Caminho de volta

Alca: o crepúsculo de FHC e a iminência do caos no país.

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27 de agosto de 2002, 12h40

No tempo em que se dizia que os carros brasileiros eram “carroças”, afirmava-se que vivíamos encerrados numa cápsula de protecionismo que, sob o pretexto de proteger nosso delicado parque industrial, impedia-nos de obter o crescimento que traria riqueza para todos, libertando os miseráveis de sua incomensurável pobreza. Naqueles anos pré-fernando, apesar dos pesares, o protecionismo fazia com que entre exportações e importações, estivéssemos sempre em superávit, vendendo mais do que comprávamos:

Ano – 1981

Resultado em milhões de dólares

12.025.000

Ano – 1982

Resultado em milhões de dólares

7.801.000

Ano – 1983

Resultado em milhões de dólares

64.704.000

Ano – 1984

Resultado em milhões de dólares

130.895.000

Ano – 1985

Resultado em milhões de dólares

124.855.000

Ano – 1986

Resultado em milhões de dólares

83.043.000

Ano – 1987

Resultado em milhões de dólares

111.731.000

Ano – 1988

Resultado em milhões de dólares

191.841.000

Ano – 1989

Resultado em milhões de dólares

161.192.000

Ano – 1990

Resultado em milhões de dólares

107.524.000

Ano – 1991

Resultado em milhões de dólares

105.800.000

Ano – 1992

Resultado em milhões de dólares

152.389.000

Ano – 1993

Resultado em milhões de dólares

132.988.000

Depois, veio Fernando e seu Plano, daí resultando uma enorme decadência em nossos resultados:

Ano – 1995

Resultado em milhões de dólares

-34.660.000

Ano – 1996

Resultado em milhões de dólares

-55.990.000

Ano – 1997

Resultado em milhões de dólares

-67.530.000

Ano – 1998

Resultado em milhões de dólares

-65.750.000

Ano – 1999

Resultado em milhões de dólares

-11.990.000

Ano – 2000

Resultado em milhões de dólares

-6.980.000

A dívida externa saltou de US$ 148,3 bilhões em 1994 quando o Plano Real fez sua estréia para 226 bilhões de dólares em 2001. Tais números, contudo, excluem as dívidas intercompanhias, e os débitos por aplicações, sendo que o total é estimado por alguns economistas em 400 bilhões dólares (1), dívida pública que estava em 24 bilhões de reais no Ano I (1994) da Era Fernando, pulou para estratosféricos setecentos e cinqüenta bilhões de reais em junho de 2002.(2)

Todos estes oito anos de “milagre” terminam se afundando em desgraça, com o candidato oficial rastejando no final dos índices de pesquisa eleitoral, revelando-se uma imensa sensação de fracasso e desencanto. A opinião pública vai percebendo que alguma coisa esteve errada durante todo este tempo e nós não percebemos.

Para os que não falam economês e tentam desesperadamente entender o que aconteceu e descobrir de onde viemos e para onde vamos, é terrível o exercício de tentar desvendar a realidade por detrás deste caos de informação e contra-informação. Podemos começar, portanto, tentando descobrir como é que FHC “descobriu a América” e colocou a economia do país neste rumo que, no começo parecia tão risonho e que se afigura tão sinistro no final da estrada.

A verdade é que o “mago” percebeu no início de 1994 as perspectivas que se abriam em torno de uma das faces da globalização, uma das partes das chamadas “reaganomics”. A internacionalização do capital financeiro, quebrando as barreiras ao ingresso de capitais especulativos, disponibilizava dinheiro abundante no mercado internacional, durante aquela etapa de transição. Promoveu discretamente a abertura para estes capitais de modo que, em julho, na etapa crucial do Plano Real, o país dispunha de 40,3 bilhões de dólares de reservas cambiais, 70% acumuladas durante seu curto reinado de ministro da fazenda.

Com este lastro, lançou a política de “populismo cambial” que o tornou invencível eleitoralmente: a paridade entre o real e o dólar, garantida por este lastro enorme. O país abria-se para o processo de globalização reduzindo as barreiras tarifárias e derrubando as barreiras para o ingresso do capital especulativo em nossas bolsas de valores, atraído pelas mais altas taxas de juros do mundo (bancadas indiretamente pela dívida pública). O resultado é mais ou menos evidente. Enquanto as importações cresciam porque o real podia comprar mais no exterior, as exportações desciam porque se tornava necessário mais real para comprar a mesma quantidade de mercadoria. A balança de ingressos representativa do que efetivamente se comprava e se vendia, despencou de forma abrupta durante todos estes anos.(3)

Como pagar as contas e financiar o crescimento se a balança comercial capotou desta maneira tão gritante? Financiando tudo com o capital estrangeiro, o que nos conduz a um outro nível de estratégia do “mago dos oito anos”: financiar o crescimento com o déficit de conta-corrente. Vale dizer, obter investimento para aumentar o crescimento através da obtenção de dinheiro externo, endividando o país brutalmente. Tanto em termos de dívida pública como em termos de dívida privada.


Como os economistas descrevem tal estratégia(4)]: “Diante da baixa taxa de poupança doméstica, torna-se extremamente importante a participação da poupança externa, na forma de déficit(s) do balanço de pagamentos em conta corrente, como fonte complementar de financiamento dos investimentos que permitem a retomada do crescimento auto-sustentado brasileiro. Por outro lado, visto que independentemente da forma como é financiado, déficits em conta corrente sempre implicam aumento do passivo externo líquido do país, 1a ocorrência de persistentes déficits em conta corrente depende da disposição por parte dos investidores estrangeiros de financiar nosso desequilíbrio externo, 2 seja por meio de empréstimos (como na década de 70), seja por meio da captação de recursos via bônus e de investimentos — diretos e de portfólio (como na década de 90). A crise mexicana de dezembro de 1994 ilustra bem os riscos associados a esse tipo de estratégia”.

Os riscos de tal estratégia já eram objeto de avisos em 1996(5): “A dependência financeira externa da economia brasileira cresceu a um ponto em que a disponibilidade bastante ampla de capitais externos se tornou uma questão de vida ou morte para o programa de estabilização. Não é por acaso que o momento de maior risco para sua sobrevivência aconteceu naqueles meses que se seguiram à crise do México: os primeiros meses de 1995, quando alguns críticos mais precipitados se apressaram em decretar prematuramente o seu fim. Fato é que, naquele momento, o Plano Real atravessou uma fase muito delicada, e isso, volto a dizer, não foi por acaso, conforme pretendo argumentar.

Se consultarmos os grandes números das contas externas brasileiras, veremos que provavelmente o déficit do balanço de pagamentos em conta corrente deve apresentar um desequilíbrio no ano de 1996 próximo a uns 20 bilhões de dólares, o que corresponde a quase 40% das exportações de mercadorias do país (Lembro que as contas correntes do balanço de pagamentos incluem a balança comercial, os serviços e as transferências sem contrapartida, notadamente remessas de migrantes). Este é o montante líquido de recursos que o Brasil precisa captar no ano de 1996. A isso se acrescenta a necessidade de refinanciar ou rolar as amortizações do principal da dívida de médio e longo prazo, que, segundo dados do Banco Central, devem ficar por volta de 13 bilhões de dólares. Portanto, o montante bruto de captação que o Brasil tem que realizar no ano de 1996 para cobrir o desequilíbrio em conta corrente do balanço de pagamentos, mais as amortizações de médio e longo prazo, é da ordem de uns 30 bilhões de dólares.

Isto, sem contar a necessidade de refinanciar ao longo do exercício os passivos externos de curto prazo, a respeito dos quais não há dados recentes, mas que devem andar por volta de 50 a 55 bilhões de dólares, incluindo dívidas de curto prazo e investimentos de portfólio. Então, só por aí se vê a dependência que o país acumulou em relação à disponibilidade de capitais externos. É claro que isto não significa que nós estamos à beira do colapso, porque os mercados financeiros estão abertos para nós.”

E mais adiante: “Está na lembrança de todos que, nos anos setenta, quando as autoridades econômicas dos governos militares – promovendo a tomada de recursos externos partindo sob a premissa de que “dívida não se paga, dívida se rola”- nos diziam a todo o momento que o Brasil estava entrando numa fase brilhante de inserção na economia mundial. E a que conclusão chegamos nos anos 80? Foi a de que dívida se paga sim. E se paga dolorosamente, às vezes com a perda de uma década de desenvolvimento econômico de um país. Os mercados financeiros internacionais hoje são mercados talvez mais instáveis do que no passado. Promover, portanto, o desenvolvimento do Brasil e a estabilização de sua economia, apostando na contínua abundância de recursos externos, envolve alto risco.”

Este era o cenário em 1996, vislumbrando a terrível perspectiva de precisarmos obter uns 55 bilhões de dólares em l997, numa temporada onde havia abundante dinheiro no mercado internacional. Segundo os analistas, este volume de necessidades anuais mantem-se em 2002 justamente neste período em que o mercado internacional já não dispõe do dinheiro abundante que fez a festa do “magos” em seus anos de felicidade.

Acrescente-se, ainda, que os acordos com o Fundo Monetário Internacional é que vem mantendo a casa em pé, fornecendo o dinheiro necessário a cumprir o déficit. Isto gera um efeito perverso interno porque FHC precisa manter sempre o que os economistas chamam de “superávits primários”, vale dizer: receitas menos despesas, sem levar em conta os gastos com juros. Assim, o orçamento é recortado de forma brutal, cortando gastos em todas as áreas e deteriorando todos os serviços públicos.


Em contrapartida, se o governo consegue a estas duras penas manter o “superávit primário” em 3,5% do PIB, somando-se a isto a despesa com os pagamentos decorrentes da dívida pública, o déficit de contas correntes total chegava a 4,61% do PIB em 2001. E o governo continua a tentar convencer nossos credores que não chegaremos ao estágio da Argentina onde o déficit era, apenas, de 3,1% do PIB antes da casa esboroar-se.

Assim, o compromisso que o nosso “Merlin dos oito anos de felicidade” procura obter dos candidatos está em que ficaremos bonzinhos, cumprindo a obrigação de manter os “superávits primários”, deixando o povo na miséria porá que o “mercado” continue a nos fornecer os preciosos dólares de que precisamos para pagar as contas do déficit de contas correntes.

Neste quadro, os profetas neoliberais de sempre continuam a afirmar que o caminho de sobreviver está em mergulhar mais fundo nesta piscina(6):“não há alternativa de desenvolvimento fora do modelo global. Voltar ao protecionismo é impensável”. Afinal de contas, se o nosso grande problema é o desequilíbrio na balança de pagamentos que é gravemente alavancado por sucessivos e permanentes desastres na balança comercial, porque é que a salvação está em baixar ainda mais as barreiras tarifárias?

Para estes profetas da salvação que nos trouxeram a tão perigosa esquina da história, o caminho é sem retorno e temos que ingressar de modo mais radical na liberalização do comércio. Para tal finalidade é que se está negociando o acordo da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). A respeito, veja-se os esclarecimentos de Maria da Conceição Tavares(7): “ Os alcances da ALCA não se esgotam, como sugere seu nome, na formação de uma área de livre comércio, mas representam um acordo global que pretende abarcar muito mais, incluindo os serviços, o sistema financeiro, as compras governamentais e os investimentos. Visa, neste sentido, aprofundar os processos de desregulamentação econômica e financeira impostos à América Latina no vácuo produzido pela crise da dívida externa dos anos oitenta, os quais, num quadro de notáveis assimetrias econômicas e tecnológicas como o que existe entre os EUA e os países da região, tendem a favorecer claramente a economia norte-americana. Caberia perguntar, então, em nome de que interesses está o governo brasileiro negociando a ALCA.

Não conheço um só empresário relevante, congressista ou sindicalista brasileiros que veja a ALCA com bons olhos e, no entanto o processo de ‘negociação’ prossegue como uma ‘morte anunciada’ de um projeto nacional brasileiro ou do próprio MERCOSUL, cuja única questão pendente parece ser a data.”. E mais adiante: “Uma liberalização do comércio hemisférico, antes mesmo de chegar à eliminação total de tarifas e outras barreiras não-tarifárias, teria um impacto altamente destrutivo sobre a nossa indústria. Mesmo as empresas brasileiras que já conseguiram ‘ajustar-se’ à maior concorrência das importações decorrente da atual política de liberalização, inclusive as que operam no âmbito do MERCOSUL, não suportariam sequer a redução de tarifas frente ao baixo nível de proteção interna e externa da indústria e da agricultura no país e no próprio MERCOSUL”.

E aqui chegamos a esta encruzilhada da História. As eleições se desenrolam com esta espada da ameaça da bancarrota imediata, balançando pesadamente sobre as cabeças dos candidatos que vão esperneando como podem para enganar o “mercado”, prometendo que serão “bonzinhos” depois da vitória quando todos podem imaginar o desenlace: quem quer que seja que vencer o pleito, vai ter que “reestruturar a dívida”. O tal de Mr. Mercado acusado de idiota e irresponsável pelo “Mago” que procura dar credibilidade a esta massa falida, é bastante razoável.

Qualquer garotão de gravatinha borboleta das “agências de risco” estrangeiras, sabe aquilo que todos sabem: a “reestruturação” é inevitável e só é difícil saber o tamanho do calote e a natureza da represália. Neste cenário, ninguém quer colocar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim e as necessidades de financiamento estão fazendo o dólar chegar a R$ 3,00.

O que começou em aurora pirotécnica, vai terminando de modo melancólico em crepúsculo sombrio. Iniciamos a viagem nas asas da magia de FHC em 1994 com um PIB de R$ 1.002.637,873, 00, e a dívida pública em R$ 151.942,787, 00 e chegamos em 2001, com o PIB em R$ 1.184.768.830 e a dívida pública em R$ 750.258.297,40. Será que valeu a pena e crescemos de PIB o suficiente para compensar o crescimento da dívida?

Os efeitos sociais de tudo isto já tem sido decantados em prosa e verso em muitos textos. A perda massiva de postos de trabalho e a deteriorização exacerbada dos remanescentes em razão da precarização. A máquina de exclusão social funcionando em comandita com a de exclusão territorial criando uma zona periférica onde não há economia e não há Direito. O resultado tem sido resumido em violência, conforme se vê em recente relatório do Ilanud a respeito do descontentamento com a miséria e a desigualdade(8): “no Brasil, o descontentamento não é canalizado politicamente, mas é representado por um crescimento endêmico dos níveis de criminalidade que afeta todas as esferas da sociedade, principalmente as menos favorecidas, e não apenas aquelas dotadas de mais recursos, dai não consistir em uma luta entre classes”.

A respeito, vale citar(9)um dos traços mais importantes de nossa sociedade, nos últimos anos, é que está ruindo a aceitação de uma condição subalterna pelos pobres, mas não rui por uma reivindicação social bonita…”. A miséria não está pegando em armas para mudar as estruturas, numa crise revolucionária, mas, a crise está se exprimindo numa libertação da aceitação da subalternidade em direção a exercer a força para oprimir e obter propriedade e não, para libertar a sociedade. Estamos já mergulhados numa situação caótica que este modelo não consegue administrar e que irá entrar em derrocada de vez se continuarmos na mesma direção. Na medida em que a sociedade aceitar a melodia destes flautistas neoliberais e caminhar cegamente para as fauces entreabertas da ALCA, os tempos próximos serão extremamente sinistros.

Então, é preciso fincar pé na tese de que há retorno possível. É necessário desfraldar as bandeiras do caminho de volta, dizendo não aos superávits primários, déficits de conta-corrente, áreas de livre comércio, etc… É preciso assumir que tudo isto foi um disparate perverso, buscando uma nova política econômica que trabalhe com outras prioridades e nos afaste deste horizonte funesto.

Notas de rodapé

1- se ROCHA, Geisa Maria “Neo-Dependency in Brazil”, New Left Review, July/aug 2002, pág 12

2- Dados constantes in http://www.ipeadata.gov.br/

3- A respeito dos capítulos desta novela, veja-se ROCHA, Geisa Maria “Neo-Dependency in Brazil”, New Left Review, July/aug 2002, págs.5/35

4- MAKA, Aléxis “A sustentatbilidade de déficits em conta corrente”, in http://www.ipea.gov.br/pub/td/1997/td_0481.pdf

5- comentários de Paulo Nogueira Batista Júnior m debate promovido pela Fundação Konrad Adenauer em 1996, in http://www.adenauer.com.br/PDF/Papers/Pap_27.pdfANO VALOR

6- LANGONI, Carlos in Revista Época de 26/08/2002 in http://epoca.globo.com/

7- TAVARES, Maria da Conceição “A ALCA interessa ao Brasil?’, Folha de São Paulo, 29 de março de l998”.

8- http://www.conjunturacriminal.com.br/boletins/dh90.htm

9- RIBEIRO, Renato Janine “Justiça e Lei”, in “Reflexões sobre justiça e violência” EDUC, 2002 pág 64

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