Propriedade x bem cultural

Os paradoxos da proteção à Propriedade Intelectual

Autor

  • Aires J. Rover

    é mestre e doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) professor pesquisador e autor da obra "Informática no Direito - Inteligência Artificial" (Juruá 2001).

24 de agosto de 2002, 16h19

Os avanços das telecomunicações e da informática nos últimos anos revolucionaram a sociedade contemporânea, criaram novos padrões sociais, moldaram novos comportamentos, redirecionaram a economia e deram um impulso definitivo à globalização. Estas transformações foram tão grandes e profundas que passamos a denominar a atual época como a Era da Informação ou mesmo, do conhecimento.

Numa sociedade onde a informação assume papel de destaque tanto para o desenvolvimento econômico como social e cultural, a Propriedade Intelectual, particularmente o chamado direito autoral, ganha uma importância nunca antes vista. Considerada o produto mais valioso e essencial dentro desta sociedade acaba por levantar em torno de si as mais importantes discussões.

Numa sociedade complexa a auto-observação é uma operação que, de um lado, é um produto do sistema, na medida em que constitui uma operação deste e, de outro lado, um pressuposto da auto-organização do sistema, na medida em que influi no desenvolvimento posterior desta. Esta é a condição constitutiva paradoxal dos sistemas sociais, na medida em que estes sistemas usam seus conflitos e diferenças (sistema/ambiente) para se constituírem enquanto sistema. Descrever o que é, indicando aquilo que ele não é. Isto é, auto-observação a partir dos paradoxos (ROCHA, 1997).

Em outros termos podemos falar em modernização reflexiva, na medida em que a sociedade toma a si própria como tema de análise. Isto porque o próprio processo de modernização transformou-se em um problema por causa das instabilidades e riscos que as novidades tecnológicas e organizacionais provocam. A modernização é reflexiva num duplo sentido, porque persiste na auto-aplicação dos seus próprios princípios e suas próprias lógicas, como também por causa da reflexão crítica e científica que a própria modernidade procura fazer hoje sobre si mesma: O que distingue a “modernidade reflexiva” e a torna problemática é o fato de que devemos encontrar respostas radicais aos desafios e aos riscos produzidos pela própria modernidade. Os desafios poderão ser vencidos se conseguirmos produzir mais e melhores tecnologias, mais e melhor desenvolvimento econômico, mais e melhor diferenciação funcional (BECK, 21/03/2002).

Naturalmente, quanto mais e melhores soluções (auto-organização), novos problemas e limites se impõem, sem contar que são riscos globais. Para resolvê-los, paradoxalmente, devemos libertar-nos das certezas que aquelas soluções anteriores nos impuseram, numa viagem sem fim. Ora, o esclarecimento tem como objetivo o desencantamento, a libertação do homem dos mitos criados e a substituição da fantasia pelo conhecimento dos fatos. Contudo, a fim de realizar esta tarefa a razão substitui a superstição e ergue seu domínio sobre a natureza utilizando-se da técnica, que em última análise, legitima a exploração (ADORNO, 1986). É possível eliminar tamanho paradoxo, que invade todas as instâncias da vida humana?

A verdade é que nem é possível como não é desejável, pois eliminando essas contradições sistêmicas, estaríamos nos desfazendo da possibilidade de superá-las. Basicamente, eis o pano de fundo desta discussão.

Hoje se vislumbra a possibilidade histórica de mudança do processo civilizatório, com a concreta substituição da maioria do trabalho mecânico por trabalho automático executado por máquinas: a máquina universal. Este conceito vai além do sentido epistemológico de tornar todo pensamento mensurável, mesmo que pressuponha um conhecimento além do formalismo e altamente matematizado e relacional.

Ciência e tecnologia aceleram cada vez mais essas mudanças.

O desenvolvimento dessas tecnologias e em especial, a informática, nas últimas décadas tem dado à sociedade poder de ação antes jamais pensado e geralmente depositado em monopólios, em sua grande maioria estatais. Com o aumento das demandas e pressões da sociedade de massas e da economia de mercado, o próprio Estado redefine seu papel, tornando-se essencialmente regulador e tendo a sociedade como fonte e partícipe nesse processo em que o Direito é o seu grande instrumento. Além disso, diversos controles estão sendo assumidos, em parte ou no todo e nas mais diversas áreas, por organismos da sociedade. Isso exige um alto grau de troca de informação e conhecimento (ROVER, 2001).

As mudanças ou a necessidade de mudanças e seus riscos naturais geram desconforto, pânico. Lembremos a passagem do mundo agrícola para o industrial.

Nem por isto devemos ficar irremediavelmente pessimistas: É sabido que nossa civilização cientifica e tecnicista, e mesmo toda a humanidade encontra-se à beira de uma catástrofe (OHSAWA, 1977, p 10). Os radicalismos obscurecem a visão. Como GRAMSCI, devemos ser pessimistas na teoria, mas otimistas na prática, procurando adotar posturas que permitam uma compreensão mais alargada do mundo.


Todo este contexto de mudanças está vinculado às mudanças na própria natureza da informação, na qual a desordem é inerente e somente a partir dela surgem novas ordens: Toda organização viva comporta desorganização e desordens que combate, tolera, utiliza (MORIN, s.d, p 301). Dessa forma, eliminar a desordem, pura e simplesmente, significaria eliminar a vida. O mesmo se disse dos paradoxos.

Estas transformações provocadas pela revolução tecnológica, aliadas às próprias características da informação, põem em discussão um dos principais objetivos da Propriedade Intelectual: o equilíbrio entre os interesses particulares dos produtores e o interesse público, da sociedade. A Propriedade Intelectual sempre esteve apoiada na idéia de que aquele que cria uma obra deve receber um retorno sobre o seu esforço e dedicação, como incentivo para novas criações e a manutenção do desenvolvimento intelectual. Em contrapartida existe o interesse de que este conhecimento produzido seja divulgado e atinja o maior número de pessoas possíveis, garantindo-se assim que a sociedade se atualize.

Parece razoável afirmar que é do interesse geral que haja a maior liberdade de acesso à informação possível, e de alguma forma, as características acima expostas, apontam para esta direção. Do ponto de vista sistêmico e tomando-se a realidade atual de transição isto poderá significar a redefinição pela não proteção da propriedade intelectual em si.

Fica evidente, portanto, o conflito de interesses fundamentais que se põe à sociedade. Conflitos de direitos humanos fundamentais. Assim, o desafio é encontrar uma solução razoável para preservar aquela liberdade, garantindo o pagamento devido a quem produz. Haveria outras formas?

Tradicionalmente, a questão de Propriedade Intelectual, sempre foi vista como uma questão essencialmente jurídica. Neste sentido, ultimamente, a propriedade intelectual, nunca foi tão protegida: novos produtos ganharam proteção, prazos foram estendidos e as penas para os infratores aumentadas. Contudo, estas atitudes parecem não ter sido eficazes.

Na prática, a proteção dos Direitos Autorais continuou deixando os interessados preocupados. A simples abordagem jurídica do problema, desconsiderando a influência de outros fatores, não foi capaz de solucionar o problema. Na verdade, a maior complexidade da legislação acabou dificultando a implantação de novos modelos empresariais.

Efetivamente, existe uma necessidade de se produzir soluções jurídicas, para o presente e futuro. Porém, decidir para o futuro é praticamente um lugar que não existe, pois as leis aprisionam o tempo, refletindo determinados fatos do passado, que não conseguem prever a complexidade que este futuro trará consigo (AVANCINI, 2002).

Como não é possível fugir desta determinação sistêmica, resta ao Direito, diante da complexidade sempre crescente, jurisdicizar e decidir, dando especial atenção à aplicação dos princípios gerais. Na busca da melhor solução, há que se enfrentar os paradoxos da sociedade atual, e aqui a tarefa de interpretação das normas passa a ter fundamental importância.

Por outro lado, os princípios balizadores para a tarefa acima, existem no sistema porque não existem no sistema (ROCHA, 1997). Eles estão em construção permanente, num processo em que cada decisão é pressuposto de uma decisão posterior, tornando possível que novas e criativas diferenças possam ser introduzidas, mantida a coerência interna do sistema.

A propriedade intelectual, como todo produto do trabalho humano, se modifica no tempo e na história e por eles é determinada. O Direito deve construir uma resposta coerente e razoável aos problemas que se colocam a partir destas mudanças. Contudo, se sua eficácia não se realiza hoje, também outros fatores estão sendo negligenciados ou ignorados.

A concessão de Direitos Autorais, além de todos os aspectos morais e personalíssimos envolvidos, é um meio de garantir ao autor um monopólio sobre a utilização da sua obra, podendo através da sua comercialização obter um retorno financeiro. Ou seja, o retorno para o trabalho empenhado pelo autor advém diretamente da obra. Dessa forma, a proteção da obra constitui uma necessidade imposta pelo próprio mercado. Contudo, neste mesmo mercado, o consumidor ou usuário, só pagaria por aquilo que considerasse justo (necessidade de consumo + capacidade de pagamento), tivesse qualidade e não pudesse encontrar gratuitamente. Novamente o paradoxo.

Ora, uma alternativa que o próprio mercado encontrou para superar esta possibilidade foi valorizar outras formas de retorno financeiro para os produtores intelectuais, reduzindo em muito a necessidade de proteção desta propriedade.

Esta afirmação só é possível num contexto de mudança do sistema econômico. Nele o papel da propriedade muda radicalmente e essa mudança altera a sociedade e o próprio capitalismo. Isso porque a idéia básica do capitalismo está na existência de mercados onde há oferta e troca de mercadorias, com a transferência da propriedade das mesmas. Contudo, para as empresas a posse do capital físico está se tornando marginal ao processo econômico e até desnecessário e incômodo. As empresa já estão em transição, livrando-se de seu lastro físico: reduzindo estoques, terceirizando atividades, alugando prédios e equipamentos (RIFKIN, 2001). Em contraposição, agora a fonte da riqueza é o capital intelectual: conhecimentos estratégicos, marcas, patentes, conceitos, enfim, propriedade intelectual.


Eis o paradoxo novamente: propriedade X bem cultural.

Dessa forma, um dos elementos definidores dessa nova Era será a luta entre a esfera cultural e a esfera comercial; a cultural primando pela liberdade de acesso e a comercial buscando o controle sobre o acesso e o conteúdo dessa produção cultural, com intuito comercial. Evidentemente, estamos passando por um período de transição, de longo prazo, de um sistema baseado na produção industrial para uma produção cultural, em que o importante não é a propriedade do bem, mas o acesso a ele. A realização da utopia marxiana?

Neste contexto há abundância de bens culturais e intelectuais e diante disto a velha economia agoniza, baseada que é na defesa irracional da indústria cultural, em detrimento da cultura e dos verdadeiros produtores da cultura, os autores intelectuais.

Estamos vivendo um momento interessante em que a velha sociedade industrial, tendo tido dificuldade em assimilar os modelos no passado, hoje tem dificuldade em admitir a superação destes mesmos modelos. Como um exército de brancaleone às avessas (de estropiados nada tem) luta por uma causa muito acima de sua capacidade, mas sem perder as esperanças e a esperteza. Quem já não teve acesso às diversas cifras encomendadas ou produzidas pela indústria cultural demonstrando, cientificamente, as enormes perdas com a pirataria eletrônica. Ora, (…) qualquer estimativa de receitas perdidas para a pirataria digital não passa de fantasia da indústria. O mercado consumidor de bens digitais tem o tamanho que tem, não o tamanho que os fabricantes imaginam que teria (GUROVITZ, 2002, p. 34). Parece razoável afirmar que altas taxas de pirataria são, no mínimo, sinal de altos preços e indício de modelos de negócios equivocados.

Diante desta luta paradoxal, o mais importante é estar atento à defesa dos interesses gerais da liberdade na Internet (a censura nunca foi boa parceira) e da cultura (no que respeita aos direitos autorais). A tendência parece apontar para uma redefinição das limitações ao Direito Autoral e para o barateamento da utilização, em face massificação e dos baixos custos de distribuição. (PILATI, 2000, p 134).

Enfim, a propriedade intelectual não deve ser um valor absoluto. Abre-se hoje o caminho para a chamada pirataria legítima, em contraposição ao puro legalismo, que no mínimo esquece a história de luta e resistência a monopólios comerciais de diversos quilates, cegos à função social da propriedade e às inovações necessárias para a construção de modelos mais eficientes, e em conseqüência, mais justos.

O Direito deve, diante do paradoxo que se lhe coloca a defesa dos interesses particulares dos produtores de bens intelectuais em contraposição aos interesses da coletividade, passar por uma transformação que não pode estar muito distante da forma como vem solucionando os conflitos hodiernamente. Isto porque os paradoxos ao mesmo tempo em que trazem o problema, trazem a solução. O mesmo vale para os limites e soluções tecnológicas.

Em termos práticos, as soluções futuras, tanto jurídicas como tecnológicas, devem ter como base os valores mais profundos e legítimos da sociedade que ora se constrói, a partir dos quais não haja apenas alguns beneficiários por esta revolução, mas todos. A busca deste equilíbrio, a partir de princípios gerais do Direito e da sociedade, é o grande desafio que se coloca para a humanidade.

Evidentemente, há um movimento de inércia natural na evolução da sociedade em todos os âmbitos. A construção do futuro, portanto, é difícil, lenta e cheia de limitações. A partir desses conflitos gerais na sociedade é possível que a humanidade caminhe para a valorização de um agir muitas vezes esquecido e que no nosso entender, paira sobre os valores de liberdade e igualdade: a solidariedade.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida, 2ª ed.- Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1986.

BECK, Ulrich e ZOLO, Danilo. A sociedade global do risco. Tradução de Selvino José Assmann. Disponível em: . Acesso em: 21/03/2002.

GUROVITZ, Helio. Somos todos piratas. Exame, N 9, 2002, p. 34.

AVANCINI, Helenara Braga. O paradoxo da sociedade da informação e os limites dos direitos autorais. Dissertação, Curso de pos graduação em direito da Unisinos, 2002.

MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.

PILATI, Isaac. Direitos autorais e Internet. In: ROVER, Aires J. (org). Direito, sociedade e informática: limites e perspectives da vida digital. Florianópolis: Boiteux, 2000, p 127-134.

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. SP: Makron books, 2001.

ROCHA, Leonel Severo. Paradoxos da auto-observação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997.

ROVER, Aires J. Informática no direito: inteligência artificial, introdução aos sistemas especialistas legais. Curitiba: Juruá, 2001.

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    é mestre e doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor, pesquisador e autor da obra "Informática no Direito - Inteligência Artificial" (Juruá, 2001).

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