Proteção em jogo

Proteção internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Autor

  • Flávia Piovesan

    é vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

26 de agosto de 2002, 15h42

O objetivo deste ensaio é propor uma reflexão a respeito da proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais. Inicialmente, será avaliada a relação entre o processo de construção dos direitos humanos e os direitos econômicos, sociais e culturais. Vale dizer, será analisado o modo pelo qual estes direitos passaram a integrar a chamada “concepção contemporânea de direitos humanos”, enunciada pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Viena de 1993.

Em um segundo momento, serão enfocados os instrumentos internacionais voltados especificamente à proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos sistemas internacional e interamericano de direitos humanos. Serão, assim, estudados o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional à Convenção Americana em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (“Protocolo de San Salvador”).

Por fim, serão desenvolvidas reflexões a respeito dos principais desafios e perspectivas para a proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais à luz do contexto contemporâneo, marcado pelos processos de globalização econômica, integração regional e internacionalização dos direitos humanos.

A Construção dos Direitos Humanos e os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução(1). Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal pluralidade, destaca-se neste estudo a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos,… O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial(2).

É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a 2a Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução.

Neste sentido, em 10 de dezembro de 1948, é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como marco maior do processo de reconstrução dos direitos humanos. Introduz ela a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.

A Declaração Universal de 1948, na qualidade de marco maior do movimento de internacionalização dos direitos humanos, fomentou a conversão destes direitos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Como observa Kathryn Sikkink: “O Direito Internacional dos Direitos Humanos pressupõe como legítima e necessária a preocupação de atores estatais e não estatais a respeito do modo pelo qual os habitantes de outros Estados são tratados. A rede de proteção dos direitos humanos internacionais busca redefinir o que é matéria de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados.” (3)

Fortalece-se, assim, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes conseqüências:


1a) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacional, quando os direitos humanos forem violados (4);

2a) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.

Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania.

O processo de universalização dos direitos humanos permitiu, por sua vez, a formação de um sistema normativo internacional de proteção destes direitos. Na lição de André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros: “Em termos de Ciência Política, tratou-se apenas de transpor e adaptar ao Direito Internacional a evolução que no Direito Interno já se dera, no início do século, do Estado-Polícia para o Estado-Providência. Mas foi o suficiente para o Direito Internacional abandonar a fase clássica, como o Direito da Paz e da Guerra, para passar à era nova ou moderna da sua evolução, como Direito Internacional da Cooperação e da Solidariedade”. (5)

A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e a partir da concepção contemporânea de direitos humanos por ela introduzida, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. Como leciona Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais(6).

Em face da crescente consolidação deste positivismo universal concernente aos direitos humanos, pode-se afirmar que os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais relativos a estes direitos. Neste sentido, cabe destacar que, até junho de 2001, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 147 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 145 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 124 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 157 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 168 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes(7).

A concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma de sua indivisibilidade(8). Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5o, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.”

Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós Guerra”, a Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de 1993 estende, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.

Ao examinar a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, leciona Hector Gros Espiell: “Só o reconhecimento integral de todos estes direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais. Inversamente, sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação. Esta idéia da necessária integralidade, interdependência e indivisibilidade quanto ao conceito e à realidade do conteúdo dos direitos humanos, que de certa forma está implícita na Carta das Nações Unidas, se compila, se amplia e se sistematiza em 1948, na Declaração Universal de Direitos Humanos, e se reafirma definitivamente nos Pactos Universais de Direitos Humanos, aprovados pela Assembléia Geral em 1966, e em vigência desde 1976, na Proclamação de Teerã de 1968 e na Resolução da Assembléia Geral, adotada em 16 de dezembro de 1977, sobre os critérios e meios para melhorar o gozo efetivo dos direitos e das liberdades fundamentais (Resolução n. 32/130)”. (9)


Em face da indivisibilidade dos direitos humanos, há de ser definitivamente afastada a equivocada noção de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de direitos (a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A idéia da não-acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica(10). São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão.

Como aludem Asbjorn Eide e Alla Rosas: “Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. (…) As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos” (11).

Destaque-se, ainda, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986(12). Esta Declaração, em seu artigo 2o, consagra: “A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento.” (13) Para a Declaração de Viena de 1993, o direito ao desenvolvimento é um direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais. A Declaração de Viena reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos.

Feitas essas considerações a respeito da concepção contemporânea de direitos humanos e o modo pelo qual se relaciona com os direitos econômicos, sociais e culturais, transita-se à análise da proteção internacional a estes direitos, com ênfase no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Protocolo Adicional à Convenção Americana em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (“Protocolo de San Salvador”).

Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Preliminarmente, faz-se necessário ressaltar que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, foi o marco de criação do chamado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, que é um sistema jurídico normativo de alcance internacional, com o objetivo de proteger os direitos humanos.

Após a sua adoção, em 1948, instaurou-se uma larga discussão sobre qual seria a maneira mais eficaz em assegurar a observância universal dos direitos nela previstos. Prevaleceu o entendimento de que a Declaração deveria ser “juridicizada” sob a forma de tratado internacional, que fosse juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do Direito Internacional.

Esse processo de “juridicização” da Declaração começou em 1949 e foi concluído apenas em 1966, com a elaboração de dois distintos tratados internacionais no âmbito das Nações Unidas – o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – que passavam a incorporar, com maior precisão e detalhamento, os direitos constantes da Declaração Universal, sob a forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que atualmente contempla a adesão de 145 Estados-partes, enuncia um extenso catálogo de direitos, que inclui o direito ao trabalho e à justa remuneração, o direito a formar e a filiar-se a sindicatos, o direito a um nível de vida adequado, o direito à moradia, o direito à educação, à previdência social, à saúde, etc. Importa observar que, no cenário internacional, antes mesmo da Declaração de 1948 e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, nascia a Organização Internacioal do Trabalho (OIT), após a 1a Guerra Mundial, com o objetivo promover parâmetros internacionais referentes às condições de trabalho e bem estar.

Deste modo, a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais não é apenas uma obrigação moral dos Estados, mas uma obrigação jurídica, que tem por fundamento os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(14).

Se os direitos civis e políticos devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora – têm a chamada auto-aplicabilidade, os direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão condicionados à atuação do Estado, que deve adotar todas as medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais(15), principalmente nos planos econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização desses direitos (artigo 2º, parágrafo 1º do Pacto) (16).


No entanto, cabe realçar que tanto os direitos sociais, como os direitos civis e políticos demandam do Estado prestações positivas e negativas, sendo equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais só demandariam prestações positivas, enquanto que os direitos civis e políticos demandariam prestações negativas, ou a mera abstenção estatal. A título de exemplo, cabe indagar qual o custo do aparato de segurança, mediante o qual se assegura direitos civis clássicos, como os direitos à liberdade e à propriedade, ou ainda qual o custo do aparato eleitoral, que viabiliza os direitos políticos, ou, do aparato de justiça, que garante o direito ao acesso ao Judiciário. Isto é, os direitos civis e políticos não se restringem a demandar a mera omissão estatal, já que a sua implementação requer políticas públicas direcionadas, que contemplam também um custo.

Além da avaliação crítica acerca do “custo” dos direitos sociais (que, como visto, também impõe-se quanto aos direitos civis e políticos), é também essencial refletir sobre a chamada “aplicação progressiva” dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma a extrair seus efeitos. Cabe reafirmar que o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece a obrigação dos Estados em reconhecer e progressivamente implementar os direitos nele enunciados, utilizando o máximo dos recursos disponíveis.

Como afirma David Trubek: “Os direitos sociais, enquanto social welfare rights implicam na visão de que o Governo tem a obrigação de garantir adequadamente tais condições para todos os indivíduos. A idéia de que o welfare é uma construção social e de que as condições de welfare são em parte uma responsabilidade governamental, repousa nos direitos enumerados pelos diversos instrumentos internacionais, em especial pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ela também expressa o que é universal neste campo, na medida em que se trata de uma idéia acolhida por quase todas as nações do mundo, ainda que exista uma grande discórdia acerca do escopo apropriado da ação e responsabilidade governamental, e da forma pela qual o social welfare pode ser alcançado em específicos sistemas econômicos e políticos.“ (17)

Da aplicação progressiva dos econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição do retrocesso social em matéria de direitos sociais. Para J.J. Gomes Canotilho: “O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado” (18).

Logo, em face do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que os Estados-partes (dentre eles o Brasil), no livre e pleno excercício de sua soberania, ratificaram, há que se observar o princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, o que, por si só, implica no princípio da proibição do retrocesso social.

Note-se que o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais apresenta uma peculiar sistemática de monitoramento e implementação dos direitos que contempla. (19) Essa sistemática inclui o mecanismo dos relatórios a serem encaminhados pelos Estados-partes. Os relatórios devem consignar as medidas legislativas, administrativas e judiciais adotadas pelo Estado-parte, no sentido de conferir observância aos direitos reconhecidos pelo Pacto. Devem ainda expressar os fatores e as dificuldades no processo de implementação das obrigações decorrentes do Pacto.

Diversamente do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não estabelece o mecanismo de comunicação inter-estatal e nem tampouco, mediante Protocolo Facultativo, permite a sistemática das petições individuais. Em suma, o mecanismo de proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais continua a se restringir à sistemática dos relatórios, embora a Declaração de Viena tenha recomendado a incorporação do direito de petição a esse Pacto, mediante a adoção de protocolo adicional(20).

Para fortalecer a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, a Conferência de Viena de 1993 recomendou ainda o exame de outros critérios, como a aplicação de um sistema de indicadores, para medir o progresso alcançado na realização dos direitos previstos no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Recomendou também que seja empreendido um esforço harmonizado, visando a garantir o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais nos planos nacional, regional e internacional.


Além do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, há que se mencionar o Protocolo de San Salvador, em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, que entrou em vigor em novembro de 1999. Tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, este tratado da OEA reforça os deveres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos direitos sociais, que devem ser aplicados progressivamente, sem recuos e retrocessos, para que se alcance sua plena efetividade. O Protocolo de San Salvador estabelece um amplo rol de direitos econômicos, sociais e culturais, compreendendo o direito ao trabalho, direitos sindicais, direito à saúde, direito à previdência social, direito `a educação, direito à cultura,…Este Protocolo acolhe (tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) a concepção de que cabe aos Estados investir o máximo dos recursos disponíveis para alcançar, progressivamente, a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. Este Protocolo permite o recurso ao direito de petição a instâncias internacionais para a defesa de dois dos direitos nele previstos – o direito à educação e o direitos sindicais.

Estes instrumentos internacionais acabaram por alargar as tarefas do Estado, incorporando fins econômico-sociais positivamente vinculantes das instâncias de regulação jurídica. A política deixa de ser concebida como um domínio juridicamente livre e desvinculado. Os domínios da política passam a sofrer limites, mas também imposições, por meio de um projeto material vinculativo. Surge verdadeira configuração normativa da atividade política. Por analogia, cabe citar as lições de J.J.Gomes Canotilho, que, ao se referir à Constituição, destaca que ela “tem sempre como tarefa a realidade: juridificar constitucionalmente esta tarefa ou abandoná-la à política, é o grande desafio. Todas as Constituições pretendem, implícita ou explicitamente, conformar o político.” (21) Isto é, os tratados internacionais apreciados têm como tarefa juridificar o domínio político, impondo deveres aos Estados e enunciando direitos essenciais à proteção da dignidade humana.

Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Desafios e Perspectivas na Ordem Contemporânea.

Por fim, há que se avaliar os principais obstáculos e perspectivas para a proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais à luz do contexto contemporâneo, marcado pelos processos de globalização econômica, integração regional e internacionalização dos direitos humanos. Neste sentido, destacam-se 6 (seis) desafios:

1- Consolidar, fortalecer e ampliar o processo de afirmação dos direitos econômicos, sociais e culturais como direitos humanos

Considerando a historicidade dos direitos humanos, ou, para adotar a terminologia de Norberto Bobbio, os direitos humanos enquanto “adquirido axiológico” estão em constante processo de elaboração e redefinição.

Se, tradicionalmente, a agenda de direitos humanos centrou-se na tutela de direitos civis e políticos, testemunha-se, atualmente, a ampliação desta agenda tradicional, que passa a incorporar novos direitos, com ênfase nos direitos econômicos, sociais e culturais.

A título ilustrativo, basta mencionar a iniciativa do Brasil, na sessão da Comissão de Direitos Humanos de 2000, de propor resolução que considerasse o acesso a medicamentos, no caso da Aids, como um direito humano. A Resolução foi aprovada por 52 países, com uma abstenção (EUA). Note-se que, em 2002, o Brasil apresentou nova proposta de resolução visando ao reconhecimento do acesso a medicamentos, no caso da tuberculose e malária, como direito humano, bem como propôs a criação de uma relatoria temática sobre a saúde – ambas as propostas foram aprovadas por unanimidade. Cabe ainda citar os debates contemporâneos em torno do direito ao desenvolvimento sustentável (como uma reivindicação dos países de 3o mundo), dos direitos reprodutivos (ineditamente enunciados na Conferência do Cairo, sobre População e Desenvolvimento, em 1994), dos direitos a acesso à tecnologia,….

Vale dizer, constatam-se efetivos avanços na expansão contínua do alcance conceitual de direitos humanos, que tem incorporado, crescentemente a pauta dos direitos econômicos, sociais e culturais.

No contexto pós 11 de setembro emerge o desafio de prosseguir no esforço de construção de um “Estado de Direito Internacional”, em uma arena que está por privilegiar o “Estado Polícia” no campo internacional, fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança internacional. O maior desafio contemporâneo, como afirma Paulo Sérgio Pinheiro, é evitar a Neo Guerra Fria, tendente a conduzir ao perigoso “retorno às polaridades, definidas pelas noções de terrorismo e pelos métodos para combatê-lo” (22) O risco é que a luta contra o terror comprometa o aparato civilizatório de direitos, liberdades e garantias, sob o clamor de segurança máxima.


Neste cenário, é fundamental consolidar, fortalecer e ampliar o processo de afirmação dos direitos econômicos, sociais e culturais como direitos humanos.

2- Criar políticas específicas para a tutela dos direitos econômicos, sociais e culturais mediante a especificação de sujeitos de direitos

A efetiva proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas (ex: a adoção de ações afirmativas em favor de grupos socialmente vulneráveis).

Somando-se ao processo de expansão dos direitos humanos, vislumbra-se o processo de identificação de novos sujeitos de direito, bem como a criação de tutela jurídica específica no plano internacional.

Como já mencionado, a partir da Declaração Universal de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados `a proteção de direitos fundamentais.

A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia sido orientada para o extermínio), com base na igualdade formal. A título de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração de 1948, bem como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância pautada na destruição do “outro”, em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou religião.

Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Transita-se do paradigma do homem, ocidental, adulto, heterossexual e dono de um patrimônio para a visibilidade de novos sujeitos de direitos.

Neste cenário as mulheres, as crianças, a população afro-descendente, os migrantes, as pessoas portadoras de deficiência, dentre outras categorias vulneráveis devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. Vislumbra-se o processo da especificação do sujeito de direito, no qual o sujeito passa a ser visto em sua especificidade e concreticidade (ex: protege-se as mulheres, as crianças, os grupos étnicos minoritários, os povos indígenas, os refugiados,…).

Considerando os processos de “feminização” e “etnicização” da pobreza, percebe-se que as maiores vítimas de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais são as mulheres e as populações afro-descendentes. Daí a necessidade de adoção, ao lado das políticas universalistas, de políticas específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Assegurar a participação da sociedade civil no processo de elaboração dos relatórios previstos no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

O processo de elaboração de relatórios previstos no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais pode significar um especial momento para a produção de um consistente diagnóstico a respeito do regime de proteção destes direitos no país. Este diagnóstico será um instrumento crucial para o direcionamento e o planejamento de ações e políticas públicas no campo dos direitos humanos.

Por isso, a produção de relatórios é uma oportunidade privilegiada para que os Estados dialoguem com a sociedade civil, assegurando sua ativa participação, mediante críticas, propostas e recomendações.

A elaboração de relatórios paralelos ou relatórios “sombras” (shadow reports) pela sociedade civil tem sido também capaz de democratizar, ampliar e qualificar o debate sobre os relatórios. No caso brasileiro, cite-se, a título de exemplo, o relatório paralelo acerca do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

O processo de elaboração de relatórios tem ainda fomentado a sistematização de dados e estatísticas sobre direitos humanos, bem como tem estimulado a criação de banco de dados sobre direitos humanos. Hoje, no Brasil, discute-se, inclusive a criação de relatores temáticos nacionais (ex: para o tema da tortura; violência contra a mulher; direito à moradia;…).

Assegurar a visita de relatores especiais sobre temas afetos aos direitos econômicos, sociais e culturais.

As relatorias temáticas (sejam da ONU ou da OEA) constituem um eficaz meio de catalizar as atenções e dar visibilidade a determinada violação de direitos humanos, bem como de propor recomendações.


Mais que simbolizar um diagnóstico sobre a situação dos direitos humanos em determinado país, a maior contribuição da atuação dos relatores, na elaboração de relatórios, está em estes servirem de instrumento para obtenção de avanços internos no regime de proteção dos direitos humanos em determinado país. A respeito, vide o positivo impacto da visita no Brasil do relator da ONU para a Tortura, em 2000. Adicione-se ainda o impacto da visita do relator sobre o direito à alimentação no Brasil, em 2002.

Adotar um Protocolo Faculativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que introduza o sistema de petição para a tutela dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como fomente a elaboração de indicadores técnico-científicos para avaliar o cumprimento e observância desses direitos.

Como recomendou a Declaração de Viena de 1993, é fundamental a adoção de tais medidas para assegurar a maior justiciabilidade e exigibilidade aos direitos econômicos, sociais e culturais.

No sistema global, como já assinalado, só há a previsão de relatórios. Enquanto que no sistema regional interamericano, há a previsão do sistema de petições à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para a denúncia de violação dos direitos à educação e sindicais, enunciados no Protocolo de San Salvador. Além de instituir a sistemática de petição no âmbito global, é essencial otimizar o uso deste mecanismo regional.

Percebe-se a potencialidade da litigância internacional em permitir avanços internos no regime de proteção dos direitos humanos. Esta é a maior contribuição que o uso do sistema internacional de proteção pode oferecer: propiciar progressos e avanços internos na proteção dos direitos humanos em um determinado Estado.

A incorporação da sistemática de petição individual, ademais, é reflexo do processo de reconhecimento de novos atores na ordem internacional, com a conseqüente democratização dos instrumentos internacionais.

Se os Estados foram ao longo de muito tempo os protagonistas centrais da ordem internacional, vive-se hoje a emergência de novos atores internacionais, como as organizações internacionais, os blocos regionais econômicos, os indivíduos e a sociedade civil internacional (ex: organizações não governamentais internacionais).

O surgimento de novos atores internacionais demanda a democratização do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A título de exemplo, merece destaque o Protocolo n.11 do sistema regional europeu, que permitiu o acesso direto do indivíduo à Corte Européia de Direitos Humanos. Acrescente-se ainda a recente aprovação do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, de 1999, que incorpora a sistemática de petição individual. Neste mesmo sentido, cabe menção ao projeto de Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que, do mesmo modo, introduz o direito de petição individual.

Contudo, vale ressaltar a resistência de muitos Estados em admitir a democratização do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, especialmente no que tange à aceitação da sistemática de petição individual. Esta sistemática cristaliza a capacidade processual do indivíduo no plano internacional, “constituindo um mecanismo de proteção de marcante significação, além de conquista de transcendência histórica”, como leciona Antônio Augusto Cançado Trindade(23).

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    é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).

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