Nova era

Nova era nas relações civis: o novo Código Civil e a duplicata digital

Autor

  • Rodney de Castro Peixoto

    é advogado especialista em Tecnologia da Informação consultor de empresas de Internet autor do livro "O Comércio Eletrônico e os Contratos" (Forense 2001) e professor do IPGA - Instituto de Pós-Graduação Avançada em Tecnologia e Negócios.

21 de agosto de 2002, 12h44

Finalmente, o Novo Código Civil.

A Lei nº 10.406, promulgada em 10 de janeiro de 2002, entrará em vigor a partir de 11 de Janeiro de 2003, trazendo mudanças em vários pontos do ordenamento jurídico relativo a atos civis em território brasileiro.

O diploma tem por característica a unificação do direito privado brasileiro, uma vez que abrange, além de matéria de ordem civil propriamente dita, matéria de direito comercial. Revoga expressamente a Lei nº 3.071/16 (Código Civil) e a Parte Primeira da Lei nº 556, de 1850 (Código Comercial), que versa sobre o “Comércio em Geral“.

Foi batizada “Do Direito da Empresa” a parte que estipula as normas relativas ao comércio.

Com a atualização da nomenclatura e adoção expressa da teoria da empresa, realidade fática indiscutível após a evolução das relações comerciais brasileiras, os dispositivos do Livro II da Lei nº 10.406/02 corrigem a rota da matéria jurídica comercial, em substituição ao entendimento vigente na época do Império, calcado no Code de Commerce da França, onde vigorou a teoria dos atos de comércio.

Configurada nos artigos 632 e 633 do Código Francês de 1807, a teoria dos atos de comércio adstringe o comerciante às práticas elencadas no texto legal, vale dizer, comerciante vem a ser aquele que pratica atos de comércio dispostos na lei como tal. Impossível, portanto, coadunar-se a teoria dos atos de comércio com o processo de desenvolvimento verificado desde então, caindo por terra a limitação taxativa das práticas comerciais dado a dinâmica empresarial verificada através dos tempos.

Em 1942 foi promulgado o Código Civil Italiano, dispondo com força de lei a teoria da empresa, formulada a partir da observação do panorama evolutivo do direito comercial. Segundo esta teoria, atividade comercial é aquela que visa a obtenção de lucro mediante a organização da força de trabalho, capital e matéria-prima, produzindo e circulando bens e serviços. Este pensamento teórico gradativamente tomou vulto entre juristas dos países participantes do sistema jurídico legalista.

A partir da prevalência desta teoria entre os doutrinadores, a figura do comerciante passa a ser melhor traduzida pela palavra empresário.

Temos, assim, a definição de empresário agora verificada em norma brasileira, no art. 966 da Lei nº 10.406/02:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços.

O Código Comercial Italiano de 1942 recebeu a marca de promover a unificação legislativa de matérias de direito privado, o que acaba de ser efetivado no Brasil com o emergente Código Civil.

Apesar do nosso novo diploma civilista não estar imune a questionamentos e críticas, caminhou bem o legislador ao promover esta unificação entre matérias de direito privado, visto que não pretendeu substituir por completo o conjunto normativo comercial, mas atualizar suas diretrizes com o entendimento vigente no Século XXI. Definindo e regrando a empresa, nada mais acertado que a extensão desse regramento aos principais elementos caracterizadores da prática empresarial. Assim, seu Título VIII é chamado “Dos Títulos de Crédito“, e o art. 887 dispõe sua definição :

Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeitos quando preencha os requisitos da lei.

Em contínuo, temos a nova disciplina geral dos títulos de crédito brasileiros, também pontuada de acertos.

Dentre os acertos, destacamos aquele que dá título a este texto, vale dizer, reconhece a duplicata digital.

Como definição do termo duplicata digital, temos :

A duplicata digital vem a ser o título de crédito representativo de um contrato de compra e venda ou prestação de serviços não aportado em papel, ou seja, desmaterializado. No ato do lançamento da duplicata, o comerciante não precisa elaborar materialmente o título representativo de seu crédito, desde que seja usuário de serviços de telecomunicações e informática bancária.” (1)

Título de crédito de origem nacional, a duplicata surgiu da observação do art. 219 do Código Comercial de 1850, onde se verifica a necessidade de apresentação “por duplicado” da fatura de mercadorias vendidas. Inicialmente instituída para fins de controle de tributos, a duplicata ganha regulamento próprio em 1968, com a promulgação da Lei nº 5.474, complementada pelo Decreto-Lei 436/69.

A duplicata é o título de crédito representativo de ato de compra e venda mercantil, ou de prestação de serviços.

É de clara constatação o fato do comércio possuir uma natureza dinâmica, que busca novas formas de se estabelecer e existir, absorvendo as inovações surgidas com rapidez e pioneirismo. A tecnologia da informação trouxe ao comércio mecanismos possibilitadores de crescimento e aprimoramento.

A convergência de métodos produtivos e empresariais ocorreu de maneira eficaz no segmento bancário. A informatização dos registros de crédito mercantil é um fato, e esta convergência digital deu origem ao fenômeno de desmaterialização dos títulos de crédito. Este movimento teve início na França (Lettre de Change-relevé), e posteriormente na Alemanha (LastschriHuerrehr), visando vantagens operacionais e redução de custos. Já na década de 70, a França substituiu por completo o papel na emissão e circulação de títulos representativos de crédito.

O princípio da cartularidade se encontra em declínio, visto que a prática rotineira do comércio suprimiu sua exigência há tempos. É claro exemplo da importância dos costumes para a formatação de regramentos jurídicos, principalmente em matéria de comércio, com seu caráter cosmopolita e flexível.

Hoje, qualquer comerciante possuidor de uma conta corrente bancária está apto a promover o registro e cobrança de seus créditos de maneira digital. Esse afastamento do suporte físico em documentos representativos de crédito veio antes de regulamentação ordinária. Porém, a Lei nº 5.474/68 já emprestava condição para tal desmaterialização (opinião, cabe a ressalva, não unânime) sem obstar a execução do título, ao estabelecer o protesto por indicações do credor. Como evidencia o professor Fábio Ulhoa Coelho:

Com a desmaterialização do título de crédito, tornaram-se as indicações a forma mais comum de protesto. A duplicata, hoje em dia, não é documentada em meio papel. O registro dos elementos que a caracterizam é feito exclusivamente em meio magnético e assim são enviados ao banco, para fins de desconto, caução ou cobrança.” (2)

A regulamentação verificada no novo diploma civil nada mais é do que a constatação deste entendimento, com o alinhamento da norma aos padrões comerciais praticados hodiernamente.

No art. 889 da Lei nº 10.406/02 :

Art. 889. Deve o título de crédito conter a data de emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.

§ 1º É à vista o título de crédito que não contenha indicação de vencimento.

§ 2º Considera-se lugar de emissão e pagamento, quando não indicado no título, o domicílio do emitente.

§ 3º O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo” (grifo nosso).

Embora o disposto no art. 889 do Novo Código Civil se refira a títulos de crédito, de maneira genérica, é na duplicata que presenciamos sua aplicabilidade mais importante e efetiva.

Pela primeira vez, “caracteres criados em computador“, vale dizer, bits e bytes, constam em um codex de tamanha importância e abrangência, o que caracteriza os novos rumos tomados pela sociedade com a utilização da tecnologia da informação.

A duplicata digital recebe previsão legal.

Nada muda no processamento da duplicata nas transações cotidianas. Todos os dias milhares de títulos são gerados em sistemas informáticos e cobrados da mesma maneira. Entretanto, merece destaque o fato da letra da lei abrigar, de maneira inédita e contundente, o título de crédito gerado digitalmente, pacificando a matéria entre os doutrinadores e cercando de eficácia o conjunto probatório nascente da utilização de dados unicamente lógicos para a formalização de título de crédito.

Acerto inconteste, o dispositivo em tela aprimora as relações comerciais e abre terreno para a modernização do conjunto normativo comercial, visto que a disciplina dos títulos de crédito merece revisão.

O Código Comercial Brasileiro, datado de 1850, não se coaduna com o atual estado de coisas do mundo globalizado, com toda a volatilidade do capital internacional, afetando mercados conectados.

O projeto que originou a Lei nº 10.406 é datado de 1975, e ainda, conjuntamente com sua promulgação, temos um conjunto de pareceres de juristas sobre seu teor, que será enviado para a Câmara dos Deputados como Projeto de Lei, referendando vários tópicos do novo código.

Assim, inicia-se nova era das relações civis com o advento do diploma, que traz lufadas de ar fresco ao nosso sistema civil-comercial, e renova as possibilidades de adequação da lei aos interesses humanos.

Notas de rodapé:

(1) O Comércio Eletrônico e os Contratos, Rodney de Castro Peixoto, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2001, pág. 73.

(2) Curso de Direito Comercial, Vol.1, Fábio Ulhoa Coelho, Ed. Saraiva, 3ª edição, 2000, págs. 453 e 454.

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    é advogado especialista em Tecnologia da Informação, consultor de empresas de Internet, autor do livro "O Comércio Eletrônico e os Contratos" (Forense, 2001) e professor do IPGA - Instituto de Pós-Graduação Avançada em Tecnologia e Negócios.

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