Danos múltiplos

Família Rubens Paiva vai ser indenizada com 30 anos de atraso

Autor

7 de setembro de 2001, 11h29

Uma decisão da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região assegurou indenização, por danos material e moral, à viúva e aos cinco filhos do ex-deputado Rubens Paiva, torturado e assassinado durante a ditadura militar.

Em sua decisão, como relata o repórter Paulo Roberto Araújo, do jornal O Globo, o TRF determinou que a União pague à esposa R$ 3 mil, multiplicados pelo número de anos correspondentes à expectativa de vida do ex-deputado, levando-se em conta a sua idade (32 anos) à época do desaparecimento (janeiro de 1971)

A decisão também inclui na indenização o valor das despesas com que a família teve de arcar tentando localizar o paradeiro da vítima, mais 350 salários-mínimos a cada um dos beneficiados pela decisão, a título de reparação “pela dor da perda brutal de seu ente querido e brutal pressão a que foram submetidos”.

Além disso, a viúva receberá o valor referente a uma apólice de seguro de vida contratada por Rubens Paiva pela Atlântica Cia. Nacional de Seguros, que nunca havia sido saldada, e mais uma pensão vitalícia do INSS, correspondente aos descontos mensais que Rubens Paiva fazia para a Previdência. A decisão da 6ª Turma foi proferida nos autos da apelação apresentada pela União contra sentença da Justiça Federal do Rio.

Leia o relato do calvário vivido pela família do deputado assassinado feito pelo escritor Marcelo Rubens Paiva em entrevista à revista Caros Amigos.

Chumbo grosso

Cláudio Júlio Tognolli – Teu pai sumiu no dia 20 de janeiro de 1971, primeiro levado para o CODI, Centro de Operações de Defesa Interna, da Aeronáutica, e dois dias depois para a 3ª Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, e teria ficado na mão do coronel João Paulo Burnier, que foi quem matou o Stuart Angel Jones…

Marcelo – Não. Ele foi levado pelo Serviço de Informações da Aeronáutica para…

Tognolli – O CISA (Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica)?

Marcelo – É, o CISA, direto para o aeroporto Santos Dumont. Lá começou o interrogatório com o Burnier e no dia seguinte ele foi levado ao DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), no fundo de um carro, sangrando. Foi torturado essa noite, na Aeronáutica, e no dia seguinte torturado de novo no DOI-Codi, na Barão de Mesquita, 3º Exército, onde morreu.

Tognolli – Os nomes que mais aparecem são o do Burnier, até pelo passado dele – provaram que foi ele que fez o Stuart Angel Jones “fumar” um escapamento de jipe até morrer -, e o do Carlos Alberto Brilhante Ustra. A pergunta é: quem você acha que cometeu o crime, o Burnier ou o Ustra?

Marcelo – O negócio é o seguinte: meu pai foi presidente da CPI do IPES-IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática), presidente ou relator, agora não tenho certeza…

Tognolli – Maio de 63….

Marcelo – Sim, ele era deputado, tinha 32 anos e a CPI investigava o dinheiro aplicado por esses institutos, dinheiro vindo dos Estados Unidos para preparar, de certa maneira, o clima para o golpe de 64. O IBAD financiava uma série de palestras e de escritores para escreverem artigos cabalísticos avisando da “ameaça vermelha” que o Brasil corria e meu pai começou a descobrir esses cheques nas contas de alguns militares. Houve o golpe, meu pai se exilou na embaixada da Iugoslávia, ficou três ou quatro meses esperando salvo-conduto, foi para a Iugoslávia, e depois para Paris. Passados seis meses, enquanto a família não sabia se tinha de ir para o exílio ou não, ele pegou um avião para Buenos Aires, ia se encontrar com o Jango, o Brizola, que estavam lá, e esse avião fez uma escala no Rio de Janeiro: ele disse à aeromoça que ia comprar cigarro, saiu do avião, pegou uma ponte aérea e desceu em São Paulo, aparecendo em casa de surpresa. E dizendo: “Entrei no Brasil, estou no Brasil, vou ficar no Brasil”. Mudamos para o Rio de Janeiro, ninguém mexeu nele, voltou a exercer a engenharia, aos seus negócios, mas sempre fazendo contatos com os exilados, viajava muito para a Europa, para o Uruguai, não lembro se chegou a ir ao Chile, e quando o Burnier pegou ele em 20 de janeiro de 1971, foi um clima já de revanchismo, do tipo: “Opa, agora estamos cara a cara”.

Tognolli – Por causa do acontecido oito anos antes com o IBAD.

Marcelo – Exatamente. Foi uma coisa meio de acerto de contas.

Carlos Azevedo – O Burnier estava na lista dos que tinham cheques do IBAD na época?

Marcelo – Não sei. Mas a frase “Ô, deputadozinho, estamos aqui finalmente com o senhor…” É, “deputadozinho” – a frase foi revelada por alguém que esteve presente nessa seção de tortura e que contou em off para uma jornalista.

Tognolli – O ministro da Justiça de então, Alfredo Buzaid, encerrou as investigações sobre o caso em 1972. Em 1978, tua mãe obteve o depoimento de um investigador do caso que disse ter sofrido pressões para parar com aquilo. Aí tua mãe pediu reinvestigação, em 1978 mesmo. Que pressões você, as tuas irmãs, a tua mãe sofreram esse tempo todo, quais as pessoas envolvidas, o que te vem à memória quando falo em pressão?


Marcelo – O Buzaid era amigo do meu avô, os dois eram de Santos, ambos do mercado alfandegário. Ele na época recebeu meu avô e disse: “Calma, doutor Jaime Paiva, o seu filho sofreu alguns arranhões, nós estamos cuidando dele, já-já ele será solto”. Mas nada fazia sentido. Nem o fato de ele não ter sido solto nem o fato de 24 horas depois da prisão ter sido morto. Surgiu a versão pré-fabricada de que ele havia escapado de um cerco com seus “colegas terroristas” quando se fazia uma transferência de prisão, houve “troca de tiros” e ele “evadiu-se da viatura”…

Tognolli – A versão de que havia sido seqüestrado.

Marcelo – Exatamente. Minha mãe e minha irmã Eliana ainda estavam presas quando eles deram essa versão, que chegou pronta para os jornais, a ordem era publicar com fotos e tudo. Quando minha mãe saiu do DOI-Codi, treze dias depois, os amigos dela falaram: “Olha, saiu uma versão nos jornais de que o Rubens fugiu”. Começou a procura e o kafkianismo. Minha mãe voltou ao DOI-Codi: “Bom dia, o senhor se lembra de mim? Estive presa aqui…”. “Não, a senhora não esteve presa aqui..”. Passou a ficar mais claro que a coisa havia sido mais violenta do que se pensava – isso é importante, naquela época não se sabia do caso de desaparecidos, sempre se negava a tortura, as pessoas das organizações de esquerda tinham consciência disso, mas a sociedade em geral não tinha. Desaparecimento, tortura eram coisas vagas. Minha mãe viu o pau-de-arara, viu sangue, foi interrogada na mesma sala em que as pessoas eram torturadas, ela não foi torturada mas ouviu gritos no DOI-Codi e viu o retrato do meu pai nas fichas de reconhecimento e imaginou que ele tivesse enfrentado aquela violência toda. Aí começa a tortura psicológica, de má-fé ou de loucura mesmo, por exemplo um piloto de avião que garantia ter transportado meu pai para Fernando de Noronha, uma pessoa que viu meu pai na Bolívia como mendigo, a empregada de uma amiga da minha mãe que viu meu pai num boteco da esquina tomando café, o major que ofereceu informações em troca de dinheiro para o meu avô dizendo que meu pai estava vivo e que ia fazer de tudo para soltá-lo. Mas, pela lógica, estava mais ou menos implícito que ele tinha sido morto, havia as informações em off de jornalistas, um deles entrevistou o comandante do 3º Exército, nem lembro qual era, que disse que meu pai foi morto, o corpo esquartejado, disse que viu minha mãe de capuz, entendeu? E nessa cola de informações tinha as duas coisas: a vontade de que ele estivesse vivo e a dura realidade de que estivesse morto. Porque nada fazia sentido, levávamos uma vida totalmente civil, morávamos em frente à praia no Rio de Janeiro, a casa era totalmente aberta. Quando os agentes do Serviço de Informações da Aeronáutica invadiram a casa, estava toda a família, a empregada, eu, minhas irmãs. Era feriado, 20 de janeiro, dia de São Sebastião, dia de sol, todo mundo se preparando para ir pra praia, os caras entraram com metralhadoras, depois viram que aquilo não era nenhum “aparelho”, ficaram calmos, daí deram ordem de prisão ao meu pai: “O senhor está convocado para prestar depoimento”. Ele até falou: “Mas, cadê a ordem escrita?” “Não tem ordem escrita.” “Então, calma, vou trocar de roupa.” Meu pai saiu de terno, gravata, caneta, relógio, charutos no bolso, e foi guiando o próprio carro, carro que depois recuperamos no DOI-Codi, com recibo do oficial de plantão, quer dizer, era a prova de que meu pai havia sido preso, porque antes eles negavam a prisão. Então, não havia lógica. E meu pai não tinha participação efetiva em nenhuma organização de esquerda, era contra a luta armada, era um burguês socialista, eleito deputado aos trinta anos de idade pelo PTB de São Paulo, mas era do PSB, partido que tinha cinco pessoas, dizia-se que a reunião do PSB cabia numa Kombi. Não tinha nenhuma relevância no combate à ditadura, era um empresário rico, que tinha um aviãozinho e que ajudou algumas pessoas, especialmente a filha de Bocayuva Cunha, um de seus melhores amigos, a Helena Bocayuva, que foi fiadora da casa onde ficou o embaixador americano seqüestrado, Charles Elbrick; ajudou essa menina a sair do Brasil, ela foi para o Chile, de lá escreveu uma carta de agradecimento. Alguns dizem que havia a presença do Cabo Anselmo na reunião no Chile em que ela falou da carta, o Cabo Anselmo ligou imediatamente para o delegado Fleury. Não sei se é verdade ou não, mas o Cabo Anselmo a essa altura já era agente duplo, conseguia ser ainda da direção da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), apesar dos alertas de vários militantes da própria VPR. O Onofre Pinto, que era o comandante-chefe da VPR, se recusava a acreditar que o Cabo Anselmo fosse agente duplo. Acontece que a carta foi interceptada ainda no avião. Quando esse avião pousou no Rio de Janeiro, ligaram para a nossa casa, e deu-se o que eu acabei de narrar.


Marina Amaral – Quando a tua mãe foi presa, por que a tua irmã Eliana foi levada junto? O que aconteceu…?

Marcelo – Isso é uma coisa que só matei a charada quatro anos atrás. Porque a minha vida inteira esse caso era vivo, era relembrado. Por exemplo, quando eu estudava na Unicamp, chegava alguém e falava: “Teu pai era um herói”, e eu “Nossa!”, um cara da Convergência Socialista, com quem eu não tinha a menor intimidade, a menor identificação. Recebi carta de um outro falando: “Teu pai não entregou o ponto”, entendeu? Ou “Graças a ele muitos de nós estão vivos”, e eu não entendia exatamente como era esse envolvimento. A própria Heleninha Bocayuva me contou que ele a ajudou, alugou para ela um apartamento em São Paulo, um “aparelho”, e que conseguiu traçar uma rota de fuga para ela ao Chile. O que estava acontecendo com meu pai é que, por ser um empresário bem-sucedido e ter ajudado essa menina quando o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro) decidiu se retirar em massa do país ao ver que a guerra estava perdida, no começo de 1971, provavelmente ele acionou seus esquemas para viabilizar as rotas de fuga, e provavelmente começou a ter encontros com algumas pessoas do MR-8, para, sei lá, sugerir, falar: “Olha, talvez vocês consigam ir pelo Paraguai”. Porque pelo Uruguai a rota de fuga estava queimadíssima etc. E, quando foi preso, provavelmente logo perguntaram, como acontecia nesses interrogatórios, sobre os encontros, pontos e aparelhos, e como no DOI-Codi já rolava uma selvageria sem nome, levaram minha mãe e minha irmã para torturar as duas diante dele.

Marina Amaral – E isso não aconteceu?

Marcelo – Não, porque ele morreu antes.

Verena – Você disse que desde que seu pai voltou do exílio ele trabalhou normalmente, então essa prisão foi em função de denúncia de um dos grupos que ele poderia estar apoiando ou simplesmente uma vingança dos militares?

Marcelo – A prisão dele foi uma coisa bem técnica, foi a carta vinda do Chile para ele, de uma exilada.

Verena – Foi por causa disso, você acha?

Marcelo – Acho, não, tenho certeza. A pessoa que trouxe a carta também foi presa, presenciou a sessão de tortura do meu pai, apesar de nunca nos ter contado isso, só disse isso agora no Fantástico, há duas semanas, nunca contou para nossa família, ao contrário, até escreveu para minha mãe dizendo que não viu nada, que não sabia de nada.

Sérgio – Quem é essa pessoa?

Marcelo – Cecília Viveiros de Castro, a carta não veio com ela, veio com a nora, que viajava junto com ela, não sei o nome dessa outra.

Sérgio – Ela nunca disse isso à sua família, por que só foi falar agora?

Marcelo – Porque ela sabe que a gente nunca a perdoou, escrevi isso no Feliz Ano Velho, ela ficou com mágoas e resolveu falar agora, depois de 27 anos.

Sérgio – Desculpe, então, se eu entendi errado: ela era a pessoa que estava portando a carta?

Marcelo – Não sei se era ela ou a outra.

Sérgio – E foi identificada já no avião, e ao desembarcar foi presa. Em seguida vão apanhar seu pai.

Marcelo – Isso.

Sérgio de Souza – Ela teria telefonado para a casa de vocês, antes.

Marcelo – Não foi ela que telefonou.

Sérgio de Souza – Ela diz no depoimento ao Fantástico que a polícia a obrigou a telefonar para se certificar da presença de seu pai em casa.

Marcelo – Mentira, foi uma delegada que ligou. A carta estava com o codinome de meu pai, já que ele entrara para essa suposta linha de auxílio de uma organização de esquerda. Eu até já soube qual era o codinome, mas não lembro mais, e provavelmente perguntaram: “Quem é essa pessoa?” E a portadora da carta disse que era meu pai.

Sérgio – O que você chamou de mágoa da família é o fato de, passados tantos anos, ela nunca ter relatado claramente o que houve?

Marcelo – Não, sabíamos que meu pai tinha sido preso por causa da carta que ela trouxe. Sabíamos que ela estava ao lado do meu pai no interrogatório, mas ela nunca nos disse, e a grande tortura da minha família foi essa de não saber o que aconteceu, se ele realmente foi preso ou se estava vagando pelas ruas da Bolívia, a informação dela seria preciosíssima para dizer: “Não, ele apanhou muito…”, – que foi o que ela disse no Fantástico, eu não vi o Fantástico, me contaram. Mas, se ela tivesse dito para nós: “Não, ele apanhou muito”, já era suficiente para imaginarmos o que tinha acontecido. E ela era amiga da minha mãe, era professora das minhas irmãs.

Marcelo – Ela sempre negou, não atendia os telefonemas, depois escreveu uma carta para minha mãe em que ela dizia que eles realmente estiveram presos, mas que não lembrava, que desmaiou e não lembrava de nada. Então, para nós ela disse, em 1971, que desmaiou e no Fantástico revelou a verdade pela primeira vez.


Sérgio – Tem uma coisa que está me aguçando as idéias: afinal, que credibilidade têm hoje pessoas que dizem aos jornalistas: “eu estava na sessão de torturas, foi fulano que bateu”? Essas pessoas teriam a credibilidade de ser os que estavam lá, ou é mais uma mentira, mais um boato, mais uma inverdade?

Marcelo – Olha, descobri que esse caso Rubens Paiva, na verdade, pertence muito mais ao imaginário dos militares do que à família. Já é um caso resolvido para a família há muito tempo, mas para os militares é um caso entalado na garganta. Não só para os militares, mas para as pessoas que apoiaram o golpe, para o braço civil do regime e mesmo para os militares que não tiveram nenhum tipo de envolvimento com a tortura. Essa informação de “eu fui o motorista que dirigiu o caminhão que levou o corpo de seu marido até o local tal” minha mãe já escutou dez vezes. A de que “eu enterrei…” já ouvi de umas vinte pessoas; a de que “eu estive presente”, de umas quarenta pessoas.

Sérgio de Souza – Desde quando vem isso?

Marcelo – Desde a década de 80. A primeira pessoa a falar foi o Amílcar Lobo, em 1986, aquele psiquiatra que deu entrevista à Veja.. Foi a primeira vez que se ouviu de lá de dentro o que realmente aconteceu. A partir dali começaram várias pessoas a querer ser testemunha de um fato importante. No começo, a gente tinha certo interesse em ouvir, mas já nos fizeram de palhaço em várias ocasiões, especialmente a imprensa.

Sérgio de Souza – Por exemplo?

Marcelo – A Veja, por exemplo, não custava nada nos ter avisado que tinha essa história do Amílcar Lobo. Até para checar as informações, né? Então, um dia eu estava com o Cazuza, no Baixo Leblon, num bar, enchendo a cara, fui até a esquina comprar a Veja, voltei, quando olho a capa é a foto do meu pai. De repente eu, com um amigo, lendo sobre a morte do meu pai, quer dizer, não custava nada eles terem dito antes que iam publicar, foi muito dolorido. Tudo bem, meu pai não é apenas meu pai ou o marido da minha mãe, é uma personalidade cuja trajetória é marcante para o país, entendo isso. O Cony até fala: “Teu pai é um dos maiores mártires desse período”.. E agora eu entendo por que, porque foi exatamente o que aconteceu com a maioria silenciosa, quer dizer, ele não chegou a ser um combatente armado, mas por ter colaborado sofreu o que sofria quem estava combatendo com armas nas mãos.

Tognolli – Tenho uma inconfidência que acho que deve ser colocada nesse ponto: há uns dois meses você recebeu um fax do Antônio Carlos Magalhães em resposta ao que você falou quando estreou tua peça E Aí, Comeu?, no Rio de Janeiro. O que você falou que convocou os escrúpulos dele daquela maneira?

Marcelo – É aquele imaginário que citei, ele faz as pessoas, de uma certa maneira, sentirem muita culpa em relação a esse caso.

Rui Mendes – Seu pai tinha acesso a todo mundo, tanto da direita quanto da esquerda.

Marcelo – Ele não era da esquerda radical, tinha diálogo, era amigo do ACM, do Sarney, era um parlamentar, um político.

Tognolli – Mas e o ACM?

Marcelo – Os dois eram também colegas de Câmara e eu tinha informação de que o ACM levava os jornais para a embaixada da Iugoslávia, onde meu pai e mais uma série de pessoas estavam exilados. Quando o repórter do Jornal do Brasil me perguntou se eu tinha alguma mágoa, falei que não, porque essas pessoas cometeram erros, não imaginavam no que ia dar e, engraçado, não fico constrangido, essas pessoas é que ficam constrangidas quando me vêem. O Jarbas Passarinho ficou, quando eu o entrevistei para a Folha e no Roda Viva. O Maluf fica. O ACM ficou, uma vez em que fui numa cerimônia no Palácio do Planalto ele estava cabisbaixo, me cumprimentou emocionado e citei isso na entrevista ao JB. Aí ele me mandou um fax perguntando se eu, “tão jovem”, estava ficando esclerosado, que ele não fica triste quando me vê, ao contrário, e narra os encontros que teve com meu pai, foi isso.

Sérgio – Você disse que a morte de seu pai está presente no imaginário muito mais dos militares do que da família. É por ser maior do que outros casos, o Herzog, enfim, que também foram de projeção?

Marcelo – O Herzog foi provado que forjaram o suicídio. Rubens Paiva ninguém sabe onde está o corpo. Até o Guevara já acharam. E o Rubens Paiva não vão achar. Tenho certeza disso.

Sérgio de Souza – Você não acredita na versão do Fantástico?

Marcelo – Ela é o que a gente já sabia há muito tempo, já havia a informação de que meu pai tinha sido enterrado na Quinta da Boa Vista. Já houve uma escavação lá.

Sérgio – E aquela no governo do Brizola?

Marcelo – Aquela foi na Barra da Tijuca. Mas já tivemos informação de que ele foi enterrado no Recreio dos Bandeirantes, na Barra da Tijuca, e teve a informação do Amílcar Lobo de que ele foi esquartejado.


Sérgio de Souza – A da Barra é de quem?

Marcelo – Isso apareceu em 1986, não lembro de quem foi, e teve também motorista de caminhão que levou, etc. O Nilo Batista fez as escavações na praia, encontrou alguns ossos. Ele disse à minha mãe que o que identificaria o meu pai seria uma fratura no fêmur. E viu uma ossada com fratura no fêmur. Essa ossada foi para o IML, e permaneceu lá sob guarda da Polícia Federal, isso era 1986, um ano depois da redemocratização entre aspas, ainda havia muita pressão dos militares para que o caso não fosse resolvido. Então apareceu o laudo de uma delegada da Polícia Federal dizendo que aquela ossada era de um animal. O Nilo Batista, que era secretário de Segurança do Rio, governo Brizola, ligou para a minha mãe e falou: “Era a ossada e ela foi trocada”. Então vou falar uma coisa que pode chocar muito as pessoas, mas, se você parar para pensar, ela faz sentido: minha família não tem o menor interesse em saber onde está essa ossada. Talvez até tivesse anos atrás, hoje em dia não tem o menor interesse. Já resolvemos isso na nossa cabeça. Não queremos fazer outro enterro. Estamos enterrando essa figura, esse meu pai, há anos, e foi dolorido a gente enterrá-lo. Tivemos o atestado de óbito só em 1996, depois da Lei dos Desaparecidos. As informações até hoje estão sendo montadas. É uma morte que não pára nunca de acontecer. Entendeu? Meu pai era o cara mais bem-humorado, bonachão, anárquico, amigo de todos. Ele não era um crânio, não me vejo diante de um legista me entregando um pedaço de osso e falando: “Este é seu pai”. É evidente que existem legistas que sonham em encontrar essa ossada, existem jornalistas que sonham, desde o Pena Branca, muitos amigos meus jornalistas já tentaram. A própria sociedade brasileira, em muitos casos, também quer encontrar. Mas a família não faz a menor questão. Ironicamente, os militares tiveram até um certo bom gosto, enterraram na Barra, uma praia lindíssima, ou no Recreio dos Bandeirantes, ou no Alto da Boa Vista, que é uma floresta. Então ele está bem lá. Se é que existe alguma coisa, porque o próprio Nelson Massini afirma que dificilmente se vai encontrar alguma coisa consistente. Mas ele fala que talvez encontre um dente, e através do meu DNA, ou das minhas irmãs, ou dos meus sobrinhos, se identifique a ossada. Mas ele vai me dar um dente. Entendeu? Vou fazer um enterro? Vou fazer um memorial? Quer dizer, o meu pai não era o Luís Eduardo Magalhães, o meu pai não tem cara de memorial.

Tognolli – Acho que agora cabe uma outra inconfidência: você me falou que há pouco tempo grupos espíritas chegaram a telefonar pra tua mãe…

Marcelo – Pra mim.

Tognolli – Daria pra você contar?

Marcelo – Aí começa a loucura humana. Logo em seguida ao Fantástico, recebo um fax de um grupo espírita dizendo que meu pai estava presente em uma das sessões, e que meu pai disse, dois pontos, abre aspas. Aí eu li o que o meu pai disse, (risos) o meu pai jamais diria aquela bobajada. Meu pai era um cara muito informal. E aí, três parágrafos de uma fala de um suposto meu pai, e no final, fecha aspas: “Caso queira contatar-nos, telefone tal”. (risos)

Marina Amaral – A versão do Amílcar Lobo, como ele falou no Burnier, você acredita no que ele diz até que ponto?

Marcelo – O Amílcar Lobo tinha “currículo” para falar o que falou. Era o médico responsável para “curar” torturados, trabalhar torturados. Todo mundo sabia daquilo, ele foi perseguido durante muito anos, viveu com aquele fantasma, e resolveu botar para fora, como uma forma de exorcizar. Fazia sentido. Ele é um médico do DOI-Codi. É diferente do motorista de caminhão que acha que transportou um “presunto”. No Fantástico, o cara usou essa palavra: “O presunto é o Rubens Paiva”.

Marina Amaral – Então você acredita na versão do esquartejamento?

Marcelo – Acredito.

Sérgio – Existe algum componente que a gente desconheça e foi conveniente a essas pessoas aparecer agora, no Fantástico? Ou foi só oportunismo, se é que teve dinheiro, ganhar uma grana em cima, qual é a credibilidade dessas pessoas, enfim?

Marcelo – Nenhuma. Não aparece o rosto, não aparece a voz.

Sérgio – Vocês foram procurados para participar da matéria?

Marcelo – Fui procurado pelo Pedro Bial, para conversar, levei o Bial no Spot (um bar em São Paulo) achando que era uma conversa literária, ele dirige filme também, achei que podia ser sobre cinema, e me comunicou.

Sérgio – Ele queria te entrevistar para fazer parte da matéria?

Marcelo – Ele queria autorização da família para começarem as escavações. Liguei imediatamente para a minha mãe, minha mãe falou não, falou que o Fantástico é um programa que não combinava com o meu pai. Comuniquei ao Bial e, como sou de imprensa, sei que ele não ia parar de fazer a matéria, e ele me falou que tinha informações bem seguras. Aí falei: “Não quero participar, a gente pede para que você, pelo amor de Deus, não faça nada sensacionalista e me comunique tudo o que você fizer”. E ele me ligava mesmo a cada dois dias, me dizendo em que pé estava a matéria. Pela Lei dos Desaparecidos, eles podiam começar a escavação. Mas aí eles pediram autorização à Procuradoria Geral da República, já que é uma lei federal. A autorização foi dada, mas logo depois a Procuradoria embargou a escavação, que está parada, e ontem recebi um telefonema do procurador geral da República perguntando se a família quer que continuem com elas, pedindo desculpas em nome do governo federal, porque foi permitida uma escavação irresponsável daquele jeito. Disse que a partir de agora quem vai tomar conta disso é o governo federal, a procuradoria, com o apoio do governo estadual do Rio de Janeiro, que tem todo o interesse, que o terreno mudou muito, que eles estavam estudando – segundo palavras dele – geologia e geodésia, e que eles só estavam querendo saber quem iria pagar pelas escavações, o governo federal ou estadual.


Sérgio – E por que irresponsável?

Marcelo – Porque não devia ter autorizado uma escavação feita por uma emissora de televisão. Porque há uma hierarquia.

Sérgio – Supus que a escavação fosse feita pela Globo com a supervisão direta do Ministério Público.

Marcelo – Não sei quem estava escavando. O Bial havia me dito que os bombeiros deveriam escavar, porque ali na frente é hoje um quartel de bombeiros. Mas não sei exatamente.

Tognolli – Como a tua família recebeu a notícia de que o Fernando Henrique estava indenizando 244 famílias de 244 pessoas tidas e havidas como mortas em prédios do governo?

Sérgio – Completando isso, Marcelo: você escreve um artigo meio que cobrando a amizade que o Fernando Henrique tinha a seu pai, que agora, como presidente do país, devia uma apuração mais direta dos casos, praticamente aquele artigo leva à criação da comissão que acabou dando na indenização e tal. Senti, olhando o noticiário, que o Fernando Henrique, além de outras grandes culpas, carrega essa. Uma coisa psicanalítica aí, de ter sido amigo, pessoa próxima. Como o Fernando Henrique reagiu ao seu artigo?

Marcelo – Não sei se ele tem culpa, ou se nós, da família, temos certa mágoa, “psicanaliticamente” falando. Na verdade, os amigos que meu pai ajudou, o Serra meu pai deu dinheiro, o Waldir Pires estava no exílio, meu pai deu uma pedreira pra ele no Rio de Janeiro e falou: “Venha para o Brasil e ganhe dinheiro vendendo pedras”.. E ganhou fortunas, porque era uma pedreira no Recreio dos Bandeirantes, que anos depois virou a Barra. Meu pai ajudou o Brizola, meu pai ajudou gente pra burro. Não sei se ajudou o Fernando Henrique diretamente. Acho que o Fernando Henrique nunca precisou de ajuda. Mas o meu pai ficou no Brasil, enfrentou a situação no Brasil, e se deu mal. Aqueles que não ficaram no Brasil, aqueles que se acovardaram, aqueles que trancaram a porta para o amigo que pedia ajuda porque estava sendo procurado pela polícia, muitos deles se deram bem. Chegaram ao poder, ganharam muito dinheiro. Não sei se eles se sentem culpados, a gente se sente magoado. Mas é uma coisa que peço perdão às pessoas com as quais fico magoado, porque elas não têm nada a ver com isso, não têm culpa disso. No caso desse artigo, na verdade o meu maior choque é que eu estudava em Stanford, com os alunos de Fernando Henrique Cardoso, um grande cientista político, reconhecido no mundo todo, cuja obra gerou uma corrente, a corrente da moda na ciência política, chamada Teoria da Democratização, que substituiu toda a parafernália acadêmica sobre Guerra Fria. Uma corrente que tem fundamento, já que de 1974 para cá dezenas de países se democratizaram, começando por Portugal. E essa teoria divide os países cuja transição foi lenta e cuja transição foi rápida, com revolução, e vê os resultados finais da transição, dizendo qual é a melhor. O Brasil é um dos melhores resultados. Quer dizer, o Partido Comunista Brasileiro foi legalizado. Por outro lado, era um dos únicos países que não havia rompido com o seu passado. Por exemplo, um dado efetivo para dizer que um país é uma democracia é as Forças Armadas estarem nas mãos civis. No Brasil não estão. Não existe um Ministério da Defesa, com ministro civil. Não existe, portanto, controle das Forças Armadas. Outro dado era que não se havia resolvido o caso dos desaparecidos, como já tinha acontecido na Argentina, Chile e Uruguai. Então, eu estava estudando em Stanford com admiradores e alunos de Fernando Henrique Cardoso algo que o Fernando Henrique Cardoso não estava cumprindo, caso ele quisesse que o Brasil virasse uma democracia. Tanto que no programa dele estava a criação do Ministério da Defesa mas não estava o reconhecimento dos desaparecidos. O choque já começou aí.. Eu tinha vontade de falar pros professores: “Eu sou um filho de desaparecido, e no Brasil, esse homem que vocês tanto admiram…”. Fiquei mais chocado quando minha mãe me ligou do Brasil dizendo que o Fernando Henrique nunca tocou nesse ponto, e mais chocado ainda quando soube através da Internet que o secretário geral da Anistia Internacional, que é do Senegal, veio ao Brasil, pediu uma audiência, cobrou do governo o reconhecimento, a divulgação, o fechamento da história dos desaparecidos, e foi absolutamente ignorado. Aí falei pra minha mãe: “Puxa, a gente tem de escrever algum artigo sobre isso”. Aí minha mãe me mandou um fax, de um texto do articulista Fernando Henrique Cardoso, escrito na Folha de S. Paulo em 1982, lembrando a sua amizade com o Rubens Paiva, porque o Fernando Henrique jogava pôquer na minha casa, debaixo do meu quarto. Eu não conseguia dormir, tinha dez anos.

Sérgio – Ele já blefava? (risos)

Marcelo – Aí falei: “Ah, não, isso merece um troco”. Aí escrevi um artigo na Veja, diz que ele ficou muito magoado. Mas já reencontrei com ele uma vez, e ele me cumprimentou bem.


Marina Amaral – E como está a questão dos desaparecidos hoje?

Marcelo – Essa lei foi votada em tempo recorde. Não teve nenhuma contestação, ninguém emendou. Criou-se a Comissão, que logo reconheceu 144 casos, e deu uma indenização de 100.000 a 150.000 reais, dependendo da idade do desaparecido quando “foi desaparecido”, e o atestado de óbito, que é o mais importante.

Marina Amaral – E a indenização, a sua família recebeu?

Marcelo – Não, porque a minha mãe já estava com um processo anterior na Justiça Federal do Rio de Janeiro, então ela preferiu estar fora disso.

Carlos Azevedo – Você acha que resolveram bem o problema dos desaparecidos?

Marcelo – Bem demais. Essa comissão é surpreendentemente democrática, porque ela tem um general, tem juristas, tem advogados, representantes dos familiares, do Congresso, e conseguiu com muita coragem votar os casos Marighella e Lamarca, indenizando as famílias. Foi uma das poucas coisas democráticas que vi neste país.

Sérgio – Você disse que sua mãe tem um processo na Justiça Federal do Rio de Janeiro…

Marcelo – Processo que ela ganhou.

Sérgio – Então, ela abriu mão da indenização da comissão, é isso ?

Marcelo – Isso.

Sérgio – E o processo está em andamento?

Marcelo – Não, ela já ganhou a causa. Muito antes dessa comissão o processo já estava correndo.

Sérgio – E nesse processo ela pede o quê?

Marcelo – Indenização, resgatar esse seguro…

Sérgio – Mas é um seguro privado, imagino. E a ação é contra o Estado?

Marcelo – Para que o Estado pague o seguro, porque a seguradora privada não paga. Entendeu? Por exemplo, minha mãe tinha cheques de viagem que não podia resgatar porque não tinham a assinatura do meu pai, e não havia atestado de óbito do meu pai.

Marina Amaral – O governo perdeu e não recorreu?

Marcelo – Não recorreu, e agora não sei, acho que vamos herdar alguns precatórios aí. (risos) Não sei quando serão pagos.

Carlos Azevedo – Essa comissão pára na identificação do crime e na localização, não chega à criminalização das pessoas que cometeram o crime.

Marcelo – Essa é que é a grande questão.

Tognolli – Esbarra na anistia, não é ?

Marcelo – Esbarra na anistia, que por um lado foi uma coisa boa para o Brasil, mas por outro vai ficar essa ferida para sempre. É aí que pergunto ao Fantástico, à Veja: por que vocês estão atrás do osso do meu pai e não atrás das pessoas que ordenaram tudo isso, e não atrás da verdadeira história brasileira, e não atrás do papel do presidente da República, do papel do ministro da Justiça, do papel do general do 2º Exército, do 3º Exército, de quem eram as pessoas do DOI-Codi, como funcionava o DOI-Codi? Por que mais uma vez seremos vítimas dessa curiosidade mórbida e não se reconta a história deste país? Não vi a matéria do Fantástico, mas por que não estava lá o coronel mostrando a sua cara? Por que não foi entrevistado o superior desse coronel? O que o senhor Antônio Carlos Magalhães tem a dizer a respeito? O Jarbas Passarinho já disse, escreveu um livro ridículo que dizia que o maior torturador do Brasil foi o Geisel, quando o Geisel foi o único presidente que não o convidou para ser ministro. Quer dizer, onde está o Buzaid? A anistia foi um ato de covardia, uma manipulação, nós, estudantes, saímos às ruas e apanhamos muito pela anistia ampla, geral e irrestrita, e ela foi uma anistia restrita. Anistiou os dois lados, mas não se reconstrói essa história. Não se sabe onde estão essas pessoas. O Burnier está vivo, mora em Porto Alegre. O que o Burnier tem a dizer a respeito?

Sérgio de Souza – Parece que você foi chamado outro dia por um militar que queria conversar a respeito do caso do teu pai…

Marcelo – Mais um. Um tenente que era vizinho de outro tenente, que teria visto meu pai apanhando na Aeronáutica. E também confirmou que o Burnier foi o homem da pancadaria.

Sérgio de Souza – Você foi falar com ele?

Marcelo – Não fui e logo depois soube que o homem teve um derrame cerebral e se perguntam alguma coisa ele diz: “Não lembro de nada”. Não tive coragem de ir, até pedi ajuda ao Tognolli, falei: “Tognolli, você topa ir comigo?” Ele topou, mas eu não topei.

Sérgio de Souza – Nessa investigação, você não está interessado mais ?

Marcelo – No detalhe mórbido, não.

Sérgio de Souza – Mas a de achar os culpados, que você acabou de citar.

Marcelo – Tenho problema com isso, não sou eu pra fazer isso, tem que ser a sociedade brasileira, entendeu?

Sérgio de Souza – E por que meios ?

Marcelo – Puxa, o Burnier está em Porto Alegre, qualquer um consegue o telefone dele.


Sérgio de Souza – Então a imprensa devia ir atrás dele, ou você acha que é o governo?

Marcelo – O governo tem a lei da anistia, que impede.

Sérgio de Souza – Seria um papel da imprensa, então ?

Marcelo – Seria um papel da sociedade, a sociedade quer isso, quer até rever a anistia.

Tognolli – Você tem guardados documentos do senado americano, que estão com uma tarja preta em cima do texto, que, caso fossem tornados público, em todos os países da América Latina contribuiria enormemente para esclarecimento das coisas.

Marcelo – São documentos que estão sendo abertos agora. O Élio Gaspari fala que é o documento mais precioso da história brasileira. É o testemunho do diretor da CIA na época, John Helms, relatando na comissão secreta do senado americano o que estava ocorrendo no Brasil. É um documento tão forte que tem tarjas pretas, quase ele inteiro, porque o próprio senado americano diz que: “Se esse documento for revelado na íntegra, seriam revelações difíceis de ser engolidas pelo próprio governo americano”.. Só que existem testemunhas vivas, que assistiram a esse depoimento. E que poderiam testemunhar o que foi esse depoimento.

Sérgio de Souza – Americanos?

Marcelo – Americanos. Conversando com o Élio Gaspari sobre isso outro dia, ele me disse: “Esse é o documento que eu mais fiquei atrás na minha vida”. O Élio Gaspari tem todo o baú do Golbery, ele conhece quase tudo. E disse: “Se um dia você achar esse documento, você vai estar achando o elo perdido”.

Marina Amaral – Esse tipo de documento não tem uma data para ser liberado?

Marcelo – Esse parece que está liberado agora, depois de 25 anos, foi para a biblioteca Hoover, da Universidade de Stanford, onde estive, sem saber que ele estava lá. A pesquisadora e brasilianista Martha Huggins foi atrás dele nessa biblioteca e misteriosamente aquela pasta tinha desaparecido. Diz que a própria bibliotecária falou: “Meu Deus, o que teria nesse documento?”

Marina Amaral – Ninguém sabe onde ele está hoje?

Marcelo – Não.

Sérgio – É só voltado para o Brasil?

Marcelo – Voltado para o Brasil.

Sérgio de Souza – Você está com ele inteiro?

Marcelo – Estou só com algumas páginas.

Marina Amaral – E tem pessoas que ouviram esse depoimento?

Marcelo – Descobri uma pessoa, que infelizmente foi outra que sofreu derrame cerebral. Mas tem outras pessoas. Elas estão morrendo e a história está se perdendo. Precisa ir atrás. Não tive tempo.

Marina Amaral – E a brasilianista não foi atrás?

Marcelo – Não me lembro.

Tognolli – Ela parou na tarja preta.

Marcelo – Ela não teve a dimensão do valor desse documento. E eu só soube dele quando o Élio Gaspari falou comigo, em agosto do ano passado.

Sérgio de Souza – De quando é o documento?

Marcelo – É de 1971.

Sérgio – Esse livro da pesquisadora já saiu?

Marcelo – Já. Agora, não sei como se possa rever o caso da anistia. Nem sei se deve mesmo ser revisto, mas tem de ser discutido.

Marina Amaral – Não se contou a história inteira, é isso?

Marcelo – Não se contou a história do Brasil, quem mandou quem, qual era o papel do Médici.

Sérgio de Souza – Quem está no poder não sabe tudo o que ocorreu, mas sabe quem são os responsáveis.

Marcelo – Sabe. Passarinho não sabe nada. Nem o Erasmo Dias. A repressão usava o mesmo método das organizações clandestinas. Eles tinha codinome.

Carlos Azevedo – Era tudo departamentalizado.

Marcelo – Agora, tem uma diferença grande. Quem conhece as Forças Armadas sabe que tudo deve ser burocraticamente respeitado, e hierarquizado. Quer dizer, um militar não faz uma coisa se o superior dele não ordenar. Essa é a chave da questão – quem ordenava.

Carlos Azevedo – Isso derruba a tese dos excessos: “Houve alguns excessos…”.

Marcelo – Não tinha excessos, não. Era uma coisa consciente, isso estudei na minha pesquisa para o último livro, o Não És Tu, Brasil.. Era consciente por quê? Porque o DOI-Codi foi criado junto com a guerrilha do Vale do Ribeira, em que o Lamarca escapou do cerco de 1.500 homens, totalmente despreparados, sem comando, era uma grande anarquia, isso o próprio Erasmo Dias me confessa. E ele era o comandante da operação. Houve a experiência da OBAN (Operação Bandeirante), que segundo a pesquisadora americana foi sugestão dos americanos, um movimento de civis e militares. Então a General Motors dava carro, a Ford dava carro, aquele homem da Ultragaz dava dinheiro, empresários doavam dinheiro, informações etc. para criar uma organização paralela responsável apenas pelo combate. E foi criado um organograma de tarefas, e hierarquizou-se. Então havia busca e “apreensão”, havia equipe de interrogatório, uma equipe não conhecia a outra. Por exemplo, entrevistamos recentemente uma pessoa que era do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e prestava serviços para a OBAN em busca e “apreensão”. Então simplesmente ligavam para ele, falavam: “Fulano, vamos apreender alguns comunistas…”.


Sérgio de Souza – Era terceirizado…

Marcelo – Era terceirizado. Ganhava-se muito dinheiro, porque o próprio dinheiro da guerrilha ficava com eles. Os tais milhões do Ademar de Barros, que hoje se calcula em vinte e poucos milhões de dólares, parte desse dinheiro ficou com o cônsul da Argélia, e parte se distribuiu entre a própria repressão. Cada apreensão de um membro da VPR – entrevistei um membro da VPR, e ele conta que eles apanhavam duas vezes mais do que os outros presos políticos, porque os caras queriam a grana: “Onde está a grana?” Era a primeira pergunta que faziam. Esse modelo da OBAN acabou virando um modelo para as Forças Armadas e se criou o DOI-Codi, semelhante à OBAN, só que era militar, alguém mandava ali.

Carlos Azevedo – Se alguém mandava, deve ter arquivos secretos.

Marcelo – Claro que tem. Tanto que a gente tem comprovante do carro do meu pai, liberado pelo DOI-Codi.

Tognolli – E a CIA (Agência Central de Inteligência, dos Estados Unidos), no caso do teu pai, você nunca pensou?

Marcelo – A CIA estava fora. Ela atuou até 68, 69, depois ela estava fora. O próprio Vernon Walters me disse: “Não tínhamos nada a ensinar aos militares brasileiros, já derrubaram dois presidentes. Temos é que aprender com os militares brasileiros”.

Sérgio – Marcelo, debaixo dessa pressão toda, esse terror em volta de “eu carreguei o corpo, “eu dirigi o caminhão”, “eu incorporei o teu pai”, como manter a sanidade mental de uma família?

Marcelo – É difícil. Ontem mesmo eu estava jantando com a minha mãe, estávamos falando disso, uma hora um olhou pro outro, aquele olhar: “Já choramos tanto, vamos chorar de novo?” Aí a gente mudou de assunto completamente. É difícil. Uma das vezes em que vi mais a minha mãe chorar foi há três anos. Não foi um choro, foi um urro vindo lá de dentro.

Sérgio – O que provocou?

Marcelo – Eu ter perguntado a ela se, por acaso, imaginou que teria sido presa para ser torturada junto com ele. E se ele teria provavelmente se auto-sacrificado. Ela respondeu num choro que não deu para eu ouvir. Agora, até um momento a gente sofreu muito, todo mundo na minha casa toma remédio pra dormir. Eu tinha muito problema pra dormir, hoje não tenho, mas lembro de muitas noites acordar e falar: “Será que ele chegou?” Lembro de seis meses depois da prisão dele, uma irmã minha falando: “Pai! Ele chegou, ele chegou”. E eu levantei da cama e desci.

Marina Amaral – E, do ponto de vista material, sua família ficou muito prejudicada também?

Marcelo – Totalmente. Tive uma infância rica e uma adolescência pobre. Minha mãe trabalha. Minhas irmãs também. Moro num apartamento relativamente confortável devido ao dinheiro dos meus livros. Sempre trabalhei, não posso ficar dois meses sem trabalhar. E a família não tem bens.

Sérgio – Seu pai tinha uma empresa formalizada?

Marcelo – Esse é outro problema. Meu pai tinha uma empresa de engenharia com outro sócio e, depois do fato, nos disseram que meu pai tinha investido na empresa não sabiam se era cem, quinhentos ou mil, e nos deram cem…

Tognolli – É verdade que um grande político te ofereceu 2 milhões de dólares para posar no programa eleitoral dele, na última campanha?

Marcelo Rubens Paiva- Não ofereceu direto, mas o contato foi feito. Não sei se foi ele quem ofereceu ou se foi o pessoal da produtora, os marqueteiros. Mas não foram milhões…

Nicodemus Pessoa – Quem foi?

Marcelo – O Maluf. Não ele pessoalmente, foram pessoas ligadas ao marketing da campanha dele.

Tognolli – E qual foi a proposta?

Marcelo – Falaram que eu podia pedir até 500.000 dólares, para apoiar a campanha.

Marina Amaral – Você fez uma crítica da visão da imprensa quando falou no caso do seu pai; olhando a imprensa de um modo geral, você vê o quê? A atuação dela, por exemplo, no caso do governo Fernando Henrique Cardoso ou das privatizações etc.

Marcelo – É sempre complacente, uma coisa irritante, não dá para entender por que a imprensa brasileira é tão complacente, pouco investigativa, pouco crítica, especialmente o telejornalismo. A imprensa americana, os telejornais, são muito mais rigorosos com os governantes. Esse 60 Minutes, programa tido como careta nos Estados Unidos, se você trouxesse para o Brasil, seria…

Carlos Azevedo – …seria um arraso.

Marcelo – Seriíssimo. O jornalista americano não tem medo de sua fonte, ele chega pra um bandido, pra um traficante e fala: “Escuta, você é maluco? Você matou 47, e está agora aqui sorrindo, por quê?” Nunca você vê um repórter brasileiro fazer isso com a sua fonte. O repórter brasileiro já está feliz por conseguir com que a fonte fale, porque aqui as fontes são difíceis, são mentirosas, não são transparentes como nos países protestantes. Então o jornalista entrevista uma pessoa, é sempre condescendente com ela.


Marina Amaral – Roda Viva, Roda Amiga, como diz o Zé Simão!

Marcelo – Fui no Roda Viva, ninguém fez nenhuma pergunta que me incomodasse, foi a maior camaradagem. O Tognolli me falou ontem que aqui ia fazer umas perguntinhas pesadas, eu falei: põe no meu rabo, quero coisas que me incomodem, não quero ficar aqui fazendo média.

Carlos Azevedo – Mas a imprensa não é complacente quando se trata de um pobre, de um criminoso vagabundo e tal.

Marcelo – Aí é desrespeitosa, é acusatória sem provas. O que difere um pouco a imprensa brasileira de outras do resto do mundo é que a faixa etária dos jornalistas é muito baixa. Não vejo nenhum desses repórteres trabalhando ativamente. Estou fazendo quarenta anos, me sinto velho, porque as pessoas que estão indo entrevistar, todas têm 25, trinta anos. E talvez falte conhecimento de causa, falte história para ele poder ter essa contundência.

Tognolli – Marcelo, é impressionante o monte de furos que vem para você do meio artístico, por causa das suas peças de teatro. Uma curiosidade minha: a confiabilidade de informações, como é isso com as fontes do meio artístico? Fala-se muito em off? – digo o crème de la crème.

Marcelo – Falam. Tenho sorte, porque sou conhecido deles como escritor e eles sabem que trabalho na Folha, né? Mas tenho muito cuidado, exatamente por ter sido muito massacrado pela imprensa – especialmente nos anos 80 -, de não massacrar os meus colegas, tento ser cuidadoso. Quando o cara me dá uma bomba, pergunto de novo: “Estou gravando, tem certeza de que você quer que isso seja publicado?”

Marina Amaral – Você sempre me passou a imagem de um pudor muito grande para lidar com o caso do seu pai. Embora não seja uma pessoa tão pudica, no próprio Feliz Ano Velho você se expõe muito. Você sentiu alguma vez censura por parte da sua família quanto a essa posição mais aberta ou se sentiu impedido de falar mais livremente da questão do teu pai para não magoar tua mãe?

Marcelo – Não, sempre a consulto. Ainda ontem à noite jantei com ela, e ela queria que, depois dessa barbaridade do Fantástico, eu escrevesse um artigo, falasse alguma coisa. E eu: “Saco, escrever um artigo!” Mas a gente foi sempre muito cuidadoso para não mostrar uma família dividida, primeiro porque não é uma família dividida e, depois, minha mãe tem muito mais conhecimento do caso do que nós. Ela viveu a época. Me fala coisas hoje que eu não sabia, do caso. Por exemplo, costuma sair na imprensa que meu pai era diabético e cardíaco e por isso talvez não tenha resistido à tortura. Mas meu pai não era nem diabético nem cardíaco. Ele tinha um médico, minha mãe ainda estava presa quando a família pediu a esse médico que fosse à prisão tentar “entregar o remédio”, dizendo que meu pai era cardíaco e diabético, para saber alguma notícia dele. Foi uma armação de um amigo dele, o Sérgio Carneiro, que também era médico, e realmente ele foi lá, entregou o remédio, o oficial assinou o recibo – meu pai já estava morto, minha mãe presa no outro canto, e daí nasceu a notícia de que meu pai era cardíaco e diabético. Engraçado, né?

Sérgio – Você falou da mágoa com pessoas, com amigos, esse sentimento é comum na família toda?

Marcelo – A gente procura controlar porque é injusto esse sentimento, mas rola uma ironia. “Lembra aquele velhinho que seu pai escondeu em casa, ficou três meses em casa?” “Lembro.” “É o novo presidente da Caixa Econômica.” Não sei se era Caixa Federal, mas era o novo presidente de uma estatal. Aí você fala: “Nossa, que engraçado, meu pai escondeu o sujeito na minha casa, ele se safou, meu pai se danou, e ele agora é presidente de uma estatal”. Então rola uma certa ironia. É um sentimento estranho.

Sérgio de Souza – Chega até à presidência da República.

Marcelo – Chegou com méritos próprios. Ele fez uma aliança que o levou ao poder. Já o segundo mandato foi um golpe. Isso também é uma coisa que a imprensa não fala. Foi um golpe de Estado. É uma vergonha para o currículo dele, mudou as regras no meio do jogo. Vejo muita gente do PSDB que fala isso.

Marina Amaral – Vou voltar só um pouquinho na história: o que sua mãe conta do período em que ficou presa?

Marcelo – Ela fala que rolava muito constrangimento, porque ela entrou na prisão, ele foi morto, eles estavam com aquela viúva lá dentro. Falo do pessoal de terceiro, quarto escalão: “Olha, senhora, por favor, saiba que não faço parte disso, não concordo com isso”. Ela ouvia muitos gritos, ficou numa cela de canto, sozinha, durante treze dias.

Sérgio – Sua irmã em outra cela?

Marcelo – Em outra cela. Minha irmã ficou presa só um dia. Foi chamada para depor num lugar de tortura, porque viu o pau-de-arara, viu o choque, viu poças de sangue.

Marina Amaral – E vocês, os pequenos, nesse período sabiam o que estava acontecendo?

Marcelo – Aí foi um terror, nossa casa ficou cercada pela Aeronáutica durante 24 horas. Meu pai foi levado, ficou uma equipe em casa 24 horas, com metralhadora e tal. No dia seguinte vieram ordens de levar minha mãe e minha irmã. Foram embora, ficamos eu e duas irmãs, a Ana Lúcia, de doze anos, e a Babiu, de nove, dez anos. Eu tinha onze. Trancaram a gente: “Não saiam daqui!”

Carlos Azevedo – Tinha alguém com vocês?

Marcelo – Tinha a empregada, que chorava mais do que qualquer outra coisa. Aí, depois de um tempo, falei: “Vamos ligar para alguém”. Ligamos para uma avó que mora em Santos, ela ligou para uns amigos do meu pai, que imediatamente foram em casa, e cada um pegou um de nós e sumiu. Fui para um sítio em Itatiaia, e fiquei escondido lá durante treze dias, só com o caseiro. Uma irmã ficou na casa do Marcílio Marques Moreira, o ministro, e a outra não sei. A minha irmã Eliana foi solta, também não sei onde ficou. Depois de treze dias, vem um motorista numa Mercedes preta, com minha irmã Eliana: “Mamãe foi solta”. Aí voltamos para casa. minha mãe estava lá, e foi aquela loucura toda.

Sérgio – Por que você não quis ver o Fantástico?

Marcelo – Não é que não quis ver. Eu estava na Dutra, e eu… eu não quis ver. Poderia parar o carro na Dutra e ver. Gravaram mas não vi até agora. Talvez eu assista. Não sei, não quero ver, fui o único que não viu, toda a família já viu. E sou o mais forte da família…

Entrevistadores: Marina Amaral, Verena Glass, Cláudio Júlio Tognolli, Sérgio Pinto de Almeida, Carlos Azevedo, Nicodemus Pessoa, Rui Mendes, Marco Frenette, Sérgio de Souza.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!