Palavras em jogo

Garotinho é acusado de incitar preconceito por causa de religião

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21 de agosto de 2002, 10h32

O candidato à Presidência pelo PSB, Anthony Garotinho, está sendo acusado de cometer crimes de incitação de preconceito e escárnio, em função de crença religiosa, e injúria. A representação foi encaminhada ao Ministério Público de São Paulo por causa de declarações do candidato em entrevista ao telejornal Bom Dia Brasil, da TV Globo.

De acordo com a ONG Sociedade da Terra Redonda e outras organizações, ele afirmou que “o homem afastado de Deus acaba se tornando violento, acaba praticando toda a sorte de crimes”.

A frase de Garotinho segue o tom de outras declarações recentes, segundo a Ong. Em comício no Nordeste, Garotinho teria dito que é melhor “ser cristão do que ladrão”. Em Brasília, teria afirmado que a “ira de Deus” iria se abater sobre seus adversários e sobre todos os que o criticam.

Segundo Daniel Sottomaior, que pertence à STR e ao grupo Secularismo&Cidadania, a declaração de Garotinho atinge não só ateus e agnósticos, como também todas as pessoas não religiosas e ainda aquelas ligadas a religiões politeístas, panteístas ou animistas.

Leia a representação

Representação

Ao Excelentíssimo Procurador-Geral de Justiça, Luiz Antonio Guimarães Marrey.

Eu, Daniel Sottomaior Pereira, brasileiro, portador do RG xxxx, residente na capital de São Paulo na rua xxxx, xxxx, CEP xxxx, venho dar conhecimento da seguinte declaração pública do sr. Anthony Garotinho, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro e atual candidato à presidência da república:

“Defendo que o homem afastado de Deus acaba se tornando violento, acaba praticando toda sorte de crimes”. A afirmação faz parte de entrevista veiculada no telejornal da rede Globo Bom Dia Brasil, em julho deste ano. Sua íntegra, anexada a este documento, está disponível no site do programa (http://redeglobo3.globo.com/bomdiabrasil/materias.jsp?id=12221), assim como o videoteipe.

Considerando:

que a Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que “Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição” (art. II);

que a mesma Declaração estabelece que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, e que a declaração de Garotinho caracteriza um grupo de pessoas como indignas (violentos e criminosos);

que segundo o art. 3o da Constituição Federal, “constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”;

que o Art. 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 afirma que é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (redação dada pela Lei nº 9.459, de 13-05-1997);

que segundo o dicionário Michaelis da língua portuguesa, preconceito é “1 Conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos adequados. 2 Opinião ou sentimento desfavorável, concebido antecipadamente ou independente de experiência ou razão. 4 Social Atitude emocionalmente condicionada, baseada em crença, opinião ou generalização, determinando simpatia ou antipatia para com indivíduos ou grupos. P. de classe: atitudes discriminatórias incondicionadas contra pessoas de outra classe social. P. racial: manifestação hostil ou desprezo contra indivíduos ou povos de outras raças. P. religioso: intolerância manifesta contra indivíduos ou grupos que seguem outras religiões;

que segundo o site Direito&Justiça (www.dji.com.br), preconceito é “1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos – idéia preconcebida; 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo; 3. P. ext. Superstição, crendice – prejuízo; 4. P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.

que o art. 208 do Código Penal tipifica “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” e que o espírito da lei se destina a proteger todos os tipos de religiosidade (inclusive aqueles que não se identificam com uma divindade monoteísta identificada por Garotinho), assim como aqueles que não professam nenhuma religião;

que o art. 5o da CF prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e que o mesmo artigo afirma que são invioláveis “a honra e a imagem de todos os cidadãos é inviolável” e “a liberdade de consciência e de crença”;

que o Código Penal especifica em seu Art. 140 que: Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: § 3º – Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem;

que Heleno Cláudio Fragoso ensina que “nesses crimes cuida-se do respeito à própria personalidade e honra e do valor social e moral da pessoa, inerente à dignidade humana. Não se atribuem fatos à pessoa, mas vícios ou defeitos morais” (Lições de Direito Penal, Forense, 9ª edição, 1987, Parte Especial, Volume I, p.191.) e que esse crime tem a pena acrescida se cometido por meio que facilite sua divulgação;

que o Supremo Tribunal Federal, em memorável decisão, assentou não ser tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe (Relator, Ministro Mário Guimarães, julgamento da 1ª Turma, em 5.9.53, RECR 20127, ADJ, 20.4.53, p. 1201), e que portanto é no espírito dessa decisão que não se devem tolerar quaisquer outros tipos de preconceito;

que a mesma corte, em outro julgado, determinou que “a limitação à liberdade de imprensa, sobrepondo-se ao interesse individual, atende as necessidades superiores do Estado e da coletividade, dentro das exceções que o conceito de liberdade há de juridicamente suportar, como imperativo imanente ao procedimento humano, compatível ao convívio social. Essa limitação, entretanto, não o exerce a autoridade pública de forma arbitrária. A interdição de órgão de publicidade somente se justifica quando se demonstre o incitamento à subversão da ordem pública e social, ou a propaganda de guerra ou de preconceitos de raça ou de classe.” (Cf. RE25348/MG, julgado pela 1ª Turma, v. u., em 2.12.54, DJ de 5.11.54, p. 1998).

que o Tribunal De Justiça Do Estado Do Rio Grande Do Sul, pela Terceira Câmara Criminal, teve oportunidade de se manifestar, na Apelação Crime 695130484 – Porto Alegre, acerca do artigo 20 da Lei 7716, de 1989, com a redação dada pela Lei 8081/90, proferindo um julgamento histórico e de suprema importância, para as relações humanas, tendo participado da sessão, além do Relator, Desembargador Fernando Mottola, os Desembargadores José Eugênio Tedesco (presidente) e Aristides Pedroso de Albuquerque Neto. Neste processo, a Câmara deu provimento à apelação, por votação unânime, para condenar o réu – apelado, à pena de 2 anos de reclusão, com sursis por 4 anos, com fundamento no caput do citado artigo 20. Nesse rumoroso processo, o eminente promotor público ofereceu denúncia, imputando ao réu o crime descrito no artigo 20 do mencionado diploma legal, porque, ” de forma reiterada e sistemática, edita e distribui, vendendo-as ao público, obras de autores nacionais e estrangeiros, que abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias, procurando com isso incitar e induzir a discriminação racial, semeando sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica.”

que a declaração de Garotinho atingiu todas as pessoas pouco religiosas, todas aquelas ligadas a outras religiões não judaico-cristãs (e que portanto estão ligadas a outras divindades, inclusive as de sistemas politeístas e animistas) e também as não religiosas, e incitou a sentimentos de desprezo e preconceito contra elas;

que a identificação de raças ou posições religioso-filosóficas com o crime e a violência é eminente característica de doutrinas nazistas (cujos símbolos têm divulgação proibida pela Lei nº 9459).

Que para quaisquer fins a que se destinasse tal declaração ela peca não apenas ao não apresentar dados factuais, números concretos e informações precisas que garantam a procedência do que é meramente dito, mas, também, revela uma posição de tal modo tendenciosa e de intenções dubitáveis que termina por acusar injustamente, injuriar, levantar falso testemunho, ofender, discriminar e incitar ao preconceito, contra os citados, ditos “afastados de Deus”, no que quer essa afirmação queira dizer, o que nem mesmo é claro, por ligar-lhes, todos, à violência e ao crime; quando não se há qualquer referência científica que comprove tal dito e sirva de argumento em seu favor.

Antes, o sentimento religioso e a profissão de fé, inclusive dogmática, da imensa parte de nossa população, reflete-se também entre os irascíveis e os criminosos de todas as espécies, e mesmo a história da humanidade demonstra com nomes, datas e lugares, e os exemplos são muitos e dos mais variados, que dogmatismo em todas as formas, doutrinas religiosas e sentimentos fervorosos de crença ligam-se direta ou indiretamente, por meio de pessoas e grupos, mesmo usados como “pano de fundo”, a violentos conflitos regionais, nacionais e internacionais, individuais e coletivos, até armados;

Que o espírito da Lei nº 9459 é o de alargar significativamente o alcance da Lei nº 7.716, e que, portanto, visa proteger não somente os sentimentos religiosos como qualquer posição em relação à religião;

que Leon Frejda Szklarowsky, advogado e consultor jurídico em Brasília, subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, editor da Revista Jurídica “Consulex” afirma em Crimes de Racismo (http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=169): “os crimes oriundos de discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional são dolosos”…”entretanto, se qualquer desses crimes for praticado, por meio de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena é agravada … Praticar o crime é realizá-lo, por si mesmo. O próprio agente comete-o, diretamente. Induzir ou incitar são figuras conhecidas. O Código Penal contempla essas figuras. Induzir é persuadir, aconselhar, argumentar, pressupõe a iniciativa à prática e pode fazer-se por qualquer meio. Incitar é instigar, provocar, excitar a pratica do crime, por qualquer meio ou de qualquer forma, sem necessidade de sê-lo pelos meios de comunicação social ou de publicação.

O crime é formal, independe do resultado ou da conseqüência da incitação e equipara-se à própria prática”; “a liberdade, no exteriorizar o pensamento, independentemente de censura, esbarra no supremo princípio constitucional da igualdade, que é o ponto maior da construção democrática, e vê-se reforçada pelas balizas estruturais da Constituição que manda punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e a prática do racismo que constitui crime inafiançável, punido com pena de reclusão”; “por ser um País imigratório, que forjou sua nação e o povo, pelo amálgama de povos, os mais diversos, de etnias, procedência, credos, cor e religião distintos, os direitos e garantias fundamentais de brasileiros e estrangeiros mereceram do constituinte extremo apreço, desde o despertar da República”;

que o Desembargador José Eugênio Tedesco, presidente e revisor da Lei 7716, conclui que é “inaceitável se deixe de punir a manifestação de opinião, quando transparece evidente e cristalina a intenção de discriminar raça, credo, segmento social ou nacional”;

que os tribunais e os legisladores têm estado cada vez mais atentos aos preconceitos de raça, e que essa tendência de valorização da civilidade e da cidadania também implica rigor na apuração de todos os tipos de preconceito;

peço as providências cabíveis nos termos da lei.

São Paulo, 07 de agosto de 2002.

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