Punição exemplar

American Airlines condenada por usar detector de mentiras

Autor

10 de agosto de 2002, 10h42

A American Airlines foi condenada a pagar uma indenização de cerca de R$ 190 mil a uma trabalhadora brasileira. A Justiça entendeu que ela foi violentada em sua intimidade por conta de entrevistas periódicas mediante o uso de polígrafo (detector de mentiras).

A ex-agente de segurança da AA, Rita de Cássia Martinhão Irigoyen, foi defendida pelo advogado Luís Carlos Moro.

O Juiz Benedito Valentini, da 36ª Vara Trabalhista de São Paulo descartou os pedidos indenizatórios de ordem salarial, mas reconheceu ter havido dano moral nos “interrogatórios” feitos pela Companhia.

Para o juiz, a empresa norte-americana queria saber de sua então empregada informações que nada tinham a ver com suas funções – o que só servia para provocar constrangimentos. Em uma questão sobre consumo de drogas, disse o juiz, a American Airlines “mostra-se mais conservadora e exigente que a Sociedade e o Congresso Americano” e lembrou que “afamado presidente dos EUA, aclamado como um grande governante”, referindo-se a Bill Clinton que “acabou reconhecendo que fez uso de maconha em sua juventude, justificou que não tragou é bem da verdade, mas acabou sendo perdoado, numa clara demonstração de que a vida pregressa não serve para valoração e julgamento das pessoas”.

O juiz arbitrou a indenização no valor equivalente a 100 vezes o salário que a funcionária recebia à época da demissão, o que se aproxima de oito anos de trabalho na empresa. A punição, disse Valentini, deve ser exemplar.

O advogado Luís Carlos Moro, que também é presidente da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat), não concorda que o valor tenha sido alto. “Imagine se sucede o inverso: uma empresa brasileira viola a intimidade de um americano no território dos Estados Unidos: de quanto seria a indenização?”, perguntou.

Leia a íntegra da decisão

36ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO

TERMO DE AUDIÊNCIA

PROCESSO 735/2002

Aos 25 dias de junho de 2.002, às 17,01 horas, na sala de audiências desta Vara foram apregoados, por ordem do MM. Juiz Titular, Dr. BENEDITO VALENTINI, os litigantes:

RITA DE CÁSSIA MARTINHÃO IRIGOYEN, recte.; e

AMERICAN AIRLINES, INC, recda. Ausentes as partes.

Conciliação prejudicada.

Submetido o processo a julgamento, proferiu o Juízo a seguinte S E N T E N Ç A:

RITA DE CÁSSIA MARTINHÃO IRIGOYEN, qualificada na inicial, propõe a presente reclamação contra AMERICAN AIRLINES INC, alegando, em síntese, que foi admitida em 17/11/1995, registrada em 18/12/1995; que foi promovida a agente de segurança em 01/11/1996 e novamente em 01/07/1997; foi imotivadamente despedida em 13/02/2001; faz jus a diferenças salariais por força de desvio de função sofreu dano moral, sendo obrigada a se submeter ao polígrafo, respondendo as mais variadas perguntas, requerendo indenização compensatória. Pleiteia os títulos indicados na exordial. Deu à causa o valor de R$ 600.000,00.

Em audiência, a reclamante desistiu dos pedidos de adicional de insalubridade e periculosidade, o que restou homologado pelo Juízo face à concordância da reclamada (fl. 79). Registre-se que, quando ao adicional de insalubridade, em verdade a reclamante desistiu, também, do adicional de periculosidade.

Em resposta, afirma a reclamado, em suma, que a inicial é inepta; descabida a retificação da data de admissão; nega o desvio de função; nega e contesta a alegação de danos morais, dizendo ser indevida a indenização vindicada. Impugna os demais pedido e pede pela improcedência da reclamatória.

Documentos foram juntados.

Depoimento da recda. à fl. 79.

Testemunhas foram ouvidas (fls. 79/80).

Encerrada a instrução processual.

Réplica às fls. 140/148.

Relatados.

D E C I D E – S E

1 – DA INICIAL

A inicial preenche os requisitos do artigo 840 da CLT, possibilitou ampla defesa e permite o conhecimento pelo Juízo, estando plenamente apta.

2 – DA ADMISSÃO

Sustenta a reclamante que foi admitida em 17/11/1995, mas somente registrada em 18/12/1995, requerendo a retificação da CTPS.

A prova dos autos revela que, no período sem registro, a reclamante participou de curso ministrado pela reclamada, realizado nos EUA, com todas as despesas custeadas pela empresa. Não consta dos autos que no período em questão a reclamante tenha recebido salário ou tenha prestado serviços. Na esteira do contrato realidade, entendemos que a relação de emprego teve início com a efetiva prestação de serviços, o que se deu a partir da contratação e registro da obreira, ocorrida em 18/12/1995, pelo que improcedente o pedido de retificação da CTPS, assim como os demais pedidos conseqüentes.

3 – DESVIO DE FUNÇÃO


Não restou provado que a reclamante tenha sido promovida a Agente de Segurança em 19/08/1996, nos parecendo mais razoável a informação prestada pela testemunha da reclamada no sentido de que a simples conclusão do curso não implica, necessariamente, no desempenho das novas funções (fl. 80).

Quanto ao cargo de Supervisora de Segurança, temos que a testemunha de fl. 79, ouvida pela reclamante, asseverou que após o término do curso é que a obreira passou a exercer as funções.

Ocorre que o curso foi ministrado em março de 1.988 (fl. 69, doc. 75), circunstância que bem demonstra a inexistência do direito vindicado.

Ainda que assim não fosse, não há nos autos provas no sentido de que a reclamada possui pessoal organizado em carreira, hipótese que justificaria o pedido de diferenças salariais por suposto desvio de função.

Diga-se, por oportuno, que a legislação não estabelece que as promoções sejam acompanhadas de majoração de salário, fazendo parte do poder de direção da empresa decidir qual o valor que deve ser fixado para o salário, cabendo ao empregado aceitar ou não a promoção.

Improcedem, pois, os pedidos de diferenças salariais.

4 – DANO MORAL

Pretende a reclamante indenização por dano moral, visto que obrigada a realizar o teste de polígrafo, conhecido como detector de mentira.

A prática patronal restou comprovada nos autos, assim como as perguntas realizadas, cabendo ao Juízo a apreciação da questão jurídica.

Sedimentada a tese quanto à competência da Justiça do Trabalho para apreciação dos pleitos que envolvam dano moral, sendo oportuno transcrever decisão proferida pelo E. Tribunal Superior do Trabalho:

“DANO MORAL – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. É possível que o dano moral decorra da relação de trabalho, quando o empregador lesar o empregado em sua intimidade, honra e imagem (CF, art. 5º, V e X; CLT, art. 483, “a”, “b” e “e”), de forma que se encontra inserida na regra de competência preconizada pelo art. 114 da Carta de República a sua apreciação, conforme jurisprudência já pacificada desta Corte e do STF. Recurso de revista provido. IVES GANDRA MARTINS FILHO, MINISTRO-RELATOR – Brasília 20/02/2002. Número 706800 ANO: 2002 – PROC. NºTST-RR 706800/00.5 – 4ª TURMA.”

O consentimento da reclamante explica-se pelo temor reverencial, não descaracterizando, por si só, eventual ato ilícito do empregador, que justifique a condenação por dano moral.

Para obtenção do emprego a reclamante certamente foi submetida a diversos testes, participou de cursos, e foi observada pelos seus superiores, tanto que alcançou duas promoções.

A pesquisa sobre a vida pregressa da obreira, quando da admissão se mostra razoável, mormente quando contratada para o setor de segurança.

No entanto, uma vez contratada e iniciada a relação de emprego, entendemos que o poder investigatório do empregador deve, necessariamente, respeitar a intimidade, a vida privada e a imagem do empregado, pena de indiscutível dano moral.

De fato, o contrato de trabalho está alicerçado na confiança, dada a pessoalidade que o caracteriza, sendo intolerável qualquer desconfiança por parte do empregador, mormente quando sem motivo aparente.

Assim, entendemos que o empregador não pode, a pretexto de segurança, submeter os seus empregados a testes de polígrafo, denominado detector de mentira, para possivelmente apurar irregularidades ou, quem sabe, descobrir alguma nódoa no passado do trabalhador.

Ao contrário do que sustenta a defesa, a simples realização do teste constrange e intimida o empregado, gerando uma apreensão psicológica, bem como o medo quanto às perguntas, respostas e resultados.

De outra parte, o teste de polígrafo não é obrigatório nem mesmo para aqueles que se encontram sob investigação policial, ou seja, mesmo a autoridade policial encontra óbices para a utilização do aparelho, posto que assegurado a todos o direito de falar somente em Juízo, quanto maior não são os limites de sua utilização por uma empresa privada.

Olvidou a reclamada que ninguém é obrigado a responder sobre fatos que o possam incriminar, de forma que a simples realização do teste fere direito fundamental da pessoa, em conseqüência, do empregado.

Mas não é só.

A ilicitude alcança patamares inimagináveis quando constatamos que a empregada foi obrigada a responder, dentre outras, perguntas que dizem respeito, única e exclusivamente, à sua vida privada, irrelevantes e desconexos com os serviços executados.

Segundo a preposta, foram feitas as seguintes perguntas:

– Você reside em casa própria?

– Esteve hospitalizada nos últimos dez anos?

– Usa bebidas alcoólicas?

– Tem antecedentes de desonestidade?

– Cometeu violações de trânsito? Teve acidentes com veículo automotor? Foi suspensa em sua habilitação?


Pelos testemunhos constatamos que ainda foram formuladas as seguintes perguntas:

– Deve para alguém? Quem? Quanto?

– Você roubou qualquer propriedade do local onde trabalha?

– Desde seu último teste, usou quaisquer drogas ilegais?

– Permitiu que alguém violasse os procedimentos de seguro?

– Transportou qualquer droga ilegal em um avião?

– Vendeu algum bilhete de viagem de cortesia para obter ganho pessoal?

– Em qualquer emprego anterior, você roubou algo de valor maior de R$ 70,00?

– Você está ligada a qualquer pessoa envolvida em contrabando ou tráfico de drogas ilegais ou narcóticos?

– Durante sua entrevista anterior para entrar na American Airlines, você escondeu sua participação em algum ato ilegal?

– Você já participou de algum atividade subversiva?

Com a devida vênia, não poderia a reclamada inquirir a reclamante sobre sua vida privada, indagando se possui casa própria; se esteve hospitalizada nos últimos dez anos, ou seja, antes de ser admitida; se deve para alguém, etc., posto que fatos que somente à obreira dizem respeito, em nada interferindo em seu trabalho. Saliente-se, não restou demonstrado que essas informações podem revelar traços da personalidade da empregada importantes para a manutenção da segurança.

Outras perguntas dizem respeito à vida pregressa da obreira, algumas inquirindo sobre o tempo anterior à contratação, v.g., se “Durante sua entrevista anterior para entrar na American Airlines, você escondeu sua participação em algum ato ilegal?” e “Em qualquer emprego anterior, você roubou algo de valor maior de R$ 70,00?”, fatos notoriamente impertinentes e irrelevantes, eis que a reclamante não poderia ter sofrido qualquer tipo de sanção, servindo, apenas, para criar ressentimentos, temores, desconfianças, situação evidentemente vexatória e angustiante.

Temos outras sobre a prática de delitos, envolvimento em contrabando, tráfico de drogas, etc., que caracterizam indevida e ilícita investigação criminal, vedada por nosso ordenamento jurídico, que estabelece presunção de inocência como regra, não sendo possível a investigação sobre a vida privada da pessoa, senão por autoridade competente e sempre com a indicação dos motivos.

Resta, ainda, uma pergunta de cunho eminentemente político, (Você já participou de alguma atividade subversiva?), olvidando que muitos dos que hoje são os detentores do poder em nosso país, foram chamados de “subversivos” no passado, revelando a impertinência da indagação, face à amplitude de que se reveste.

Diga-se, ainda, que a reclamada, renomada empresa Norte Americana, mostra-se mais conservadora e exigente que a Sociedade e o Congresso Americano, posto que afamado presidente dos EUA, aclamado como um grande governante, acabou reconhecendo que fez uso de maconha em sua juventude, justificou que não tragou é bem da verdade, mas acabou sendo perdoado, numa clara demonstração de que a vida pregressa não serve para valoração e julgamento das pessoas.

Assim, entendemos que a reclamada, indevida e injustificavelmente, violou o direito à intimidade e a vida privada da obreira, devendo arcar com indenização por danos morais, “ex vi” do inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, cc artigos 159 e 1547, ambos do Código Civil, sendo certo que a condenação somente alcançará os objetivos pedagógicos e preventivos, servindo como penalidade e freio para o reclamado, quando o valor da indenização não for irrisório ou ínfimo.

Segundo escreve o professor Caio Mário da Silva Pereira, “o dano moral deve ser reparado, e que o seu fundamento está no fato de que o indivíduo é titular de direitos de personalidade que não podem ser impunemente atingidos. A Constituição de 1.998 não deixa mais dúvidas aos que resistem à reparação do dano moral, pois, os direitos constitucionais não podem ser interpretados restritivamente” (Responsabilidade Civil, 24ª Ed. Forense, 1990).

O doutor José Afonso da Silva, ao comentar o art. 5º, X, da Constituição Federal, esclarece que “A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais, integram-na, outrossim, valores imateriais, como os morais. A Constituição empresta muito importância à moral como valor ético-social da família, que se impõe ao respeito dos meios de comunicação social (art. 221, IV). Ela mais que as outras, realçou o valor da moral individual, tornando-a mesmo um bem indenizável (art. 5º V e X). A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama, a reputação dos que integram a vida humana, sem os quais a pessoa fica reduzia a uma condição animal de pequena significação. Daí porque o respeito à integridade moral do indivíduo assuma feição de direito fundamental. Por isso é o que o Direito Penal tutela a honra com a calúnia, a difamação e a injúria.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed.).

Quanto à indenização, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que esta deva ser equânime entre o dano causado e os reflexos incidentes deste na pessoa atingida e a capacidade econômica do agente causador.

Assim, considerando que a reclamante foi desrespeitada e violentada sobre assuntos de sua vida particular e privada, em sua intimidade, bem como sofreu notória investigação sobre sua vida pregressa, entendemos que a indenização não possa ser insignificante.

De outra parte, considerando a capacidade econômica da reclamada, uma das maiores companhias aéreas do mundo, senão a maior, obviamente que a indenização deve ser compatível com a intensidade da culpa, traduzindo-se num valor que mesmo em face de seu poderio econômico não seja desprezível, obrigando-a a rever seus procedimentos, abstendo-se de práticas como as que foram apuradas nos presentes autos.

Em decorrência, arbitramos a indenização em valor equivalente a cem salários da reclamante à época da despedida, corrigidos a partir do ajuizamento da reclamatória.

Indefere-se o pedido de restituição do valor pago a título de tradução juramentada, visto que a providência foi tomada por conta e risco da obreira, não se tratando de despesa processual antecipada.

Honorários advocatícios são indevidos, em face do disposto no artigo 791, da CLT, que não foi revogado pelo artigo 133, C.F., ou pelo artigo 1º, da Lei nº 8.906/94, este suspenso, no particular, por força de liminar concedida pelo Excelso STF, na ADIn nº 1.127-8-DF, ajuizada pela AMB.

Não haverá recolhimentos previdenciários e fiscais, visto que somente a indenização por danos morais restou deferida.

ISTO POSTO, e considerando tudo mais que dos autos consta, a 36ª Vara do Trabalho de São Paulo JULGA PROCEDENTE EM PARTE a reclamação ajuizada por RITA DE CÁSSIA MARTINHÃO IRIGOYEN contra AMERICAN AIRLINES INC, para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por danos morais, equivalente a cem salários percebidos pela reclamante à época da despedida, corrigidos a partir do ajuizamento da presente reclamatória. Tudo nos termos da fundamentação supra, apurável em liquidação de sentença. Juros na forma da lei. Custas pela reclamada, calculadas sobre o valor da condenação, arbitrado em R$ 190.000,00, no importe de R$ 3.800,00.

Intimem-se.

Nada mais.

DR BENEDITO VALENTINI

JUIZ TITULAR

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!