Casseta não ofende

Casseta: TV Globo se livra de indenizar policial de Diadema.

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1 de setembro de 2001, 14h18

A Justiça de primeira instância negou pedido de R$ 180 mil feito pelo policial militar Evair Lova à TV Globo por causa das piadas do programa humorístico “Casseta e Planeta” sobre a Polícia de Diadema. Os humoristas satirizaram as situações ocorridas na Favela Naval, onde dez policiais foram filmados agredindo moradores em uma blitz. O policial não estava envolvido no caso, mas se sentiu ofendido pelo fato de trabalhar no 24º Batalhão de Diadema.

O juiz José Luiz Germano entendeu que os gracejos não eram dirigidos ao policial e que quem provocou dano à imagem da polícia não foram os artistas. “Os verdadeiros culpados pelos constrangimentos sofridos pelo autor são os dez policiais criminosos da Favela Naval”, afirmou Germano ao negar o pedido.

O advogado da TV Globo Luiz de Camargo Aranha Neto disse que outros pedidos semelhantes já foram negados, mas que a sentença de Germano destacou-se pela clareza didática na abordagem do episódio. Hoje, tramitam cerca de 100 ações idênticas movidas por policiais do 24º Batalhão de Diadema. Nenhum deles participou das violências perpetradas na Favela Naval.

As argumentações de manifestação de livre pensamento e liberdade de imprensa foram acatadas pelo juiz, que disse assistir ao programa sempre que pode para se divertir. “O Casseta e Planeta faz uma gozação dos fatos reais e a sua função não é de um jornalismo técnico, mas sim de causar humor e diversão”.

O juiz lembra que em todas as profissões existem maus profissionais que causam constrangimento para a categoria, mas isso não é motivo para pedir indenização por danos morais. “É sempre desabonador fazer parte de uma categoria profissional que tem alguns de seus membros envolvidos em condutas ilícitas e reprováveis”.

Germano lembrou que o programa Casseta e Planeta satiriza, por exemplo, o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, um dos acusados de desviar verbas das obras do TRT de São Paulo.

“As gozações que são feitas a seu respeito não se restringem aos programas de humor, mas atingem a imprensa jornalística em geral, que não se refere a ele só como juiz Nicolau, mas como juiz Lalau, gíria essa que significa nada menos que ladrão. Não é agradável para nós juízes ouvirmos todos os dias que um colega nosso é ladrão”, afirmou a sentença. Nem por isso, afirma Germano, faria sentido a magistratura identificar-se com os atos e fatos atribuídos â personagem em questão.

Veja a decisão

Trigésima Sétima Vara Cível Central – SP

Processo 98.930229-9.

Vistos.

Evair Lova propôs a presente ação de indenização contra Rede Globo de Televisão, alegando que a partir de março de 1997 até janeiro de 1998 os humoristas conhecidos como turma do “Casseta e Planeta” fizeram seguidamente em seus programas ofensas à honra pessoal dos policiais do 24º Batalhão de Diadema, explorando matéria jornalística a respeito dos incidentes ocorridos na favela naval, onde dez policiais foram flagrados por um cinegrafista quando cometiam várias arbitrariedades, passando o referido grupo de humoristas a difamar, injuriar e caluniar todos os demais policiais militares de Diadema, entre eles o autor, em flagrante violação a seus direitos personalíssimos tutelados pela Constituição, de modo que sofreu danos morais e pretende ser devidamente indenizado.

A petição inicial detalha várias situações em que teriam ocorrido as ofensas à honra do autor; que houve por parte da requerida um abuso de direito, que criaram para o autor uma série de constrangimentos, de modo que pretende o recebimento de, pelo menos, 1.000 salários mínimos.

A ré foi citada pessoalmente e apresentou exceção de incompetência a fls. 45, como preliminar, o que motivou a suspensão do processo, tendo o autor respondido a impugnação à fls. 65.

Foi decidida a exceção de incompetência a fls. 81, tendo os autos sidos remetidos à Comarca de Diadema, mas contra decisão foi interposto recurso de agravo de instrumento (fls. 89).

A contestação está a fls. 111, tendo a requerida alertada para o fato de que sua razão social não é Rede Globo de Televisão, mas sim TV Globo Ltda. Preliminarmente foi alegado que o autor é carecedor da ação porque não tem legitimidade para figurar no pólo ativo da demanda, pois jamais o seu nome foi mencionado em qualquer programa humorístico ou jornalístico da televisão, mas sim houve uma menção genérica à P.M. de Diadema; que não se aplica ao presente caso o Código do Consumidor; que não há interesse de agir, tanto que numa demanda idêntica promovida por Alexei Scavone teve a petição indeferida, assim como outra demanda igual movida por Edson dos Santos Araújo foi ao mérito julgada improcedente; que existem 104 outras ações idênticas em trâmite pelas mais variadas Varas do Fórum Central, todas movidas por policias do 24º Batalhão de Diadema, mas nenhum deles envolvidos nos notórios fatos ocorridos na favela naval e que geraram os quadros humorísticos da turma do “casseta e planeta”; Que houve coisa julgada; que houve decadência e falta de notificação para conservação das gravações; que livre é a manifestação de pensamento, Assim como há a liberdade de imprensa, que só é punido abuso e isso não houve; que o programa “Casseta e Planeta” faz uma charge televisiva que nada mais é do que a reprodução deformada de um acontecimento para alcançar o objetivo cômico; que de uma forma satírica nada se fez além da reprodução do noticiário, sem qualquer intenção de ofender quem quer que seja, muito menos policiais que não participaram do episódio criminoso; que a indenização pleiteada é exagerada.


A réplica está a fls. 156 e foi julgado o agravo tirado contra decisão a respeito da competência, tendo no final sido determinada a permanência dos autos na 37ª Vara Cível.

Os autos foram remetidos à 3ª Vara Cível em razão da conexão, mas de lá foram devolvidos, tendo em vista que o processo primitivo já tinha naquele juízo sido julgado.

As partes foram intimadas a especificar provas, mas o autor, bem como a ré disseram que não tinham provas a produzir.

Em apenso estão os autos de incidente do valor da causa e também os autos do agravo de instrumento.

É o relatório.

Decido.

O pedido formulado pelo autor improcede.

Não há dúvida de que a veiculação dos programas de televisão referidos na petição inicial causaram algum tipo de constrangimento para o autor, afinal de contas faz ele parte de uma corporação, que é dividida entre vários setores e diversos policiais do mesmo batalhão envolveram-se em arbitrariedades criminosas, as quais foram plenamente veiculadas nos meios de comunicação e acabaram causando algum tipo de constrangimento para os demais policiais não envolvidos na ação criminosa.

De fato, é sempre desabonador fazer parte de uma categoria profissional que tem alguns de seus membros envolvidos em condutas ilícitas e reprováveis, pois o conhecimento público disso acaba fazendo respingar um pouco de mácula sobre os demais integrantes da mesma categoria profissional. Isso é inegável.

Entretanto, não se pode concluir que em razão da situação acima reconhecida exista para o autor o direito a uma indenização por danos morais, pois não é todo e qualquer aborrecimento que gera o direito a ser indenizado, mas somente um dano grave e individual pode levar a isso, não tendo passado o constrangimento sofrido pelo autor de mero desconforto a que qualquer pessoa está sujeita a um país que tem liberdade de imprensa garantida pela Constituição.

De fato, diariamente são feitas denúncias de condutas criminosas praticadas por agentes públicos, como por exemplo, policias, médicos, parlamentares, membros do executivo, membros do judiciário, fiscais e tantas outras funções. Evidentemente que os demais membros dessas mesmas atividades ou funções sentem-se constrangidos por ver um colega de profissão envolvido numa conduta criminosa.

A divulgação de um crime cometido por um Deputado acaba prejudicando a imagem de toda a Câmara. Condutas ilícitas feitas por um Senador, mesmo antes dele fazer parte do Senado, constrangem todos os membros da Câmara alta Federal, como ocorre atualmente em que inúmeras acusações são feitas contra o Senador Jader Barbalho, que em razão delas até viu-se forçado a licenciar-se da Presidência do Senado.

Há muito pouco tempo, nada menos que dois Senadores muito poderosos pediram renúncia também porque foram acusados por falta de decoro. O juiz Nicolau dos Santos Neto é citado diariamente na imprensa de forma desairosa e já foi objeto de inúmeras sátiras no Programa Casseta e Planeta, sendo que as gozações que são feitas a seu respeito não se restringem aos programas de humor, mas atingem a imprensa jornalística em geral, que não se refere a ele só como juiz Nicolau, mas como juiz Lalau, gíria essa que significa nada menos que ladrão. Não é agradável para nós juízes ouvirmos todos os dias que um colega nosso é ladrão.

É evidente que todos os demais juizes, sem aprovar a conduta que é atribuída ao juiz Nicolau dos Santos Neto, sentem-se extremamente constrangidos com essa situação. Temos que ouvir: “então, juiz também rouba”. Isso no passado já se repetiu no Rio de Janeiro, na pessoa do juiz Nestor José do Nascimento, envolvido em milionárias fraudes contra a Previdência. O caso desses dois juizes acaba arranhando a boa imagem de todos os demais magistrados porque passa a idéia de que mesmo na justiça, guardiã do direito, há a prática de crimes exatamente pelas autoridades que têm a incumbência de julgar quem desrespeita o direito, o que é profundamente lamentável.

Entretanto, em todas as profissões existem os bons e os maus profissionais. Os juizes, assim como os policiais militares, são na sua imensa maioria pessoas de bem, que não podem ser presumidas desonestas pelo fato de terem colegas que desonestos são.

O autor não foi mencionado nominalmente como participante de qualquer crime e evidentemente que a alusão à “polícia de Diadema” ou a “policiais de Diadema”, não era uma referência a todo e cada policial militar de Diadema, mas sim, era uma alusão aos policiais de Diadema que participaram das condutas criminosas tão amplamente divulgadas na imprensa.

O Programa Casseta e Planeta faz uma gozação dos fatos reais e a sua função não é de um jornalismo técnico, mas sim de causar humor e diversão. Eu mesmo, sempre que posso procuro assistir esse programa para me divertir e não caberia a um programa de humor dizer: “os policiais de Diadema, fulano, cicrano, beltrano e trajano envolvidos na favela naval fizeram isso ou aquilo”. Não. Não é finalidade desse programa de humor retratar os fatos como eles aconteceram, até porque isso é de todos conhecido. O que eles quiseram foi satirizar, foi exagerar, foi ironizar, foi fazer uma charge em cima de uma situação efetivamente ocorrida e aí houve sim uma menção genérica a policiais de Diadema.


Mas quais policiais? Todos eles? Evidentemente que não! Embora não tenham sido citados nominalmente os criminosos, a gozação, a sátira, a charge, referia-se única e exclusivamente aos policiais que praticaram os crimes, de modo que os demais nada podem reclamar em termos indenizatórios.

Tenha certeza absoluta de que, se alguém sair às ruas procurando quem que se lembre dos nomes dos policiais envolvidos, possivelmente só encontrará respostas positivas para Otávio Gambra, conhecido com Rambo, já que o nome dele de tantas vezes repetido, principalmente pelo marcante apelido, e pelo fato de que ele foi o autor do disparo que matou a única vitima fatal do referido episódio, acabou ficando marcado na memória da população.

Porém, duvido que qualquer pessoa do povo seja capaz de lembrar do nome de dois ou três policiais envolvidos no crime. O que dizer de outros policiais pertencentes ao mesmo batalhão? Duvido mesmo que alguém do povo que não tenha maior afinidade com as coisas da polícia, seja capaz de lembrar o número do batalhão dos policiais de Diadema, que eu mesmo só vim, a saber, por meio deste processo que trata-se do 24º. Como podem todos os policiais do 24º batalhão pedir indenização? Isso não é sério, mas sim pura ganância.

Em suma, constrangimento houve, mas o culpado disso não são os meios de comunicação, que só divulgaram os fatos, seja de forma séria, seja de forma cômica. A turma do Casseta e Planeta não é culpada pelo eventual sofrimento do autor; os verdadeiros culpados pelos constrangimentos sofridos pelo autor são 10 policiais criminosos da favela naval, que inclusive já foram condenados por isso e creio que nem sequer mais fazem parte da Polícia Militar.

Em outras palavras, quero dizer que o problema está sendo tratado pelo autor de uma forma equivocada. Errada não foi à notícia. Errada não foi à sátira. Errado foi o que os policiais criminosos fizeram.

A Constituição tutela a intimidade, que é uma expressão da liberdade individual, mas existe de outro lado a liberdade de imprensa e há necessidade de serem harmonizadas essas duas liberdades, o que já foi feito pelo juiz Edson Ferreira da Silva em sua obra “Direito à Intimidade”, publicada pela Editora Oliveira Mendes, onde o autor ressalta que o que deve prevalecer é o interesse público sempre que houver um conflito entre o interesse público e o interesse particular, embora não se confunda o interesse público com o interesse jornalístico.

Os policiais que praticaram os crimes, não tinham o direito de, para preservação de sua honra, impedir a veiculação das imagens, assim como não o tinham os policiais criminosos o direito de impedir as sátiras feitas a respeito do que aconteceu. Se os próprios criminosos não podiam, com maior razão não podiam também os demais policiais do batalhão. Se não podiam impedir, isso significa que a imprensa podia noticiar e satirizar. Se podia a imprensa fazer isso, era porque tinha esse direito. Se a imprensa praticou um exercício regular de direito, não cabe o pedido indenizatório porque este pressupõe uma conduta ilícita.

Assim como eu lamento o que foi feito pelo juiz Nicolau e nem por isso tenho qualquer direito de pedir da imprensa uma indenização, com o autor deve ocorrer o mesmo no que diz respeito ao caso da favela naval.

No mais, adoto também como razão de decidir os demais fundamentos expressados por outros colegas meus em várias sentenças carreadas aos autos que já decidiram no sentido da improcedência do pedido.

Assim, julgo improcedente o pedido de indenização formulado por Evair Lova contra a TV Globo Ltda., razão pela qual condeno o autor a arcar com as custas do processo e os honorários do advogado da parte contrária , que arbitro em R$ 5.000,00 com base no artigo 20 parágrafo IV, do Código de Processo Civil. Como o autor é beneficiário da justiça gratuita, consigno desde já que eventual execução da sucumbência ficará condicionada à prévia prova de sua solvência.

P.R.I.

São Paulo, 30 de julho de 2001.

José Luiz Germano

Juiz de Direito

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