Hora de debater

Ministros participam de XIX Seminário Roma-Brasília no STJ

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22 de agosto de 2002, 13h03

As dificuldades da Justiça para cumprir eficazmente sua missão não estão restritas aos países em desenvolvimento. As falhas são visíveis também no Primeiro Mundo e, por isso, é necessário repensar o papel do Estado e da Justiça na sociedade. Essa foi a reflexão do presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal, ministro Nilson Naves, na abertura do XIX Seminário Roma-Brasília, nesta quinta-feira (22/8).

“Os acontecimentos de 11 de setembro, bem como os atos políticos dele decorrentes revelam uma grande verdade, verdade que é premência, premência que se chama vida: urge sejam repensadas as funções estatais, mormente a Justiça, entendida como instituição à qual incumbe garantir o Estado democrático de direito”, acrescentou.

Nilson Naves destacou que, no caso brasileiro, o Judiciário tem vários problemas, mas há grandes avanços que devem ser comemorados. Um deles, é o reconhecimento da opinião pública da credibilidade da Justiça, dados da pesquisa do Instituto Vox Populi, de final de 1998 e do Datafolha, de agosto de 2001.

“Isso é uma decorrência natural da nova Constituição Federal, cuja promulgação fortaleceu o Estado democrático, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e na internacional com a solução pacífica das controvérsias”, afirmou Nilson Naves.

O presidente do STJ disse que essa mudança constitucional abriu as portas do Judiciário para milhares de pessoas que antes não se atreviam a buscá-lo. Os dados do STJ provam isso: no primeiro ano de instalação do Tribunal, em 1989, os julgamentos chegaram a 3.711 processos. No ano passado, esse volume superou 198 mil processos. “A verdade é que nosso Judiciário, conquanto tenha muito caminho a percorrer rumo à efetivação do estatuído na Constituição, vem-se aperfeiçoando dia a dia, graças ao trabalho de equipes capazes de seminais pessoas espalhadas pelas três funções do Estado”.

O evento está acontecendo no auditório do STJ e as palestras e debates prosseguem até sábado (24/8). O tema escolhido para a 19ª edição do seminário é “Justiça, cortes internacionais e globalização”. O seminário já consta do calendário acadêmico e jurídico nacional e reunirá conferencistas internacionais, juristas e estudantes de Direito.

Neste ano, foram mais de 1.200 participantes inscritos. A palestra inaugural foi proferida pelo ministro José Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, com o tema “O acesso à Justiça”. Em seguida tem início os painéis que serão presididos pelos ministros do STJ.

Nos três dias do seminário serão realizados nove painéis. “Justiça não Judiciária”; “Cortes Internacionais e Globalização – A Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional”; “Acesso à Justiça e Jurisdições Especiais – A Justiça Eleitoral; Cortes Internacionais e Globalização”; “Cortes Internacionais – As Cortes de Direitos Humanos”; “Acesso à Justiça Jurisdições Especiais”; “Acesso à Justiça e Jurisdições Especiais e Justiça Não-Judiciária”; “Justiça e Dívida Externa” e “Justiça e Crise dos Três Poderes”.

O vice-presidente do STJ, ministro Edson Vidigal, fará o encerramento do evento no sábado. O evento tem a coordenação científica dos ministros do STJ, Milton Luiz Pereira, coordenador-geral da Justiça Federal e diretor do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Sálvio de Figueiredo, Fontes de Alencar, Ruy Rosado de Aguiar, Carlos Alberto Menezes Direito, e do professor Pierangelo Catalano, da Universidade de Roma Pierangelo Catalano e do vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Fernando Mathias de Souza.

Leia o discurso do ministro Nilson Naves:

“Seguindo tradição que se vem fortalecendo no correr dos anos, paramenta-se o Superior Tribunal de Justiça para acolher o Seminário Brasília, já na XIX edição Roma.

Assim o tem feito porque fortes os elos que unem o Brasil à pátria de Cícero e de Virgílio: dos latinos haurimos a cultura, em cujo bojo estavam insculpidos princípios jurídicos dos quais emanaram as fontes do Direito brasileiro; insculpida, também, estava a língua, herança maior, fator permanente dessa irmanação, pois, enquanto não se consumarem os séculos, aqui haverá alguém utilizando-se da “última flor do Lácio, inculta e bela”, com isso evocando imagens das nossas mais remotas raízes.

A tão fortes razões sobrepõe-se a relevância do tema que capitaneará o conclave. Expertos das duas nações estarão esquadrinhando os meandros da justiça à luz da conjuntura dos novos tempos, em que a globalização, marcante no dia-a-dia dos povos, impele os Estados à busca de ordenamentos jurídicos que os façam conviver em harmonia, resguardados os direitos individuais e a soberania nacional.


Não é de hoje, nem remonta a meros séculos a preocupação do homem com a justiça. Prende-se o fato às origens da raça humana, quando, ainda em estado embrionário de civilização, ajuntamentos que só em guerra instituíam e acatavam um chefe procediam, em tempo de paz, a julgamentos e condenações. Era a justiça, pujante, presente, atuante, regulando grupos que, embora desprovidos de um órgão capaz de formular preceitos e gerir negócios públicos, subsistiam mercê das asas protetoras da mesma justiça.

A propósito, emblemático se tornaria, tempo afora, o exemplo de Salomão. Interpelado por seu Deus, roga-lhe tão-só um coração entendido para julgar o povo, para discernir, prudentemente, entre o bem e o mal. Conquanto nomeado rei, sua extrema inquietação residia mais no julgar que no governar.

Não pecaria eu em afirmar, por conseguinte, que a justiça, tema central da filosofia de Platão e virtude cardeal na concepção aristotélica, foi, registrada, no curso da História,das funções estatais, a primeira a surgir como relevante e prestigiosa, quase divina.

O que é, afinal, justiça? Para Kelsen, nenhuma questão “foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão a Kant – meditaram tão profundamente”. E acrescenta: “O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade”.

Mesmo convictos de que a milenar pergunta continua sendo o maior enigma de todas as épocas, poderíamos, à luz de Kelsen, indagar: Seria a justiça a própria felicidade? Ou o caminho mais propício para alcançá-la? Como exercer a justiça para, então, mitigar a sede que dela tem o homem?

Senhoras e senhores, conseguíssemos nós entender o que é o bem, isto é, a essência da justiça sob a óptica grega, sem dúvida conseguiríamos dar a ela uma definição acabada, realizando façanha não atingida pelos expoentes da sabedoria antiga. Tarefa quiçá impossível, tanto mais no exíguo tempo reservado a este seminário, debrucemo-nos, então, sobre outra questão, de igual modo profunda e complexa: Não obstante seu status de função primaz do Estado, estaria a justiça, mormente nas últimas décadas, cumprindo sua missão a contento?

A conturbada ordem social de todo o mundo, da qual somos não só espectadores, mas quase sempre protagonistas, parece responder-nos negativamente. Exemplos temos a mancheias. Permitam-me buscar um, a princípio, em passado recente: chega até nós, cidadãos do século XXI, o horror das guerras do último século, como se vozes das indefesas vítimas clamassem neste momento por justiça. Bradem os céus de júbilo porquanto, motivada por tamanha ignomínia, proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, vislumbre de esperança num mundo em agonia.

Nos dias que correm, ainda a exemplo, atentados terroristas em larga escala, ações perversas do império do narcotráfico e ondas de seqüestro – a que se somam a delinqüência juvenil e o descaso reservado às camadas menos favorecidas das sociedades – são fatos incontestáveis, entre muitos, da convulsão que se alastra qual massa vulcânica incandescente. Ademais, segundo estimativas da ONU, existem cerca de 200 milhões de pessoas em todo o planeta, direta ou indiretamente, vitimadas pela escravidão. Vejam bem: o número é mais ou menos igual à população dos países lusófonos juntos.

A par dessa amostra, os acontecimentos do onze de setembro norte-americano, bem como os atos políticos dele decorrentes, tão conhecidos do seleto auditório, revelam uma grande verdade, verdade que é premência, premência que se chama vida: urge sejam repensadas as funções estatais, mormente a Justiça, entendida como instituição à qual incumbe garantir o Estado democrático de direito.

O que mais nos inquieta nessa conjuntura é a constatação de que a problemática não se restringe aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; marca presença também no Primeiro Mundo. Entretanto, para alívio nosso, não podemos, nem devemos, dobrar os sinos a finados pela morte da justiça, como o fez o indignado camponês florentino do fato narrado por Saramago no II Fórum Social, em Porto Alegre. Mil vezes não! A justiça vive! Creiamos tenha sido a imagem do Nobel português apenas retórica – impulso de um movimento por uma ordem mundial mais condizente com os anseios do povo.

Tanto vive a Justiça, embora nem sempre cumprindo eficazmente sua missão, que aí está a bem-sucedida experiência italiana. Quem não se recorda da Operazione Mani Pulite (Operação Mãos Limpas), levada a efeito há uma década? Empreitada hercúlea, se não desarraigou o crime organizado, com certeza o fragilizou em extremo e dignificou a justiça. Lamentável é que tenha custado vidas de homens como os ilustres e destemidos Giovanni Falcone e Paolo Borsellino. Nesse ponto, válido relembrar palavras do juiz Falcone ditas ao desembargador Marcus Faver, hoje presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ora reproduzidas: A magistratura de meu país precisa mostrar ao mundo que a Itália não é a máfia.


Quanto ao Judiciário nacional, repito indagação que fiz ao assumir a direção desta Corte: A quantas anda a nossa Justiça?

É bem provável que, na breve palavra de abertura do Brasília, não me seja adequado discorrer sobre os problemas quemagno Roma afligem nosso Judiciário – da teórica soberania à morosidade, pecha que lhe atiram em rosto sem piedade –, nem lhe fazer apologia em razão do novo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no qual o Brasil é posicionado na seção “Pessoas pobres, Justiça pobre”.

Não. Temos muito a comemorar. Em que pese às deficiências, pesquisas do Vox Populi, final de 1998, e do Datafolha, agosto de 2001, apontam o Judiciário, entre os Poderes da República, como o que desfruta de maior credibilidade perante a opinião pública.

Isso é uma decorrência natural da nova Constituição Federal, cuja promulgação fortaleceu o Estado democrático, assegurando “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e na internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Aberta, assim, a porta do Estado democrático de direito, alargava-se a porta do Judiciário para milhares de pessoas que antes não se atreviam a buscá-lo. Prova indiscutível são as estatísticas do Superior Tribunal de Justiça, criado pela mesma Carta. Em 1989, ano de sua instalação, julgou 3.711 feitos; em 2001, 198.613. E vejam que são números tão-só do Superior Tribunal. Mais se comprovaria o crescimento da demanda pela Justiça se examinados fossem os dados dos demais órgãos judiciais do País.

A verdade é que nosso Judiciário, conquanto tenha muito caminho a percorrer rumo à efetivação do estatuído na Constituição, vem-se aperfeiçoando dia a dia, graças ao trabalho de equipes capazes de seminais pessoas espalhadas pelas três funções do Estado.

Merece destaque nessa escalada a instituição dos juizados especiais federais, “a ousadia que deu certo”, fruto de lei oriunda das operosas mãos do Superior Tribunal, de mãos e mentes preocupadas com os jurisdicionados, para cuja aprovação concorreu o esforço dos três Poderes. A atuação dos promissores juizados, é inegável, tem levado as camadas humildes a procurar mais e mais a Justiça, tem desafogado os tribunais, com isso atenuando a chaga da morosidade e contribuindo para fortalecer a festejada credibilidade. Estaria tão pobre a Justiça brasileira como noticiou o relatório das Nações Unidas?

Há muito mais: a informatização dos procedimentos judiciais, presente em diversos níveis do Poder, os acordos celebrados, a reforma em andamento no Congresso Nacional e a mudança de mentalidade dos magistrados e das instituições, tudo tornando a Justiça forte e eficaz, atuante e prestante, condição imprescindível à consolidação do Estado democrático de direito e à consecução da cidadania sem exclusão.

Junto a tantos aspectos inerentes à justiça, há um outro que, nos dias atuais, traz preocupação a governantes de todo o mundo – a internacionalização do Direito e da própria justiça. No entender de Bobbio, “os direitos do homem só poderão ser verdadeiramente garantidos quando forem criados instrumentos adequados (…) também contra o Estado ao qual o indivíduo pertence…”.

A resposta a esse posicionamento do grande filósofo, parece-me, deve centrar-se no Tribunal Penal Internacional, fruto do Estatuto de Roma, instituição de caráter permanente destinada a processar e julgar os crimes de genocídio, os contra a humanidade, os de guerra e os de agressão internacional. Para o Itamaraty, isso “representa um marco na evolução do direito internacional contemporâneo, ajudando a ordenar e a normatizar os novos impulsos da sociedade mundial no campo da promoção e proteção dos direitos humanos e da segurança internacional”.

Assaltam-me, porém, preocupações sobre o tema deste encontro que, penso, são também as dos senhores, tais como: Prosperará iniciativa de tão visível acerto, à qual já aderiu o Brasil, se países de expressivo poder econômico não a acatarem? Dar-se-ia o caso de coexistirem harmonicamente os ditames da nova Corte e as constituições dos Estados-partes, preservados a soberania nacional e os direitos individuais?

Em momento propício ao debate sobre a justiça, visto que se vivem dias de globalização, concluo minha breve reflexão com pertinentes palavras do professor Benedito Hespanha: “Um dos aspectos mais relevantes da convivência pacífica entre países parceiros de Constituições diferentes é a tendência comunitarista de aproximação e de articulação do princípio universal de justiça, como prioridade no processo de integração.” Meus cumprimentos a todos e muito obrigado.”

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