Visões divergentes

Professor discorda de procurador sobre infração de menor potencial

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25 de abril de 2002, 12h47

Continua viva a polêmica sobre se a Lei 10.259/01, que criou os juizados federais e ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para dois anos, aplica-se ou não para os juizados estaduais.

Em 2/4/02 (DOE-Poder Executivo-Seção I) o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo publicou aviso no sentido de que o primeiro acórdão do TACRIM-SP (HC n. 398.760-7, 11ª Câmara, relator Juiz Ricardo Dip, j. 25.02.02) entendeu que o conceito de crime de menor potencial ofensivo previsto no art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01, não se aplica no âmbito da Justiça Estadual.

Nós, professores e operadores jurídicos do Movimento Constitucionalista do Direito Criminal (MCDC), no uso das nossas convicções e liberdades constitucionais, discordando, sempre com a devida vênia, do posicionamento e do anúncio supra transcritos, temos o dever de informar (urbe et orbi) que o primeiro acórdão do país sobre a controvertida questão de se saber se o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo (até dois anos), previsto na Lei 10.259/01, estende-se ou não aos juizados estaduais, emanado da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (rel. Amilton Bueno de Carvalho – “ACÓRDÃO 70003736428 – TJRS – publicado na íntegra no site www.estudoscriminais.com.br), entendeu que correta é a tese unitária, não a dualista, isto é, o novo limite ampliou a competência dos juizados estaduais (derrogando o art. 61 da Lei 9.099/95).

No DOE de 24.04.02, Seção I, o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, novamente, publicou aviso no sentido de que, em reunião realizada em 18 de março de 2002, a 2ª Procuradoria de Justiça, firmou por unanimidade, o Entendimento Uniforme relativo à Lei nº 10.259/01:

“ENTENDIMENTO UNIFORME Nº 12: “A Lei 10.259/2001, de caráter federal, foi editada especialmente para regulamentar o Juizado Especial na esfera da Justiça Federal, não se aplicando as suas disposições aos Juizados Estaduais. Por conseguinte, não foi derrogado o art. 61, da Lei 9.099/95, de caráter nacional.

“A vedação contida no artigo 20, conquanto se refira ao Juizado Cível, denota a intenção do legislador de não sujeitar o Juizado Estadual às normas estabelecidas na Lei 10.259/01. Ademais, por extrapolar a permissão contida no parágrafo único do artigo 98, da Constituição Federal, e por ferir normas contidas na Lei Complementar nº 95/98, alterada pela Lei Complementar nº 107/01, a Lei 10.259/01 revela-se inconstitucional.”

Nós, professores e operadores jurídicos do Movimento Constitucionalista do Direito Criminal (MCDC), no uso das nossas convicções e liberdades constitucionais, discordando, mais uma vez e sempre com a devida vênia, do posicionamento e do anúncio supra transcritos, temos a informar o seguinte:

Que a questão relacionada com a inconstitucionalidade da Lei 10.259/01 já foi levada ao procurador-geral da República pela Procuradoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro. O procurador entendeu que nada de inconstitucional há na Lei 10.259/01 e, ademais, que o conceito de infração de menor potencial ofensivo é único em todo o país: leia-se: os dois anos valem inclusive para o âmbito estadual (cf. Processo PGR nº 1.00.000.000801/2002-90 – publicado na íntegra no site www.estudoscriminais.com.br).

Resumindo toda a polêmica, em poucas palavras, cabe salientar o seguinte: no Estado Constitucional e Democrático de Direito, onde a Constituição é a fonte de validade de todo o ordenamento jurídico (é a norma fundante, é a norma das normas), temos dois conjuntos normativos: o constitucional e o legal. Entre eles há incoerências, incongruências, aporias e contradições (e também alguma consonância). Isso faz parte (natural) do modelo atual de Estado (Ferrajoli).

Ao jurista do terceiro milênio cabe transcender o ensino jurídico do milênio passado, todo ele fundado no legalismo formalista ou positivismo legalista (que nasceu no final do século XVIII e começo do século XIX). Temos dois olhos exatamente para mirar a lei com um deles e a Constituição com o outro. No caso de conflito, aplica-se a Lei Maior (evidentemente).

Os que ainda estão presos aos esquemas lógicos do positivismo legalista não conseguem (nem conseguirão) nunca entender como a Lei 10.259/01 derrogou o art. 61 da Lei 9.099/95 (ampliando o conceito de infração de menor potencial ofensivo). Trabalham com os clássicos paradigmas de interpretação (a lei não tem lacuna, o legislador ordinário disse que o novo diploma legal só vale para os juizados federais etc.).

Nesse labiríntico mundo napoleônico e rousseauniano, em que o juiz é unicamente la bouche de la loi, o intérprete gira, gira, gira e não acha saída (explicação) para a citada revogação. Ao contrário, só encontra argumentos para o embelezamento do Palácio Real ou do Castelo da Fantasia que é o sistema jurídico imaginado pela Revolução Francesa.

Se transcender um pouco o nível da legislação infraconstitucional e captar a nova mensagem de que o legislador ordinário não é Deus, que o conjunto de palavras (muitas vezes desconexas e incompreensíveis) que eles aprovam têm que ter coerência com a Constituição, fica fácil perceber que o mesmo crime de desacato (por exemplo) não pode ter duplo (e completamente díspar) tratamento jurídico.

Admitindo-se a tese dos dualistas, se um juiz federal é desacatado o crime é de menor potencial ofensivo (vai para os juizados, cabe transação penal, impõe-se sanção alternativa etc.); se o desacato se dá contra juiz estadual o crime não é de menor potencial ofensivo, não cabe juizados nem transação penal, não será possível sanção alternativa etc.). O quê justifica tamanho tratamento desigual? Se a Lei 10.259/01 tivesse contemplado crimes de competência exclusiva da Justiça Federal (crimes previdenciários, políticos etc.) lógico que ela não poderia ter efeitos para o âmbito estadual. Mas não foi isso o que ocorreu.

Por força dos princípios da igualdade e da proporcionalidade e tendo em vista o conflito (que se estabeleceu) entre o que escreveu o legislador ordinário e o Texto Constitucional, não há como negar que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo vale para todos os juizados criminais do país. Conceito único, portanto. Para não haver injustiça. Os iguais devemos tratar igualmente. Os desiguais desigualmente. Em suma, não é que os legalistas (positivistas, formalistas e napoleônicos) não vejam a solução. O que eles não mais enxergam é o problema. Isso é grave!

Jurista do terceiro milênio que não tenha preocupação com as conseqüências práticas (reais, efetivas) da sua interpretação está em descompasso com a própria evolução da espécie: há 7 milhões de anos começou na África a história humana; há 4,5 milhões de anos o homem conseguiu ficar ereto (Homo erectus); há 2,5 milhões de anos nosso cérebro começou a crescer (Homo sapiens); há cerca de 1,7 milhão de anos o homem começou a usar instrumentos mecânicos (Homo habilis); há 12000 anos o homem chegou à Patagônia; há cerca de 8000 anos já habitava o Brasil; há 1.500 anos éramos descobertos “oficialmente” pelos portugueses; há 14 anos vigora nossa Constituição… parece sensato acreditar que neste princípio de novo milênio temos que construir o Homo proporcionalis (justo, equilibrado, razoável). Que dê a cada um o é seu, na medida do proporcional.

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