Cheque em jogo

Credor é responsável por provar a autenticidade de cheque

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10 de abril de 2002, 15h08

Quando a veracidade de um título é contestada pelo devedor, o ônus de provar sua autenticidade será do portador. Foi essa a decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo ao julgar uma ação de inexigibilidade de título cambial movida por um cidadão contra um posto de gasolina. A notícia foi divulgada pela jornalista Maíra Evo Magro, no jornal Valor Econômico desta quarta-feira (10/4).

O cidadão afirmava na ação que teve furtado um cheque assinado em branco, mas sustou o título logo após o furto. Apesar disso, o cheque foi protestado por um posto de gasolina, suposto credor. O posto alegou ter recebido o cheque de terceiro, mas não soube especificar o nome do emissor e tampouco comprovar a realização da venda. O dono do cheque foi à Justiça para cancelar o protesto e tornar o cheque inexigível, argumentando que sustou o cheque antes da data de sua emissão.

O Primeiro Tribunal de Alçada Civil deu ganho de causa ao cidadão, considerando não haver motivos para afastar a hipótese de falsidade da cláusula cambial. Com isso, o ônus de demonstrar a autenticidade do cheque seria do posto de gasolina, e não do autor. Como o credor não provou sequer a realização da venda, o tribunal entendeu que o título perderia o valor jurídico.

“O posto não cumpriu a obrigação de verificar a identidade do emissor e nem sequer comprovou a existência do prejuízo, pois não demonstrou que fez a venda”, diz o advogado Ronaldo Gotlib, concordando que, neste caso, quem recebeu o título teria de provar sua autenticidade.

Veja a íntegra do Acórdão

PRIMEIRO TRIBUNAL DE ALÇADA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. SÉTIMA CÂMARA DE FÉRIAS DE JULHO/2001. APELAÇÃO Nº 986.829-1. COMARCA DE RIBEIRÃO PRETO. APELANTE: EDER SEIXAS HANNA. APELADO: AUTO POSTO BLUNDI LTDA. RELATOR: ARIOVALDO SANTINI TEODORO.

Cambial – Cheque – Título objeto de furto – Circulação anômala – Portador que não prova a autenticidade da cláusula cambial – Ação declaratória de inexigibilidade e precedente cautelar de sustação de protesto procedentes – Recurso provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO Nº 986.829-1, da Comarca de RIBEIRÃO PRETO, sendo apelante EDER SEIXAS HANNA e apelado AUTO POSTO BLUNDI LTDA.,

ACORDAM, em Sétima Câmara de Férias de Julho/2001 do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, por votação unânime, dar provimento ao recurso.

Relatório

Ação declaratória de inexigibilidade de título cambial precedida de sustação de protesto ambas julgadas improcedentes pela r. sentença de relatório adotado.

Apelação tempestiva e preparada do vencido com pedido de reforma do decidido. Alega que o título em causa, um cheque assinado em branco, foi objeto de furto. O fato foi comunicado às autoridades logo que conhecido pelo apelante. A data da comunicação não é tardia em relação à emissão do cheque, que se encontrava em branco. A apelada diz que o recebeu de terceiro, mas não sabe de quem se trata, inseriu seu nome como favorecida e não emitiu nenhum documento relativo à venda que diz haver efetuado.

Há resposta.

É o relatório.

Voto

É perceptível que o caso sob exame não comportava deslinde à luz dos princípios que protegem a boa-fé do portador dos títulos cambiais.

Estava sob exame, na verdade, a inexistência do ato cambiário.

“Os direitos do portador – explica MARGARINO TORRES – regulam-se pela sua boa ou má-fé. Incumbe ao devedor, para se exonerar ou restabelecer a própria obrigação, a prova do vício; e ao portador, a de sua boa-fé, para que valha o escrito impugnado (op. cit., 36).

Essa diversidade de tratamento não vigora, entretanto, quando estiver em causa a falsidade da própria assinatura do obrigado (no caso vertente, falsidade da cláusula cambial), pois sendo este o requisito primordial da obrigação ou o elemento exteriorizador da intenção de se obrigar, a sua falsidade induz, não apenas a nulidade, mas a inexistência do ato cambiário sobre o qual incidiu o falso” (ROBERTO BARCELLOS DE MAGALHÃES, “Da defesa na Execução Cambiária”, 1962, José Konfino Editor, rj., pág. 219, Nº 159).

No caso vertente, nenhum motivo em contrário existia para afastar a alegação de falsidade da cláusula cambial. Havia nos autos o suficiente para conferir credibilidade à afirmação de que a folha do cheque fora furtada do apelante.

Então, “incidindo a falsidade sobre a assinatura do obrigado ou a cláusula cambiária, a doutrina, de um modo geral, inclina-se a atribuir o ônus da demonstração da sua autenticidade ao excepto, isto é, ao autor (ou seja, ao autor da execução,exeqüente) portador do título incriminado” (BONELLI, Della Cambiale nº 54, página 111; GIANNINI, Azioni ed eccezioni cambiarie, nº 136-149, págs. 272 e segs.; RAMELLA, Trattato Del titoli all’ordine, nº 85, pág. 153; COSACK, Traité de Droit Commercial, 1905, vol. II, par. 53, pág. 69). É também esta a lição de VIVANTE: “Quando o devedor nega a própria firma, fazendo oposição ao preceito, cessa a razão essencial sobre que se fundava a força executiva do título contra ele, visto que o seu ato de vontade de sujeitar-se à lei cambial (e que constituiria a causa de sua submissão à execução imediata), torna-se incerto na sua existência. Então, será necessário que o credor prove (por se tratar de instrumento particular) o que não está por si mesmo provado (ou amparado em presunção que a lei apenas confere à data), isto é, a autenticidade da firma do seu devedor (ou, como no caso, temporariamente, ficará suspensa” (Trattato, vol. III, nº 1357, pág. 537, 3ª ed.).

A inversão da carga da prova ou da sua devolução ao demandante decorre de um imperativo de sentido ético-cambiário que, no dizer de MARGARINO TORRES, via aumentar o prestígio e facilitar a circulação do instrumento de pagamento. Assim, o portador terá de provar verdadeiros, quando impugnados, os elementos essenciais da intenção cambial do acionado, se este é o emitente, incumbe ao credor provar a veracidade do quanto importe à existência do crédito cambial, como a determinação expressa, a assinatura do devedor ou de legítimo representante, e a data, quando afete a capacidade do signatário (op.cit., pág. 43) (ROBERTO BARCELLOS DE MAGALHÃES, op. cit., nº 164, págs. 230/1.

No caso vertente, afirmada a falsidade da cláusula cambiária e nada provando em contrário o credor, ora apelado, é bem de ver que, incidindo o falso sobre requisito cambiário essencial, desnaturando juridicamente o título, a conseqüente retirada da sua existência legal impedia, inclusive, que circulasse eficazmente. Daí nada valer ao apelante a alegação de que terceiro de boa-fé, porque, mesmo assim, a conseqüência da falsidade é desobrigar-se o devedor cambiariamente.

Com essas considerações, deram provimento ao recurso, julgaram procedentes as ações e inverteram o ônus da sucumbência.

Presidiu o julgamento o Juiz BARRETO DE MOURA e dele participaram os Juízes NELSON FERREIRA e SEBASTIÃO ALVES JUNQUEIRA.

São Paulo, 31 de julho de 2001.

ARIOVALDO SANTINI TEODORO

Relator

Fonte: Valor Econômico

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