Briga judicial

A competência para julgar crimes contra direitos humanos

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22 de agosto de 2002, 17h33

Pouca coisa é mais nefasta para o regime democrático do que se deixar ao arbítrio de alguém ou de alguma entidade – certamente com interesse jurídico, econômico, político, ou qualquer outro sobre determinada demanda judicial – o poder de provocar, concretamente, caso a caso, a fixação de competência de determinado juiz ou tribunal para julgar tal ou qual litígio judicial. Já se conheceu tal prática em alguns países, mas invariavelmente em época de ditadura.

A proposta de emenda constitucional de reforma do Poder Judiciário pretende, neste momento, alterar profundamente regra de competência jurisdicional referente a fatos relativos à violação de direitos humanos. A proposta, que à primeira vista vem sendo inadvertidamente saudada e que será apreciada pelo plenário do Senado, apresenta diversas impropriedades jurídicas e, na forma como foi encaminhada, contribuirá para maior morosidade e descrédito do Poder Judiciário, além de ferir normas pétreas da Constituição e consistir em desrespeito à Justiça Estadual e, também, à própria Justiça Federal.

Tal proposta permite a subtração da competência de julgamento da Justiça Estadual em causas relativas a direitos humanos onde o procurador-geral da República manifeste interesse, deslocando-se tal competência para a Justiça Federal, mesmo aquelas já em andamento.

Funcionaria a norma proposta, acaso acolhida pelo Senado, como possibilidade de verdadeira “avocatória”, pela União, de qualquer classe de processos propostos regularmente ante a Justiça dos estados em matéria de direitos humanos. Ora, desde que se conceituem “direitos humanos” como quaisquer direitos que digam respeito ao homem, todos os direitos são humanos (acaso existirá algum direito “inumano”?). Na realidade, o que se constata com certeza é que inexiste definição jurídica, mesmo imprecisa, sobre o que sejam direitos humanos.

É regra comezinha do Direito e garantia democrática elementar dos cidadãos a de que a fixação da competência e a distribuição da jurisdição entre juízos e tribunais devem ser feitas por lei, de forma objetiva, precisa e clara, sempre em caráter prévio, sem possibilidade de alteração fundada em postura subjetiva, muito menos do chefe do Ministério Público Federal, instituição que usualmente é parte no processo, na qualidade de autora das ações criminais. O princípio do juiz natural, inscrito na Constituição da República, nos artigos 5o, XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) e LIII (“ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente”), se consagra também pela determinabilidade, que consiste na prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais.

A norma proposta é vaga e imprecisa, como foi visto, quando se refere a “direitos humanos”, por não defini-los ou arrolá-los e, por isso mesmo, rompendo com a melhor tradição democrática de nossas cartas constitucionais, cria insegurança jurídica e, o que é mais grave, consagra juízos de exceção. O que mais assusta, portanto, não é a imprecisão da norma, senão o fato de que permite ela a alteração da competência do juízo até mesmo após o ajuizamento da demanda. Nesse passo, a norma entra no terreno da indecência jurídica.

Mesmo se desconsiderados os princípios democráticos que exigem a rejeição da proposta, também por motivos mais simples não mereceria ela aprovação. A Constituição Federal exige do magistrado que resida na comarca, o que bem demonstra o valor da presença do juiz no local dos fatos. A Justiça Federal não possui juízes senão em ainda poucas comarcas deste País, o que contribuiria para maior demora no julgamento dos processos a ela dirigidos por força do pretendido deslocamento de competência. Enquanto isso, a Justiça estadual mantém enorme capilaridade em todo o território nacional, tanto que assumiu, com reconhecida eficiência, a função eleitoral que é de natureza tipicamente federal. Demandas judiciais levadas a juízes federais distantes do local dos fatos acarretariam necessariamente a produção de provas, por cartas precatórias, pela Justiça Estadual. Ou seja, ficamos na mesma.

A imprecisão da norma levará, por outro lado, a uma sucessão infindável de conflitos de competência a abarrotar os tribunais superiores com procedimentos para dirimir disputas a respeito de qual juízo deverá apreciar qual matéria. Isso sem considerar a insegurança jurídica decorrente do fato de os jurisdicionados não saberem, previamente aos fatos levados a juízo, se determinado crime é, afinal, de competência estadual ou federal. Dependerá da vontade do Procurador.

O que está por trás da proposta, na realidade, é simplesmente a tentativa tupiniquim de “prestar contas” a entidades internacionais de proteção de direitos humanos, em face de tratados de que é signatário o País, mas de forma equivocada e com absoluto desapreço pela soberania nacional. A “prestação de contas”- admitamos – poderia ser feita a respeito da morosidade nos julgamentos. Mas também sobre o mérito das decisões é ir-se longe demais com o desamor pela soberania de nossa nação e com o desrespeito às nossas instituições judiciais.

No julgamento de policiais-militares envolvidos no caso de Eldorado dos Carajás, lá estavam presentes representantes do Ministério da Justiça e da Procuradoria-Geral da República. O que fariam lá, se o julgamento era da competência da Justiça estadual? Entrevistados, responderam que eventual absolvição dos réus poderia acarretar penalização do Brasil por organismo internacional de proteção de direitos humanos. Exatamente nisso residia o motivo de suas presenças.

Vê-se, assim, uma grande pressão nacional e internacional para a condenação em determinados casos, sob a justificativa de que o Brasil deve isso aos organismos internacionais (sabe-se lá por força de qual tratado!) sob pena de ser penalizado. Quem saberá afinal, senão os jurados e quem conhece os autos, se há provas para a condenação? Organismos internacionais?

Ora, assim colocadas as coisas, não se estará diante de julgamentos minimamente justos, pois pretende-se que os jurados, ao invés de julgar, nada mais façam do que declarar uma condenação previamente estabelecida e imposta por pressão externa, independentemente do exame acurado das provas.

Os julgamentos pelo tribunal do júri, no Brasil, têm previsão constitucional e a seu respeito possuem as partes inúmeros mecanismos para rejeitar jurados impedidos ou suspeitos, inidôneos ou previamente comprometidos. O Judiciário brasileiro é uma das expressões de um Estado soberano, que julga com base em provas colhidas sob regras processuais, e que, sobre o mérito das decisões, respeitado o amplíssimo direito a recursos a instâncias superiores, nenhuma satisfação deve a organismos nacionais ou internacionais, sob pena de despir-se o País de parcela inegociável de sua soberania.

Com base nessa mesma postura autoritária, por um lado, e subserviente, por outro, tramita no Congresso Nacional emenda constitucional que, nesses casos, retira a competência para julgamento da Justiça dos estados e a confere à Justiça Federal, ao alvedrio da provocação do procurador-geral da República. Se não gostar tal autoridade da orientação jurídica ou filosófica ou de qualquer despacho do juiz estadual para quem for distribuído o processo, poderá provocar sua substituição por juiz federal, mesmo já estando o processo em vias de julgamento. Dizer-se disso um absurdo é algo muito tímido para conceituar tal situação, que é a essência do projeto em tela.

Como a proposta não deriva de demora nos julgamentos, porque a Justiça Federal ordinariamente vê-se com número muito maior de feitos para julgar, mas sim do próprio mérito das decisões judiciais, há nisso uma dupla afronta ao Judiciário nacional: 1a – a expressa convicção, contida na norma proposta, de que a Justiça estadual não tem condições para julgar tais casos, alegadamente por falta de isenção em face da proximidade ao poder político local (mas certamente porque não garante ela uma condenação apriorística, o que seria o sepultamento do direito e da justiça); 2a – o absurdo entendimento de que a Justiça Federal, para garantir a boa imagem do Brasil frente a organismos internacionais de proteção de direitos humanos, garantirá determinada quantidade de condenações que afastem qualquer fantasma da penalização de nosso País por organismos de proteção de direitos humanos, sucumbindo à pressão internacional, ou seja, participará de uma farsa para prestar contas a entidades estrangeiras, ferindo assim a soberania brasileira, a ética e o direito, renunciando à independência e à isenção de um poder que somente se legitima como tal enquanto estiver acima de contingências e interesses dessa natureza. A Justiça Federal brasileira, por sua tradição de idoneidade e independência, não merece essa pecha ultrajante.

Tribunais e juízos de exceção não existem somente quando instituídos para fim específico, em regimes ditatoriais e com julgamentos sob encomenda. Também quando instituídos – ou fixada sua competência, o que dá no mesmo – após os fatos que lhes são submetidos a julgamento.

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