Posse no TST

Leia a íntegra do discurso de posse do novo presidente do TST

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10 de abril de 2002, 15h09

O ministro Francisco Fausto definiu como princípio fundamental do direito do trabalho a proteção do trabalhador. A definição foi feita durante a posse, nesta quarta-feira (10/4), na presidência do Tribunal Superior do Trabalho. “O trabalhador não surge para os mercados, mas com a tarefa de evitar a espoliação do mais forte contra o mais fraco”, disse o novo presidente, eleito para o biênio de 2002/2004.

Francisco Fausto sinalizou ainda como será sua gestão no TST, ao afirmar que pretende exercer a presidência do Tribunal ao lado da Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, da Associação dos Magistrados Brasileiros, da Procuradoria do Trabalho, da OAB, da associação de classe dos funcionários e dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho. “A força e o prestígio da Justiça do Trabalho estão na soma dos seus segmentos de política judiciária”, afirmou.

O novo presidente do TST adiantou também em seu discurso de posse a intenção de “determinadamente aliar a Corte aos demais Tribunais Superiores”, ao ressaltar que não pretende ser na presidência do TST “uma voz isolada pregando no deserto”.

Leia a íntegra do discurso de posse do ministro

Em quatro décadas, no permeio das quais situo o massapê do sertão pernambucano, o solo salgado das terras potiguares e o cerrado de Brasília, venho exercendo a magistratura do trabalho em tempo pastoral. Vi, nesse trajeto, com enlevo e espanto, a agonia da santa reconquista de homens fortes, com alma quixotesca e fé cristã, gerada, às vezes, entre um deus fantasma e um Deus real, mas incapaz de render-se.

Sou, como juiz, egresso da geração celetista, da doutrina social de Cesarino Júnior e de Evaristo de Morais que alguns teimam em ver “nas estações mortas do passado”, de um estágio de cultura em que o bicho da consciência verbera o sentimento e a reflexão do magistrado como perseverante modelo moral. É essa, nas origens, a filosofia política no sopro de liberdade e do humanismo social do papa Leão XIII à bela carta trabalhista de Arnaldo Sussekind, de Joaquim Pimenta e de Getúlio Vargas a partir da estação renovadora na conjuntura revolucionária de 1930.

Essa circunstância, por outro lado, dava, como uma liturgia do vinho e do pão devotos, conformação e consistência ao idealismo da juventude do início da segunda metade do século passado envolvida na mística intelectual do ciclo spenceriano da Escola do Recife; emergíamos, nos domínios históricos da cultura brasileira, das raízes humanísticas de Tobias Barreto, das idéias liberais e internacionalistas de Amaro Cavalcanti e da atualidade do tempo passado na literatura sociológica, viva e exuberante de Gilberto Freyre reinando em categorias estilizadas do paço e do largo de Apipucos.

Fiz a minha iniciação a partir da zona da mata pernambucana e do cenário adverso de uma humanidade devastada pelo melancólico cerco da pobreza. De certo modo me senti talhado à aventura intelectual de que o juiz da terra é a lei da terra e redigi a minha sentença sob o impacto de um romance de costume em que homens e mulheres se atrofiavam na fome e na palidez, nos flagelos e nos lamentos de uma terra consternada, é certo, mas irredenta na sua teologia.

Foi essa, no jogo da criação, a escola de magistratura dos nordestinos. Ela tem os estigmas das chagas sociais de que fala Charles Péguy no devaneio do socialismo cristão. Mas era assim mesmo, com calos nas mãos, empenhados nos rituais da liturgia judicial, que dávamos um sentido sagrado ao ofício do julgador estabelecendo uma ética de ação, imersa, também, no êxtase coletivo do pensamento e da prece.

E por muito tempo, entre tensões e dúvidas, tive a idéia de que seríamos arquitetos e não meros operários da vida social e dos institutos jurídicos das nações pan-americanas erguidas pelo colonialismo europeu e pela imponência aristocrática do colonizador, soldados de além-mar, matizados na intangibilidade dos seus conceitos políticos e canônicos.

Não creio, ainda hoje, que devamos repassar à juventude preparada para a magistratura apenas a técnica fria do julgamento como se lidássemos com papéis cartoriais esquecendo a massa humanizada que procura a Justiça do Trabalho. Ela não deve submeter-se à interpretação da lei como unidade final. “O direito é coisa humana e deve ser aplicado com humanidade” – dizia, há mais de um século, o inesquecível Amaro Cavalcanti, ele mesmo expressão da modernidade do passado como Goethe e Dostoievski.

E é verdade. O juiz deve ajustar-se ao passo da vida, à lei theilardiana da ética da comunidade, de tal maneira que o seu espírito público se alimente do riso e do pranto instituídos tábua talhada do destino irretocado das pessoas.

Essa regressão é necessária como uma âncora para deitar ferros em antigos e remotos portos domésticos nesses tempos de longas viagens à deriva. A magistratura trabalhista, afinal, me levou a diversos estágios e paragens: ao primeiro grau, no exercício solitário da busca da perfeição tendo como modelo ético o meu professor, juiz do trabalho Alvamar Furtado de Mendonça; ao Tribunal do Recife, no qual percorri os caminhos da mais pura justiça social numa fase particularmente injusta da vida brasileira; e finalmente à instância de Brasília, onde moldamos a experiência ao desempenho da carreira e nos completamos, peregrinos na própria pátria, sustentados em seus valores.


Aqui, do Planalto, onde os agentes políticos atuam às vezes com modelos estereotipados, é verdade, mas significativos da alma brasileira, tem-se a visão das possibilidades da Justiça do Trabalho como admirável instituição e do juiz como órgão do poder.

Tem-se, revelado como dogma, o senso do justo e do certo com a força da arte grega que despreza a consciência solitária para apegar-se às motivações coletivas, que exclui as negações abstratas e “faz o mundo girar sobre si mesmo” como realidade e, sendo assim, move a força moral da jurisdição com uma espécie de assimilação mistificante do homem e do seu destino.

É essa a esperança. Não a esperança que se perde no pórtico do terror de Dante Alighiere, mas a esperança evangélica com a promessa piedosa e franciscana de um tempo mais feliz de liberação da sociedade humana sem dependência social e sem as garras da avidez e do poder de mando. Uma sociedade com respostas justas, sem potestades moldadas como falsos ícones e sem a força destrutiva e enganosa da cruel degradação na qual se perdem as vitórias proditórias dos que injuriam o ideal do bem em qualquer instância do poder ou, de outra parte, “sem os gritos de dor dos humilhados e ofendidos, vergados, impiedosamente, aos insustentáveis privilégios e à opressão.

Utopia? Triste de um povo que esquece os seus sonhos tecidos na procura. Entre os que se entregam, sem estender as mãos, insensíveis à poesia da libertação e da vida, não prospera a eterna virtude da arte brasileira e da sua inevitabilidade teologal como dádiva da condição humana. Seria, sustenta Umberto Eco na noite negra da Itália, “a utopia fatal de Roma”.

Em verdade somos um povo solidário como a nação de Renan porque em nosso sangue, em que se ergueu a construção de uma raça, corre o sangue generoso de muitas raças como nacionalidade nascida do humanismo cívico e de um pacto comunal.

À luz do trabalhismo, como forma de realizarmos a justiça social, em que pretendemos laborar na sociologia e no direito, na filosofia e nas razões supremas (e o direito não resiste sem essas visões morais como virtudes do estilo jurídico) quase sempre nos colocamos nos conflitos da história humana e militamos no ofício utópico conduzidos a uma relação de fé.

São os confrontos. As divergências aliadas de que fala Malraux e em que exercemos, muitas vezes, um “domínio sobre o mundo real” quando os atores sociais recorrem a um compromisso de inteligência e de liberação.

E é assim porque a nossa força, de juizes e cidadãos jurisdicionados, no entanto, é a soma de nossas fragilidades e esse será o desvelo e categoria de rigor do homem moderno neste começo de milênio em que antigos valores são postos à prova com certo sofrimento de ordem moral.

Então, como juizes, a vida também nos impõe a coragem da humildade às vezes inconsolada, aparentemente à margem de um pensamento crítico em que se relaciona, mas é isso que somos, sendo humanos, “sem nada por trás que afinal nos faça mudar” o grão da vida, o gesto e a representação mística da verdade verdadeira compondo as forças da emoção e da lógica.

Exceto a arrogância. Mas é preciso fazer subsumir na postura os seus estilos e na autoridade a gesta inglória da arrogância salvo se a condição humana de cada um for menor do que a trivial condição do poder e da sua efemeridade. Lembremo-nos, agora, do bom juiz Magnaud menos por suas ações do que por seu caráter e pela compreensão da face dramática da vida dos que recorrem ao judiciário brasileiro.

Não recomendo as sentenças piedosas mas exorto o modelo da clemência social pregada pelos bispos brasileiros em que o juiz e o homem realizam o prodígio do sentimento da realização comum e erguem o direito no lastro revelado da recriação. E é isso que distingue o juiz do trabalho: a pertinácia de sua percepção da mobilidade social lhe impõe uma categoria de valores conferindo largueza e liberdade à sentença.

Senhoras e Senhores, tramita no Senado Federal, depois de aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de reforma do Judiciário.

Ele partirá, nesta fase legislativa, de um relatório lúcido e percuciente já apresentado aos seus pares pelo eminente Senador Bernardo Cabral.

Em quatro aspectos, que quero destacar pelo apoio, creio, dos Ministros da Corte, ele me parece fundamental para a Justiça do Trabalho neste estágio de sua história: o seu Conselho Superior; a súmula vinculante; a sua competência; e a Escola Nacional da Magistratura.

O Conselho Superior permitirá à Justiça do Trabalho os mecanismos de auto controle dos seus agentes e serviços, dando à disciplina um caráter determinante. Ele respaldará, em sede constitucional, o órgão criado regimentalmente.

A súmula vinculante, que se defende como solução de urgência para o Tribunal Superior do Trabalho e demais Tribunais Superiores, aproxima o judiciário do verdadeiro e do justo, superando a sua crise operacional pela celeridade do julgamento e impõe a jurisdição do Estado.


Já a competência, ampliada no texto proposto na Câmara e na relatoria do Senado, dá à justiça especializada um novo domínio na organização laboral do país.

Sempre fui um entusiasta da Escola Nacional da Magistratura do Trabalho. Nela, além da pregação ética e da formação profissional, é necessário, em estágio doutoral, que o juiz compreenda o papel político da jurisdição e de modo especial da instância superior, a idéia da uniformização do direito federal e a necessidade de estabelecer mecanismos processuais para a contenção dos recursos de revista. Ou isso ou o grande número de processos, com propostas repetitivas, além de irrelevantes, continuará entravando a tarefa desta Corte superior e retardando a prestação jurisdicional. Quer no plano ético, ou no plano prático, quer no plano intelectual, a Escola da Magistratura imporá um credo moral.

O direito do trabalho, como outros ramos da ciência jurídica, é elaborado a partir de princípios sedimentados pela força da juridicidade. E o seu princípio fundamental, extraído da secularidade de um debate político e sociologicamente válido, é a proteção do trabalhador. Ele não surge para os mercados; mas surge entre os povos civilizados, como terá acontecido no Brasil, com a tarefa de evitar a espoliação do mais forte contra o mais fraco, favorecendo a sociedade, e assim foi sistematizado. É o seu papel. Não quero, como Orestes, libertar os homens de Argos; mas ajudar a fazê-lo é a tarefa de boa vontade afeta ao homem comum.

Não pretendo ser na presidência da Corte uma voz isolada pregando no deserto como os profetas de Israel. Não sou, seguramente, um anacoreta. Mas, pelo contrário, entendo que a força e o prestígio da Justiça do Trabalho estão na soma dos seus segmentos de política judiciária, na associação de classe dos funcionários, nas Amatras, na Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, na Associação dos Magistrados Brasileiros, na Procuradoria do Trabalho, na OAB, nos vinte e quatro Tribunais Regionais do Trabalho pelo seu Colégio de Presidentes e Corregedores e na moderadora palavra de liderança do Tribunal Superior do Trabalho através dos seus ministros à qual seguirei fielmente.

Esse é o fórum das decisões na área institucional trabalhista.

E, quando recebo a presidência do Tribunal Superior do Trabalho da mãos de Almir Pazzianotto Pinto, à quem sucedo e rendo homenagem, numa linha que vem, no meu tempo de juiz convocado e de ministro nesta Corte, de Marcelo Pimentel, de Prates de Macedo, de Guimarães Falcão, de Orlando Teixeira, de José Ajuricaba, de Ermes Pedro Pedrassani e de Wagner Pimenta, determinadamente pretendo aliar a Corte aos demais Tribunais Superiores, ao lado de Vantuil Abdala e de Ronaldo Lopes Leal, sob a liderança do Ministro Marco Aurélio de Farias Melo, com origem no TST e hoje na presidência do excelso Supremo Tribunal Federal.

Registro que em 1987, sendo vice-presidente do Tribunal do Recife, estive no TST substituindo o Ministro Orlando Teixeira da Costa.

Fiquei atuando na 3a Turma, então sob a presidência do Ministro Carlos Coqueijo Costa, processualista, cronista, compositor, um homem extraordinário. No gabinete de Orlando e sob a presidência de Coqueijo erigi um exemplo para a minha formação que segui, numa linha de demarcação social e justa, como juiz convocado e depois como ministro da Corte.

Foi o meu aprendizado no TST. Estive próximo à fonte e bebi nas taças o generoso vinho de honra de dois grandes mestres brasileiros da magistratura trabalhista, assimilando, desde a minha experiência no Recife, uma tradição crítica da realidade brasileira.

À luz de suas memórias e das suas togas veneráveis, para homenageá-los, renovo, neste momento solene, o meu compromisso com a Justiça do Trabalho, com a sua bela doutrina social, com a sua jurisprudência moderna e com a sua admirável e eficiente estrutura institucional.

Esse compromisso é com os juízes de primeira instância, que elaboram, nas fontes da vida social brasileira, em contato com as partes, a renovação do direito especial; com os juízes dos Tribunais Regionais (dos pequenos e dos grandes Tribunais), que tematizam com profunda consciência social a versatilidade da jurisprudência e por isso oxigenam o direito do trabalho a partir de uma justa visão regionalista, em foro universal, na força de uma rapsódia; com os meus pares, Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, parceiros dos demais poderes da República na grande responsabilidade pública, que federalizam os precedentes judiciais do direito social aplicado no Brasil.

Eis um momento, por outro lado, que tem, pela emoção, uma profunda conotação pessoal e familiar. Então permitam que montando na máquina de Wells, com certa melancolia saudosista, é certo, mas unindo coisas comuns da vida de um juiz de província com obsessivo provincianismo, recupere o passado na reminiscência para completar-me revigorado nas fontes.


Daí porque retorno à minha cidade-ilha de Areia Branca, na costa branca do litoral do Nordeste, onde sopram os ventos alísios. E, na revisita, remonto os sítios familiares e o mar em cuja distância construí, pela vigília, os sonhos primais da infância. É nela, em seu permanente acolhimento, que refaço com alegria a matriz espiritual na memória dos meus pais e no afago dos meus irmãos como oferendas da vida familiar.

E depois Mossoró e Natal na minha juventude ginasiana e universitária nas décadas de 50 e 60. É um tempo, por outro lado, em que a exemplo do autor da Condição Humana fazemos da declamação poética uma declaração política.

Em Mossoró pude articular o futuro e a sua possibilidade. Lá empreendi o processo de compreender e exprimir no ritmo justo das expectativas. Foi em Natal, no entanto, que ao lado de Tânia, no curso de quase meio século de vida comum, fizemos os dois uma família cristã de filhos e netos e neles, enfim, cultivamos o amor ancestral para os ventos da posteridade.

Mais tarde, já na segunda instância trabalhista, o Recife e os seus belos rios urbanos. O Capibaribe e o Beberibe, com seus enigmas evocativos e líricos, na poesia de Manuel Bandeira e de João Cabral de Melo Neto.

Recife de José Guedes Correa Gondim Filho. Recife de Alfredo Duarte Neto. Recife de Paulo Cabral de Melo. A linguagem culturalista e a poesia reconstituindo uma época densa e sensível alentada na lucidez da alma pernambucana e o sentimento do reencontro e da saudade. Ela é a cidade em que teci pelo ofício a linha de vida pública que em 1989 me trouxe à Brasília. E também foi no seu Tribunal do Trabalho que consolidei princípios da magistratura trabalhista unindo estética e filosofia. Pois bem.

Esse é um caminho em cuja volta não me perderei. Sou o protótipo do nordestino migrante em quatro séculos nas sucessivas gerações litorâneas submetidas à força canônica dos que “crêem na esperança para renascerem”.

Não terei, no meu retorno às origens, fronteiras bloqueadas, porque em minha passagem plantei em cada sitio uma árvore que ainda floresce nas últimas estações da vida e cujos frutos colherei ao lado da minha mulher, dos meus filhos, dos netos e amigos em ritual inerente à idéia platônica da “alma do mundo”.

Estou convencido, por isso mesmo, de que a minha investidura na presidência do Tribunal Superior do Trabalho, é também o ato de conciliação do sentimento dessas duas realidades: pois assim me completo como homem inserido na experiência de uma realidade e como magistrado, nas minhas irrenunciáveis origens provincianas (massa de uma compreensão de vida simples) e nas motivações ideais do espírito da grande sociedade nacional pela exata responsabilidade pública na presidência de uma Corte superior de justiça.

É nesse plano que me situo, cônscio da generosidade de ampla libertação pela amizade dos meus pares, neste começo de noite em Brasília. Serei o típico nordestino provincial, enviscado nas concepções gerais de um ofício, às vezes curtindo a triste alegria do meu povo para assumi-la no sentimento regionalista, mas sempre fiel aos critérios morais e cívicos da multicultura nacional, que me tornam um cidadão brasileiro, engajado, pelo juramento, no compromisso público e na transcendência social.

Essa, enfim, é a verdade real e providente, ou um critério moral de princípios, mas sobretudo uma lei prática, cediça em mandamento eclesial, em cujos imperativos erigem-se em discurso de fé os meus padrões éticos, as minhas convicções doutrinárias e, como a vejo, a realidade imanente e o caminho de escolha e de reflexão da magistratura brasileira.

Muito Obrigado.

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