Investigação prévia

Advogado pede para MP investigar programa da Globo

Autor

25 de abril de 2002, 16h04

O advogado paulista Leonardo Fogaça Pantaleão entrou com uma representação no Ministério Público contra o programa Hipertensão, exibido pela TV Globo. O advogado quer que o Ministério Público investigue possíveis atos contra a dignidade humana.

Pantaleão citou, na representação, duas provas exibidas nos programas. Em uma delas, os participantes tiveram que comer baratas e minhocas. Em outra, “ficaram durante quatro minutos em uma cova, deitados e amarrados, somente com uma proteção nos olhos, na companhia de trezentos ratos”.

“A utilização dessas práticas pelos órgãos de imprensa podem incutir, nos indivíduos, o desprezo pela espécie humana, fazendo com que não mais se tenha exato discernimento sobre a relevância do homem no seio social e na manutenção do próprio estado democrático de direito”, disse o advogado.

Para fazer o pedido, ele invocou os artigos 1º, III, e, 5º, III, da Constituição Federal.

Leia a Representação

ILMO. SR. DR. COORDENADOR DA PROMOTORIA DA CIDADANIA DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – SP

Leonardo Fogaça Pantaleão, brasileiro, solteiro, advogado, portador da Cédula de Identidade nº xxxx e inscrito no CPF/MF sob no. xxxx, residente e domiciliado na Av. xxxx, xxx, apto. xxxx, Moema, na Cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, vem, na qualidade de cidadão brasileiro, à presença de V.Sa., com fundamento no art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição Federal, oferecer a presente

REPRESENTAÇÃO

pelas razões de fato e de direito a seguir demonstradas:

I – DOS FATOS

Como é de conhecimento público, desde o último dia 14.04.02, a TV GLOBO LTDA., com endereço nesta capital, na Av. Chucri Zaidan, 46, Vila Cordeiro, apresenta, nas noites de domingo, programa da espécie “reality show” (qualificação atribuída pela própria emissora), intitulado “Hipertensão”, apresentado por Zeca Camargo.

O intuito do programa é que, a cada domingo, um grupo diferente de três homens e três mulheres enfrentem desafios “radicais”, sendo que, a cada episódio, identificar-se-á um vencedor, que perceberá a quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).

Visando a obtenção do prêmio, os concorrentes devem superar três tarefas das mais variadas. Nas duas primeiras, eliminatórias, são postas à prova a valentia e a capacidade de superar limites de cada um, como a exigência de saltos de grandes alturas, travessias de locais arriscados, além da convivência com insetos e outros animais. A última prova de cada episódio determinará o vencedor de cada edição.

Dentre as variadas atividades que os participantes do programa, em seus dois episódios até o momento apresentados tiveram de se submeter, destaca-se, no programa exibido no dia 14.04.02, o chamado <bicoquetel, em cuja prova o apresentador inseriu em uma taça, para cada um dos concorrentes, seis minhocas, quatro tenebras e uma barata, que deveriam ser degustadas integralmente, a fim de que continuassem na disputa. (docs. anexos)

No segundo episódio, veiculado nacionalmente no dia 21.04.02, os concorrentes submeteram-se à chamada Cova de Ratos, que consistiu na permanência por 04 (quatro) minutos durante o período noturno, em uma cova, deitados e amarrados, somente com uma proteção nos olhos, na companhia de 300 (trezentos) ratos, que eram jogados de fora para dentro, na direção dos participantes do programa. (docs. anexos)

Desnecessário mencionar que os animais transitavam sobre o corpo e rosto das pessoas imobilizadas, desferindo-lhes mordidas e lançando-lhes excrementos fisiológicos por todo o corpo, as quais permaneciam imóveis por todo o tempo de duração do “desafio”, sem proteção alguma na face (exceto nos olhos).

II – DO DIREITO

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, dispõe:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – ….

II – …

III – a dignidade da pessoa humana;(grifos nossos)

IV – …

V – …”

Na seara constitucional, dignidade é um valor absoluto, de importância lapidar para a consolidação do respeito à pessoa humana, sendo que a consideração que lhe é devida está acima de qualquer outro valor ou direito estabelecido pelo Estado. A preocupação do legislador constituinte, também destinatário da norma, é baseada no senso de respeito à natureza humana.

Sem dignidade, os demais valores da vida perdem força e até carecem de significado. Despiciendo apregoar a igualdade entre os brasileiros natos e naturalizados, ressalvadas as exceções normadas, sem que se lhes confira o ingrediente basilar: a dignidade.

A realização de tais provas, no contexto em que são apresentadas, podem representar ato atentatório ao princípio da dignidade humana, ferindo a todos os cidadãos no que há de mais precioso.

A utilização dessas práticas pelos órgãos de imprensa podem incutir, nos indivíduos, o desprezo pela espécie humana, fazendo com que não mais se tenha exato discernimento sobre a relevância do homem no seio social e na manutenção do próprio estado democrático de direito.

O importante papel da imprensa na sociedade reveste-lhe de responsabilidades extremadas, sendo certo que não mais se considera como Thomas Cooley no final do século passado, “um meio de comodidade pública que registra os acontecimentos do dia, a fim de apresentá-los aos leitores, faz conhecer sucessos futuros, adverte contra possíveis desastres, e contribui de vários modos para o bem-estar, o conforto, a segurança e defesa do povo” (1).

Na opinião de Gilberto Haddad Jabur, “a contribuição ao decantado bem-viver foi trocada pelo entretenimento sem escrúpulos, pela pseudo-alegria e pelo delírio grosseiro, divertimentos baratos ao povo, que os alimenta em busca da compreensível atenuação dos males e melancolias, mas bastante caros ao que de mais precioso se deveria homenagear: a dignidade humana” (2).

O respeito que se deve render à dignidade é o respeito à condição mínima de existência humana, encarnada nos direitos personalíssimos. Nem precisaria a dignidade radicar-se em preceito algum, porque, valor supremo que é, dispensa ostensiva normatização. Dignidade é sobrenorma. Seu reconhecimento e sua consagração podem ser considerados pressupostos lógicos à construção de qualquer sistema jurídico.

O conceito de dignidade encontra indiscutível realce e extravasa a idéia de auto-estima, necessária à afirmação das virtudes e qualidades pessoais, para assumir fisionomia de princípio sublime que rege e limita a constituição e avaliação dos demais bens jurídicos.

O próprio texto constitucional , em seu art. 5º, III, estabelece:

“Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano e degradante”

A realização das provas acima mencionadas, como já anteriormente citado, podem afrontar o texto constitucional em seus diversos aspectos, além de externarem, talvez, um descaso exagerado pela espécie humana, o que, se comprovado, não pode permanecer, sob pena de restar caracterizada a falência social do homem no meio em que vive.

Tal sentimento de pesar acomete toda a sociedade, a qual busca, de forma insofismável, o resguardo de seu direito mais sublime, diante de inúmeras afrontas cometidas àquele que, sem dúvida, é o alvo de todas as proteções jurídicas existentes: o ser humano.

III – DO PEDIDO

Face ao acima exposto, serve a presente Representação para noticiar tais fatos à essa r. Promotoria de Justiça para que requisite as fitas do programa para uma melhor avaliação e, caso entenda necessário, adote as medidas legais cabíveis à espécie, no intuito de impedir uma eventual prática atentatória à todos os cidadãos brasileiros.

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 23 de abril de 2002.

Leonardo Fogaça Pantaleão

Notas de rodapé:

1 – Princípios gerais de direito constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. Trad. Alcides Cruz. 2. ed. São Paulo : RT, 1982, p. 316

2 – Liberdade de pensamento e direito à vida privada. São Paulo : RT, 2000, 194/195

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!