Discriminação

Parcerias entre pessoas do mesmo sexo, preconceito e Justiça.

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3 de agosto de 2002, 10h21

Certa vez, Albert Einstein afirmou: “Época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo”. Estava certo. Os átomos são facilmente quebrados, já os preconceitos, muitos deles não se quebram ad aeternum.

Todas as coisas encerram uma contradição íntima, a dialética entre duas realidades coexistentes: a realidade do que são e a realidade do que podem ser. A homossexualidade, exposta como a atração sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, é um procedimento comportamental que desde sempre esteve presente nas mais dissonantes sociedades e culturas e, nem sempre, foi estimado como uma conduta perversa, abominada ou doentia.

O termo “homossexualidade”, que ora suscita apreciação minuciosa em razão do Projeto de lei 1.151, de autoria originária da ex-deputada Marta Suplicy, apareceu pela primeira vez em inglês no ano de 1890, usado por Charles Gilbert Chaddock, tradutor de Psychopathia Sexualis, de R. von Krafft-Ebing. No século XIX, antes de 1890, usava-se o termo “inversão”, que abrangia todos os conceitos considerados desviantes dos modelos majoritários. No Brasil, eram utilizados os designativos “sodomita”, “somitigo”, “uranista e, para a designação da mulher homossexual, “tríbade”.

O termo “invertido” foi utilizado pela primeira vez em 1882, por Magnan e Chacot, para assinalar um suposto traço doentio na homossexualidade e para representar o conseqüente quadro de degenerescência deste perfil estigmatizado por homens efeminados e por mulheres masculinizadas, pessoas que ora pugnam pelo reconhecimento de suas parcerias, não mais apenas sob o prisma do afeto, mas também sob o enfoque do direito.

Em 1869, um médico húngaro chamado Karoly Benkert, expediu uma missiva ao Ministério da Justiça da Alemanha do Norte em defesa dos homossexuais que eram importunados por dissidências políticas. Benkert, nessa carta, defendia a heterossexualidade como comportamento normal e, “contrario sensu”, anormal o homossexualismo, porém, depreendia de seus estudos que este comportamento, de amor e sexo que transcendia o enfoque padrão, era algo inato e não adquirido.

Não obstante a meticulosa diligência do eminente clínico húngaro, que acrescentava que se o homossexualismo era algo anormal e inato, merecia ser tratado pela medicina e não perseguido pela Justiça, o § 175 do Código Penal do Segundo Reich, referendando a assertiva de que quem aprova a pena de morte é porque já matou em si mesmo a esperança e a fé, punia com pena de morte os homossexuais.

Esse mesmo fanatismo daqueles que se julgam imortais incensando a própria imagem, abrindo com foices os caminhos da vida e, enfeitando-a com buquês de impropérios em torno da subserviência e degeneração de uma classe em oposição às demais, foi o que animou os jesuítas, na catequização dos aborígines das Américas a decaptarem vastamente a etnodicéia e deteriorarem toda a cultura dos povos pré-colombianos; foi o que inspirou os espanhóis que, entre os sécs. XVI e XVII dizimaram toda a população asteca no México e, ainda, incitou o genocídio nazista que na Europa eliminou, junto a seis milhões de judeus, 220.000 homossexuais, segundo dados da Igreja Luterana Austríaca.

Em verdade, tem-se que o sofrimento dos homossexuais, que ora tentam o reconhecimento de suas uniões sócio-afetivas, quando a causa é o seu comportamento homossexual, deve ser considerado como produto do vertiginoso processo de discriminação, do fatídico preconceito e da repressão social que, se por um lado, deterioram os lindes da liberdade e igualdade preconizadas pelo art. 5º da Constituição Federal, por outro, estabelecem categorias de sujeitos de direitos, com mais ou menos direitos ou, de cidadãos de primeira ou segunda classe, em conformidade com o grau de engajamento aos valores dominantes, deflagrando um hermetismo social em torno de discriminação injustificável.

Os homossexuais, sendo uma minoria social, vivem combalidos por terem que conviver com uma faceta oculta de suas vidas, que é a que compreende o relacionamento amoroso, pois ocultam dos amigos heterossexuais, dos colegas de trabalho e, sobretudo, da família que, quando sabe, tudo faz para que a sociedade não se aperceba que entre os vitrais da imponente Notre Dame, habita um rechaçado corcunda. O Projeto que enaltece o reconhecimento das parcerias entre pessoas do mesmo sexo visa acabar com esse obscurantismo.

A igualdade, vaidosamente cunhada pela forja da Justiça, parece a estes tantos inoperantes, o que, apocalipticamente, lhes faz pensar que para eles não há igualdade, pois são realmente diferentes e o menoscabo social é a paga do que se não escolheu. A balança da justiça não lhes garante igualdade e a espada utilizada pela justiça para que o direito não se torne estéril ainda não foi desembainhada para esse combate notadamente atroz. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma deve completar a outra, pois o estado de direito somente se afigura tangível quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança, como já preconizava Von Ihering. Nas palavras de Joubert “a justiça sem força, e a força sem justiça: desgraças terríveis!”.

Nesses termos, infelizmente o homossexual que oculta sua identidade sexual auto-promove sua segregação, pois acaba num mundo subterrâneo que, de forma alguma alça vôos para a resolução da questão, ou seja, torna-se uma figura dúplice no processo discriminatório, sendo cúmplice do preconceito ao mesmo tempo em que é vitimado por este, o que estabelece não mais do que um paliativo, um sedativo que apenas dissimula a intensidade da comiseração vivenciada.

É com apoio nesses descalabros, onde se desdobra o princípio da igualdade em substancial e formal, que pasquineiros valentões seguem, de forma indolente, como idólatras que cultuam os poderosos, enfunando o peito e encarniçando-se levianamente contra essas minorias a fim de legitimar suas credenciais moralistas, retirando, dia após dia, o referido Projeto de lei da pauta de votação do Congresso Nacional.

No plano conceitual, a questão atacada é de jaez principiológico. Todos sabem o quão difícil é compatibilizar-se os princípios da liberdade e da igualdade, pois, como adverte Norberto Bobbio, o libertarismo e o igualitarismo fundam suas raízes em concepções do homem e da sociedade profundamente diversas, sendo que para o liberal o fim principal é a expansão da personalidade individual e, para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade dos singulares. Elucida, ainda, o eminente jusfilósofo peninsular, que a única forma de igualdade, que é compatível com a liberdade tal como compreendida pela doutrina liberal, é a igualdade na liberdade, que tem como corolário a idéia de que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros.

Transcorrendo as veredas da filosofia, temos que os venerandos escolásticos diziam ser o universo a diversidade das coisas, harmoniosamente ordenadas, dentro da unidade do Todo, Unum versus alea, o Uno feito de todo o Universo, ou seja, a ordem implica multiplicidade e unidade, sístole e diástole.

Teilhard de Chardin, atento a essa dinâmica, de ordem da contradição dialética da realidade manifestada na harmonia entre etnias, na complacência social e na tolerância religiosa, ostenta em sua obra clássica “O coração da matéria” que, matéria e espírito não são duas coisas, mas dois estados de uma mesma matéria cósmica, sendo este o método que adota para tecer o espectro que sua visão vislumbrou capaz de aproximar ciência e fé.

Assim, essa profanação da isonomia das relações entre seres humanos fundada na orientação sexual é devida a motivações torpes, pois a perspectiva do enfoque é que estabelece o normal, o anormal e suas nuanças, ou nas palavras de Quevedo: “Pierde a los hombres el querer ser diferentes de si mismos”, ou, na assertiva de Paul Valéry, “Les hommes se distinguent par ce qu’ils montrent et se ressemblent por ce qu’ils cachent”.

Anormal é a qualidade do insólito, do incongruente com as referidas concepções, destoante do que se acha firmado como padrão e modelo de comportamento e modo de ser, ou colidente com as certezas científicas sobre os movimentos e formas em geral e, normal, na percuciência de Goffredo Telles Júnior, é normal relativamente ao sistema de convicções tido como dominante; mas o anormal é, muitas vezes normal, relativamente a um sistema de convicções que hoje ainda não é o dominante, mas que amanhã poderá vir a sê-lo.

A orientação sexual que as pessoas adotam, na esfera de liberdade de sua vida privada, mormente sob o amparo do inciso X, do art. 5º da nossa Constituição Federal não pode, jamais, ser objeto de discriminação, preconceito e, com mais fulgor, de restrição de direitos, pois como dizia Thoreau, em Walden: “Nunca é tarde para abrirmos mão de nossos preconceitos”…

Assim, as parcerias entre pessoas do mesmo sexo são realidade e, deve o direito vir a reboque dos fatos sociais, pois não pode a legislação e nem tampouco a interpretação do hermeneuta apreenderem um momento estático de uma verdade social mutante.

Dessa forma, desdenhando da letra da melodia imortalizada pelo saudoso intérprete Tim Maia, as minorias, em breve, haverão de entoar: “Agora vale até dançar homem com homem e até mulher com mulher…”

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