Voracidade do leão

Fisco: Advogada critica acesso a informações dos contribuintes.

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3 de abril de 2002, 21h33

Com muito barulho, diversas notícias e artigos foram publicados nos jornais e revistas, abordando a questão da quebra do sigilo bancário que, de certa forma, teria sido facilitada em benefício da administração tributária.

Se examinarmos as regras que estavam em vigor antes da promulgação da Lei Complementar nº 105, de 10.01.2001, bem como em face das alterações introduzidas no Código Tributário Nacional, por força da Lei Complementar nº 104, também de 10.01.2001, houve uma profunda flexibilização a favor do Fisco, no acesso aos dados dos contribuintes.

Do ponto de vista prático, essas alterações legislativas foram o ápice de um silencioso e gradativo processo iniciado há mais de cinco anos, sem que a maioria dos contribuintes percebesse a criação e implementação de uma grande malha de coleta de dados, fundamentais para o sistema de administração tributária, fundamentada no artigo 145 da Constituição Federal.

A partir de 1995, com base no art. 37 da Lei nº 9.250/95, a Receita Federal foi autorizada a celebrar, em nome da União, convênio com os Estados, Distrito Federal e Municípios, sob o pretexto de instituir o cadastro único de contribuintes, apertando o cerco no fornecimento de dados e de documentos para a inscrição no, à época denominado Cadastro Geral de Contribuintes (CGC), passando então a adotar sérias exigências para a obtenção do CGC, renovação ou baixa do mesmo, vinculando o deferimento dos pedidos ao cumprimento de obrigações tributárias, principais e acessórias, junto à Receita Federal, da pessoa física responsável e dos sócios da empresa, sejam esses pessoas físicas ou jurídicas.

Essas exigências estenderam-se, também, para os casos de alterações nos dados da pessoa jurídica inscrita, inclusive no seu quadro societário, como por exemplo, alterações de endereço da sede, no contrato social ou estatutos, na composição societária ou ainda, na administração da empresa, atos de fusão, cisão ou incorporação, etc..

Existindo qualquer pendência junto à Receita Federal, em nome da empresa ou em nome de sócios com participação societária superior a 10%, ou, ainda, de seus administradores e procuradores ou representantes legais, tal fato se transforma em um pesadelo para a renovação da inscrição e até para o arquivamento do ato junto à Junta Comercial, por exemplo.

Apertando a malha, em 1997 a Receita Federal passou a trabalhar com novos conceitos de enquadramento da inscrição no ainda denominado Cadastro Geral de Contribuintes, introduzindo as classificações da situação cadastral das empresas, através das seguintes denominações: “ativa” (regular ou não regular); “inapta”; “suspensa” e “cancelada”.

Para se ter uma breve noção sobre as conseqüências de uma eventual classificação da empresa como “inapta”, esta não consegue renovar sua inscrição, afeta um eventual pedido de registro de outra pessoa jurídica da qual ela venha a participar, ou de que seus sócios ou administradores venham a integrar, acarretando, ainda, efeitos punitivos como:

a) impedimento para essa empresa “inapta” transacionar com estabelecimentos bancários, inclusive em termos de livre movimentação de sua conta corrente;

b) Estará impedida de transmitir a propriedade de bens imóveis;

c) Não produzirá efeitos tributários em favor de terceiros interessados (leia-se, não serão aceitos pelo Fisco para fins de dedução, abatimento, redução, compensação, etc.) os documentos que essa empresa considerada “inapta” emitiu, salvo se o adquirente de bens, direitos, mercadorias ou serviços, por ela fornecidos, comprovar ao Fisco a efetivação do pagamento do respectivo preço e o recebimento dos bens, serviços ou direitos.

Por outro lado, como resultado dos convênios firmados com os Estados, Distrito Federal e Municípios, a Receita Federal, sem nenhum alarde, passou a dispor do poder de coletar, armazenar e disponibilizar informações cadastrais de natureza fiscal, sobre os contribuintes, para as Secretarias de Fazenda, Finanças ou Tributação, bem como para o INSS. É muito importante salientar que, em consonância com o espírito da formação de um cadastro geral para fins fiscais, a partir de julho de 1998 o então CGC recebeu a nova denominação para Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ.

Assim, foi aberta a porta de acesso a uma série de informações relevantes a respeito dos contribuintes, extraídas dos dados constantes nos cadastros existentes nesses órgãos, no que diz respeito aos registros e arrecadações de suas competências, permitindo, dessa forma, o cruzamento de dados.

Exemplos concretos são os recentes convênios assinados pela Receita Federal com a Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, de São Paulo, e com a Prefeitura de Ribeirão Preto, SP, tendo, no primeiro caso, por objetivo criar uma inscrição fiscal única para as empresas (pessoas jurídicas), e, no segundo convênio, a troca de informações a respeito das empresas instaladas no aludido Município. Também vale destacar interessante efeito gerado pelo Protocolo assinado entre representantes dos fiscos estaduais e os do Distrito Federal, gerando a obrigatoriedade do fornecimento de informações, por parte das administradoras de cartões de crédito ou de débito, sobre as operações realizadas com estabelecimentos contribuintes de ICMS.

Somando-se todas essas informações com as existentes no sistema bancário e financeiro, mercado de capitais e de valores, em função da enorme movimentação financeira, o volume de dados disponível para a administração tributária foi sendo formado como bola de neve, tornando-se por demais significativo, fazendo com que se transforme em mera figura de retórica a questão do sigilo bancário ou de dados.

Cabe lembrar que além desses mecanismos de informação acima exemplificados, e as conseqüências embutidas quando houve a opção pelo Programa REFIS, também é facultada ao Fisco a instituição de medidas como o chamado “arrolamento de bens e direitos” do contribuinte (pessoa física ou jurídica), caso existam créditos tributários, antes mesmo da inscrição em dívida ativa, que superem em 30% o valor do patrimônio conhecido do referido contribuinte, ou ainda, se houver a opção pelo REFIS, quando o débito tributário for superior a R$ 500 mil.

Esse “arrolamento” fatalmente implica no bloqueio dos bens da pessoa sujeita à medida, a qual fica obrigada, a partir do recebimento da notificação sobre o ato, a comunicar ao órgão fazendário qualquer ato que se relacione à venda, transferência ou alienação de seus bens a terceiros.

Não param aí as novidades: o longo braço do Fisco está ficando cada vez mais extenso e cruel, pois atualmente já se encontra em pleno funcionamento o denominado “BACEN JUD”, sistema eletrônico criado e administrado pelo Banco Central do Brasil que, além de permitir ao Judiciário a solicitação de informações via Internet para ter acesso aos dados dos clientes das instituições financeiras, em face de convênio assinado com o Superior Tribunal de Justiça e o Conselho de Justiça Federal, também faculta a tramitação célere de pedidos de quebra de sigilo bancário de correntistas, com atendimento imediato de ordens judiciais de bloqueio e desbloqueio de contas correntes e de valores depositados nas instituições financeiras.

Considerando-se que para saciar a voracidade do Leão, interessa cada vez mais a agilidade na obtenção de resultados efetivos em seus executivos fiscais, deve-se imaginar também a extensão das conseqüências que virão, utilizando-se mais esse instrumental, recentemente disponibilizado.

Por último, é importante lembrar que em meados de maio deste ano expira-se o prazo para a entrega, ao Banco Central do Brasil, da declaração de bens e de valores detidos no exterior por pessoas (físicas ou jurídicas) residentes, domiciliadas ou com sede no Brasil. Tal declaração é obrigatória e a não apresentação, ou prestação de informações incorretas ou falsas, sujeita a pessoa ou empresa a pesadas multas. E mais, também apoiados em convênios internacionais, até em razão da necessidade de coibir a “lavagem de dinheiro”, hoje os Bancos Centrais dos diversos países se comunicam…É fácil imaginar o resultado.

Considerando que as informações solicitadas para essa nova declaração são mais completas e atualizadas, se comparadas com as normalmente informadas para a Receita na declaração anual de rendimentos, especialmente no caso das pessoas físicas, é natural a grande pergunta que passou a freqüentar a mente dos contribuintes: haverá o cruzamento das informações, mais uma vez?

Para concluir, com todos esses sistemas de dados e de controles desenvolvidos exclusivamente para a administração tributária nacional, devemos fazer uma comparação, ainda que poética, com a sociedade prevista pelo escritor George Orwel em seu livro de ficção cientifica, “1984”, onde os seres humanos sobreviviam debaixo de permanente vigilância e eternamente submetidos ao controle de uma entidade denominada “Grande Irmão”.

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