Cidadania em evolução

Procurador aborda abusos na administração e evolução da cidadania

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5 de abril de 2002, 13h30

Diz o artigo 37, caput, da Constituição Federal que a administração pública deve reger-se, dentre outros, pelos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade. Ora, nada mais avesso a tais princípios, que dizem essencialmente com a própria idéia de República, e ao regime democrático mesmo, que a instrumentalização da administração pública em função de interesses particulares ou político-partidários.

Resta ver o quão efetiva é a afirmação de princípios feita pela Constituição. Não podemos esquecer que os textos legais entre nós, e especialmente os textos constitucionais, muitas vezes encontram-se dissociados da realidade, ou são por esta freqüentemente atropelados.

É sabido que freqüentemente verificam-se infrações a esses princípios, sendo a administração “loteada” entre aliados dos respectivos governos, enquanto os adversários políticos são tratados a pão e água. Nesses casos, o interesse público é o que menos importa. Vigora freqüentemente o “é dando que se recebe” e a máxima segundo a qual se deve dar “aos amigos tudo e aos inimigos, a lei”.

Isso não é novo em nosso país. Na verdade, já nas primeiras décadas de vida política independente, especialmente a partir das reformas centralizadoras de 1840/1841 e durante todo o Segundo Reinado, a máquina pública passou a ser posta a serviço do favorecimento dos candidatos do governo nas eleições.

O partido que estava no governo sempre ganhava as eleições. Só não havia a perpetuação de um único partido no poder graças ao exercício do poder moderador por parte do monarca, que de tempos em tempos destituía o Ministério, trocando conservadores por liberais, e vice-versa. O partido que galgava ao poder, como era de praxe, realizava novas eleições e sempre conquistava a maioria no Parlamento, utilizando abertamente o aparelho estatal.

Desnecessário dizer que a cidadania naquela época era algo que não existia, o que levou um pensador francês, Louis Couty, a proclamar então: “o Brasil não tem povo”. Instaurada a República, a utilização do aparato administrativo do Estado para favorecer os partidários do governo prosseguiu de modo assemelhado, por muito tempo, com o predomínio incontestado das oligarquias regionais.

O que há de novo atualmente em nosso país são os progressos feitos no sentido da afirmação da cidadania e dos princípios republicanos. Um marco fundamental foi a edição da Constituição de 1988, superando décadas de autoritarismo. Afirmou de modo vigoroso a separação de poderes; estabeleceu um significativo rol de direitos individuais e sociais; fortaleceu o Poder Judiciário e robusteceu notavelmente o Ministério Público, conferindo-lhe substanciosos poderes e enormes responsabilidades, pondo-o a ativamente a serviço da sociedade e da defesa da cidadania.

São visíveis os progressos experimentados desde 1988. Vale destacar aqui a edição em 1992 da Lei da Improbidade (Lei 8429) visando justamente reprimir as violações aos princípios constitucionais que regem a administração pública, sujeitando os responsáveis ao ressarcimento ao erário, assim como à perda da função pública e à suspensão dos direitos políticos.

Essa lei “pegou” e tem sido um importante instrumento de moralização dos costumes políticos. Há em curso no país um grande número de ações de improbidade, movidas contra governantes dos mais diversos níveis de poder. Verifica-se o robustecimento, no mesmo passo, da cidadania.

Outro fato importante que merece ser realçado é a revogação da Súmula 394 pelo Supremo Tribunal Federal, ocorrida em 1999. Essa súmula garantia a manutenção do foro privilegiado perante os tribunais superiores para ex-titulares de cargos públicos, por fatos praticados durante o exercício da função pública.

Em face da grande sobrecarga de processos existentes nesses tribunais (como regra geral, os membros desses tribunais têm que julgar milhares de processos por ano) e da complexidade que cercam as ações penais, esse privilégio de foro constituía quase que uma garantia de impunidade. Para inquietação de muitos, essa garantia desapareceu, favorecendo-se assim a punição criminal em face de desmandos praticados no exercício de mandato ou de cargo em comissão.

Muitos abusos ainda se cometem, especialmente em períodos eleitorais, e não apenas no âmbito do Executivo. Mas o caminho está traçado. Com o fortalecimento da cidadania, os ímprobos, hoje, já não dormem sossegados. Pode se dizer que uma revolução silenciosa está em curso em nosso país.

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