Destruição de direitos

Advogado critica destruição de direitos e flexibilização da CLT

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22 de abril de 2002, 14h33

A recente celeuma sobre a proposta de FHC para consolidar a flexibilização do Direito do Trabalho com a sinistra redação sugerida para o artigo 618 da CLT, demonstrou que, de um modo ou de outro, os brasileiros entram na discussão de seu destino, quando as cartas são colocadas na mesa.

No entanto, sabedor desta capacidade de conflito das agências que exprimem as classes dominadas brasileiras, o governo federal vai promovendo reformas profundas de forma sorrateira. O exemplo mais emblemático deste tipo de “argúcia” é a Lei 10.101/2000 que “dispõe sobre a participação dos trabalhadores nos lucros e resultados das empresas e dá outras providências“. Estas eufemísticas “outras providências” resumem-se a estabelecer discretamente lá no último no artigo da lei que, “fica autorizado, a partir de 9 de novembro de 1997, o trabalho aos domingos no comércio varejista em geral.

Fenômeno semelhante vem acontecendo com um setor distante, que os intérpretes jamais poderiam imaginar que se encontrasse um dia com o Direito do Trabalho: a prestação de serviços voluntários. Com efeito, nem no ano passado, quando, inocentemente celebrávamos o ano internacional do voluntariado, tivemos a clareza de perceber que o sorrateiro legislador brasileiro andou promulgando, nos últimos anos, algumas leis reguladoras do assunto que passaram quase que inteiramente despercebidas do grande público.

Afinal de contas, o voluntariado é a prestação de serviços de forma espontânea e não remunerada para contribuir com alguma boa causa. Como destaca a boa doutrina, a CLT já regula a matéria exaustivamente, por exclusão (1). Assim, não haveria que intervir neste assunto, já que a idéia de voluntariado é incompatível com a de empregado já que se ergue uma barreira intransponível que separa um campo de outro: a presença da remuneração pelos serviços prestados.

No entanto, este atual governo e seu rolo compressor no Congresso Nacional, já vem, de longe, sustentando a necessidade de criação de novos postos de trabalho mediante a flexibilização. A grande aposta consiste em suprimir os direitos do trabalhador como forma de, supostamente, gerar novos postos de trabalho. Abrem-se portas para a fraude, como a famigerada lei 8949/94 que acrescentou generoso parágrafo único ao art. 442 da CLT. Generoso para os maus empregadores que começaram a só utilizar “cooperados”, ao invés de empregados.

A boa doutrina, com a melhor das intenções (2), no afan de buscar novos caminhos para combater a crise do desemprego, andou vislumbrando saídas no chamado terceiro setor, ou seja, aquelas famosas “ONGs” de que o povo tanto escuta falatórios. Entidades sem fins lucrativos que se dedicam a fazer o bem, sem qualquer interesse de recompensa pessoal. Ali estaria o caminho da redenção dos desafortunados desempregados que não conseguiriam voltar ao mercado de trabalho por causa do chamado “custo Brasil”.

A resposta do legislador a estes reclamos dos flexibilizadores foi construir um novo sistema jurídico no terceiro setor. De um lado, enquanto a maioria dos cidadãos continua a pensar as ONGs como entidades sem fins lucrativos onde os dirigentes não podem ser remunerados, foi estruturada legislação abrindo as portas para tal remuneração. Criaram-se as chamadas OSCIPs – organizações da sociedade civil de interesse público. A Lei 9.790, de 23 de março de 1999, traz como grande novidade, a possibilidade de dirigentes de ONGs poderem receber remuneração.

De outro lado, exsurgiu a Lei 9608/98 que possibilita a contratação de “voluntários” para prestar serviços de forma não eventual, subordinada que, ao invés de remunerada, será “indenizada”, reembolsando-se aos voluntários as despesas por eles efetuadas.

O quadro se completa com a edição da Lei 10.029 que estabelece normas para a “prestação voluntária de serviços administrativos e de serviços auxiliares de saúde e de defesa civil nas Polícias Militares e nos Corpos de Bombeiros Militares” de modo não eventual, subordinado e remunerado através de “auxílio mensal, de natureza jurídica indenizatória'”.

Lá nas indefesas e adormecidas páginas da Constituição Federal, continua inscrito o inciso I do artigo 7o da Constituição Federal a prometer aos trabalhadores em geral que a prestação de serviços contínua, subordinada e onerosa lhes dá o direito à “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.

No entanto, sem que a sociedade civil tivesse consciência disto, sem que o assunto fosse objeto de amplo debate nacional, promoveu-se uma reforma ampla de modo a organizar um novo mundo do trabalho, distante do artigo 7o, I da CF, no qual se estabelece um território com regras diversas.

Por ali, o Estado é autorizado a contratar, à margem da CLT, pessoas que irão prestar serviços que a CLT caracteriza como relação de emprego, ficando liberado de tais obrigações trabalhistas.

De outro lado, o chamado terceiro setor é autorizado a pagar remuneração para seus dirigentes e a contratar, à margem da CLT, pessoas que irão prestar serviços que a CLT caracteriza como relação de emprego, ficando liberado de tais obrigações trabalhistas, desde que se dê à remuneração a roupagem de “reembolso de despesas”.

Aqueles que ainda não perceberam a verdade sobre o nosso país, irão objetar que colocar aspas nesta expressão – reembolso de despesas – é presumir a fraude, demonizando de antemão os empregadores. Basta atentar para o que ocorre com as chamadas “cooperativas de trabalho” desde a reforma do parágrafo único do artigo 442 da CLT, para que se verifique a justeza de nossa preocupação.

O impressionante é constatar como é que todo um campo de trabalho foi se criando à margem do Direito do Trabalho sem que os operadores especializados se dessem conta. À luz do dia, assistimos ao desvario das cooperfraudes, o escândalo da terceirização, a liberação do Estado para lesar os trabalhadores sem ter que indeniza-los, a introdução do “Novo Direito do Trabalho” (banco de horas, “lay-off”, trabalho “part time”, contrato temporário) e, seu corolário final, a proposta que se busca inscrever no artigo 618 da CLT. No entanto, uma outra reforma vai sendo feita do lado de fora e escondida nas sombras de outros ramos do Direito.

A criação deste outro mundo do trabalho tão distante da CLT, contudo, foi ocorrendo gradativamente, em silêncio, sem que os operadores especializados se apercebessem. Afinal, quem vai imaginar que uma lei de trabalho voluntário, vai possibilitar remuneração? Talvez até muitos concordassem em que fosse excluir da proteção da Carta Magna os trabalhadores nas empresas que lidam com boas causas e outros, talvez pensassem que boas causas não justificam a ruptura da CF-88.

Segundo o SENAC (3) “Nascido como um novo espaço de articulação da sociedade civil, o setor formado por instituições de natureza privada e sem fins de lucro movimenta algo em torno de R$ 12 bilhões. As 220 mil organizações que o compõem arrecadam R$ 1,1 bilhão decorrentes da doação de 15 milhões de brasileiros e contam, em seus quadros, com o trabalho voluntário de mais de 12 milhões de pessoas”.

O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (4), todavia, não tem visto estas pessoas por aí, eis que, o quadro que ele fornece da população trabalhadora brasileira é o seguinte:

empregados com carteira: 7.925.468

empregados sem carteira: 4.741.165

conta-própria: 3.889.946

empregadores: 706.752

população desocupada: 1.313.818

Onde estarão os doze milhões de voluntários que, teoricamente, estariam na categoria de população desocupada, já que, também teoricamente, não estariam empregados, no rigor absoluto da palavra ? Não há como pensar em quadros idílicos num país capitalista envolvido em tantas contradições como o nosso, a começar pela constatação de que contamos com cerca de cinqüenta milhões de brasileiros em estado de pobreza, dos quais, vinte e dois milhões, abaixo da linha de indigência.

A verdade é que estamos numa esquina perigosa da história onde uma parte dos agentes que produzem a História pensam que a saída para estes milhões de miseráveis está em explodir a fortaleza do Direito do Trabalho e dar-lhes de comer através de “cooperfraudes”, “reembolsos de despesas” e “auxílios mensais de natureza indenizatória”. De outro lado, aqueles que acreditam que é preciso resistir e preservar o conceito de que é o Direito do Trabalho que confere cidadania às pessoas que obtém o sustento com o suor de seu rosto.

Nesta encruzilhada, poderemos aderir ao perverso projeto de desconstrução dos direitos sociais ou reafirmar que um outro mundo é possível, onde a vontade do povo, os sonhos dos trabalhadores, insculpidos em comandos imperativos inscritos na Constituição Federal, possam, um dia, transformar-se em direitos concretamente assegurados.

Notas de Rodapé

1 – MUSSI, Luiz Felipe Haj, “Serviço Voluntário” in “Transformações do Direito do Trabalho”, vários Autores, Editora Juruá, Curitiba, 2001

2 – Aqui vale destacar a magistral obra de Antonio Rodrigues de Freitas Júnior in “O Direito do Trabalho na Era do Desemprego” Editora LTr,

3 – http://www.sp.senac.br/educomunitaria/

4 – www.ibge.net/home/default.php

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