polícia, são algumas das metas que precisam ser perseguidas a fim de que se consiga dar regulação às relações na Internet.

De outro modo, qualquer modelo nacional de regulação, por via de lei ou outra forma, tem que ter em vista as iniciativas que se desenvolvem nos outros países estabelecendo formas de cooperação e intercâmbio de informações, inclusive, a nível de polícia do ciberespaço.

Como dito, não tenho a intenção de apresentar respostas cabais mas tão somente de manter viva a chama da discussão colocando esta importante questão ainda no primeiro plano dos debates em torno da regulação das relações nascidas com o uso de redes de computadores.

Nota de rodapé:

(1) GOIS JR, José Caldas. O Direito na Era das Redes: a liberdade e o delito no ciberespaço. Bauru: EDIPRO, 2001, p. 46.

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    é advogado, professor universitário, especialista em Metodologia do Ensino Superior, mestre em Direito Público e presidente da Escola Superior de Advocacia no Maranhão.

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