Dicas e mandingas

O fantasma de confisco da poupança ainda ronda o Brasil

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26 de agosto de 2002, 11h25

A “Crônica de uma Morte Anunciada”, escrita por Gabriel García Márquez, realizada: tal como Santiago Nasar, a economia brasileira está estendida no chão. Cadáveres às vezes geram fantasmas. No caso, um ronda o Brasil, neste momento pré-eleitoral: um novo confisco da poupança e de outros ativos financeiros. As páginas de política e de economia dos jornais trazem o fantasma para os nossos lares diariamente, resultando em pesadelos de muitos e espertezas lucrativas de poucos.

Dicas e mandingas são transmitidas aos pequenos e médios investidores, enquanto os grandes tomam o caminho do lado norte da linha do equador. Os presidenciáveis gastam precioso tempo jurando que não pensam como “aquelle”. Será que os juristas nada têm a sugerir para ajudar a exorcizar o fantasma?

Voltemos a 1990. Primeiro, a Medida Provisória nº 168; depois, com sua célere aprovação pelo Congresso, a Lei nº 8.024, de 12/04/90; assim, em co-autoria entre Executivo e Legislativo, foi feito o confisco conhecido como o “bloqueio dos cruzados novos”. Ultrapassada a perplexidade inicial, os cidadãos foram à Justiça Federal como nunca havia ocorrido antes em nossa história. Daquelas filas nas portas dos fóruns nasceu a jurisprudência que agora pode afugentar o fantasma “ressuscitado”.

A Justiça Federal de 1º grau e os Tribunais Regionais Federais rejeitaram o “bloqueio” com uma quase unanimidade raras vezes verificada. Todos os fundamentos então utilizados em dezenas de milhares de decisões permanecem válidos e constituem cláusulas pétreas, vale dizer nem mesmo por emenda constitucional podem ser revogadas. Para lembrar apenas as mais importantes, fiquemos com a proteção ao ato jurídico perfeito, a exigência de um devido processo legal para que alguém seja privado dos seus bens e a vedação à tributação com efeito de confisco. Além disso, muitos juízes federais consideraram ser o bloqueio um empréstimo compulsório disfarçado, que, em conseqüência, só poderia ter sido instituído por intermédio de lei complementar e com a observância do princípio da anterioridade.

Em outro plano, embora a jurisdição constitucional concentrada não tenha funcionado eficazmente neste caso, desde a primeira hora vários ministros do STF entendiam ser inconstitucionais as medidas restritivas em foco. O ministro Celso de Mello, por exemplo, disse na ADIMC nº 534/DF: “O poder normativo reconhecido à União Federal para atuar, legislativamente, sobre a disciplina da moeda, quer para adaptar o volume dos meios de pagamento às reais necessidades da economia nacional, quer para regular o seu valor intrínseco, prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários (…), quer para impedir situações de anormalidade e outros desequilíbrios oriundos de fenômenos conjunturais, não dispensa e nem exonera o Estado, na formulação e na execução de sua política econômico-financeira, inclusive monetária, de observar e de respeitar os limites impostos pela Constituição.”

Além desta clara orientação jurisprudencial construída pela Justiça Federal brasileira, um outro importante aspecto jurídico deve ser realçado para repelir a idéia de um novo confisco. De acordo com a Emenda Constitucional nº 32/2001 é vedada a edição de medida provisória “que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro”. Descartada esta via normativa, na prática nenhuma outra resta, uma vez que após a tramitação de um projeto de lei sobre o tema nada mais sobraria nos bancos para ser bloqueado.

Estamos, em conclusão, diante de um confisco impossível em um contexto democrático, pois para fazê-lo seria necessário confiscar conjuntamente a Constituição e o Poder Judiciário. Assim, ou o fantasma é mais feio do que parece, pois ameaça a democracia, ou deve apenas nos divertir enquanto não volta para o seu mundo. Considerando o presente momento histórico e os atuais presidenciáveis, prefiro preconizar a segunda opção.

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