Liberdade de expressão

Juíza dispensa diploma para exercício do jornalismo

Autor

30 de outubro de 2001, 17h16

A 16ª Vara Federal de São Paulo concedeu liminar para impedir a União de exigir o diploma do curso superior em Jornalismo para registro profissional no Ministério do Trabalho.

A decisão da juíza federal substituta Carla Abrantkoski Rister é válida em todo o país. O pedido foi feito pelo procurador Regional dos Direitos do Cidadão, André de Carvalho Ramos, em Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada.

O representante do Ministério Público Federal, em defesa da liberdade de expressão, argumentou que o mandamento constitucional se sobrepõe a regras legais e que a exigência do diploma não foi recepcionada pela Carta.

A Juíza acolheu o argumento e também determinou que não se “execute mais fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau de nível universitário”.

Em seu voto, afirma que “o jornalista não requer qualificações profissionais específicas, indispensáveis à proteção da coletividade, diferentemente das profissões técnicas (a de Engenharia, por exemplo), em que o profissional que não tenha cumprido os requisitos do curso superior pode vir a colocar em risco a vida de pessoas”.

Na ação, o MPF alegou que as pessoas que não têm diploma podem ser multadas e até mesmo presas quando exercem a profissão. “Para isto, basta que tais jornalistas sejam alvo de denúncia por parte de algum desafeto ou, simplesmente, recebam visita fiscalizatória de membro do sindicato dos jornalistas ou fiscal da Delegacia Regional do Trabalho”.

Veja decisão da juíza

Poder Judiciário

Justiça Federal

16º Vara Cível Federal / São Paulo

Processo nº 2001.61.00.025946-3 (Pedido de antecipação de tutela)

Conclusão

Aos 17 de outubro de 2001, faço conclusão destes autos à MM. Juíza Federal Substituta, Doutora Carla Abrantkoski Rister.

Vistos, em sede de tutela antecipada.

Trata-se de Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada, em que o autor, Ministério Público Federal, requer a medida antecipatória, com abrangência nacional, para o fim de que seja determinado à Ré União Federal a não mais registrar ou fornecer qualquer número de inscrição no Ministério do Trabalho para os diplomados em jornalismo, informando aos interessados a desnecessidade do registro e inscrição para o exercício da profissão de jornalista, bem assim que seja obrigada a União Federal a não mais executar fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau de curso universitário de jornalismo, bem como a não mais exarar os autos de infração correspondentes.

Nesse diapasão, requer ainda que sejam declarados nulos todos os autos de infração lavrados por Auditores-Fiscais do Trabalho, em fase de execução ou não, contra indivíduos em razão da prática do jornalismo sem o correspondente diploma e expedição de ofícios aos Tribunais de Justiça dos Estados da Federação, para ciência da decisão.

Sustenta o autor que o Decreto Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969, que estabelece a obrigatoriedade do registro do profissional perante o Ministério Público do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, registro este que somente é concedido mediante a apresentação de diploma de curso superior de jornalismo, nos termos do art. 4º inciso V, do referido Decreto Lei, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1.998. Segundo a argumentação exposta, a regra é a liberdade de profissão nos termos do art. 5º inciso XII, da C.F., sendo vedado ao legislador infraconstitucional impor restrições indevidas ou irrazoáveis, como ocorreria no presente caso. Ademais, estaria a haver ofensa ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, que garante a liberdade de pensamento e de expressão.

Decido.

Revela-se presente e verossimilhança das alegações do autor.

A Constituição Federal de 1988 assegurou a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, no inciso XIII do art. 5º, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Tenho que tal dispositivo deve ser interpretado de maneira consentânea com outros dispositivos constitucionais, consagradores de liberdades individuais, dentro de uma interpretação sistemática do texto constitucional. Antes, porém, necessário trazer o entendimento de José Afonso da Silva sobre o tema:

“O princípio é o da liberdade reconhecida. No entanto, a Constituição ressalva, quanto a escolha a exercício de ofício e profissão, que ela fica sujeita à observância das “qualificações profissionais que a lei exigir”. Há, de fato, ofícios e profissões que dependem de capacidade especial, de certa formação técnica, científica e cultural. Compete privativamente à União legislar sobre condições para o exercício da profissão (art. 22, XVI). Só lei federal pode definir se qualificações profissionais requeridas para o exercício das profissões.

Como o princípio é o da liberdade, a eficácia e a aplicabilidade da norma é ampla, quando não existe lei que estatua condições ou qualificação especiais para o exercício do ofício ou profissão ou acessibilidade à função pública. Vale dizer, não são as leis mencionadas que dão eficácia e aplicabilidade à norma. Não se trata de direito legal, direito decorrente da lei mencionada, mas de direito constitucional, direito que deriva diretamente do dispositivo constitucional. A lei referida não cria o direito, nem atribui eficácia à norma. Ao contrário, ela importa em conter essa eficácia e aplicabilidade trazendo normas de restrição destas” (destaquei) (in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 16º edição, Ed. Melheiros, pág. 261).


Diante dos ensinamentos acima, depreendo que a regra, no que tange ao exercício das profissões, consiste na liberdade, não criando a lei o direito em questão, eis que se trata de direito constitucional, mas tão somente restringindo seu âmbito de eficácia a aplicabilidade, incumbindo-me perquirir se o Decreto-Lei nº 972-69 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, no que tange à exigência do diploma de nível superior.

Para tanto, é mister trazer à tona outros dispositivos constitucionais, que ora incumbe transcrever:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX – é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Parágrafo 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

Parágrafo 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” (destaquei)

Assim, dentro do escopo conferido pela Constituição de 1988, consagrador das liberdades públicas, donde se insere a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica, independentemente de censura prévia, tenho que, em principio, um diploma legal anterior à Constituição, a par do fato de ter sido editado sob a forma de decreto-lei e não de lei em sentido formal, que impõe a necessidade de formação superior para o exercício da profissão de jornalista, elaborado em época eminentemente diversa, em termos dos valores sociais vigentes, em que inexistia tal liberdade de expressão, inclusive nos meios de comunicação, à época fortemente controlados pela censura, não foi recepcionado pela Constituição atual, em função da colidência material com tais princípios ela consagrados.

Tal se deve, ademais, a propalada irrazoabilidade do requisito exigido par o exercício da profissão, tendo em vista que a profissão de jornalista não requer qualificações profissionais específicas, indispensáveis à proteção da coletividade, diferentemente das profissões técnicas (a de Engenharia, por exemplo), em que o profissional que não tenha cumprido os requisitos do curso superior pode vir a colocar em risco a vida de pessoas, como também ocorrer com os profissionais da área de saúde (por exemplo, de Medicina ou de Farmácia).

O jornalista deve possuir formação cultural sólida e diversificada, o que não se adquire apenas com à freqüência a uma faculdade (muito embora seja forçoso reconhecer que aquele que o faz poderá vir a enriquecer tal formação cultural), mas sim pelo hábito da leitura e pelo próprio exercício da prática profissional. Ademais, a estipulação de tal requisito, de cunho elitista, considerada a realidade social do país, vem a perpetrar ofensa aos princípios constitucionais mencionados, na medida em que se impede o acesso de profissionais talentosos à profissão, mas que, por revés da vida, que todos nós bem conhecemos, não pode ter acesso a um curso de nível superior, restringindo-lhes a liberdade de manifestação do pensamento e da expressão intelectual.

Em nem se levante a objeção, ademais, de que tal pessoa poderia enviar uma carta ao jornal, expressando-se livremente, pois é certo que há enorme diferença em assinar uma matéria como jornalista, expressando suas idéias, e ter uma carta, sintetizada em duas linhas, publicada na seção de leitores, eis que a livre manifestação do pensamento importa em manifestar-se num veículo em que aquele que se expressa seja ouvido.

Outra irrazoabilidade na exigência do diploma ao jornalista consiste na decorrência lógica que isso cria, levantada por um dos pareceristas a que se refere o autor na inicial: caso tal exigência prevalecesse, o economista não poderia ser o responsável pelo editorial da área econômica, o professor de português não poderia ser o revisor ortográfico, o jurista não poderia ser o responsável pela coluna jurídica e, assim, por diante, gerando distorções em prejuízo do público, que tem o direito de ser informado pelos melhores especialistas da matéria em questão. Outrossim, verifica-se também o problema de locais de escassa população, em que inexistem os profissionais com diploma, em que a atividade jornalística restaria comprometida, em detrimento do público, que tem o direito à informação (art. 5º, inciso XiV, da C.F.).


Sobre o tema da liberdade de imprensa, trago as oportunas palavras de Jean Rivero, trazidas em sua obra “Les libertes publiques” (Tome 2, PUF, 6º edição, 1997, pág. 233), cuja universidade de suas premissas pode ser aplicada ao presente caso, em que poderá: “É necessário sublinhar que a profissão de jornalista é uma das raras profissões a cujo acesso não se exige diploma algum, nenhuma formação anterior, nenhuma qualificação particular. Há escolar de jornalismo, mas a passagem por uma delas não é requerida para se adentrar na profissão. Essa total liberdade de recrutamento tem os seus aspectos positivos, sendo que o aprendizado pela prática atende bem às peculiaridades da profissão. A despeito disso, é mesmo paradoxal que uma atividade que confere um poder excepcional sobre o conjunto da opinião pública seja subtraída da verificação de qualidade daqueles que a exercem” (destaquei).

Nem seria necessário aprofundamento em demasia da questão, na atual fase processual, mas incumbe notar que adoto posicionamento favorável ao caráter vinculante da Convenção Americana de Direitos Humanos, em face da sua ratificação pelo Brasil aos 25/09/1992, conforme, aliás, já defendi na monografia: “A relação entre o ordenamento internacional e o ordenamento interno em matéria de direitos humanos”(in Boletim dos Procuradores da República. Ano II, nº 16, Agosto/99). Assim, verifico que o art. 13 da referida Convenção consagra a liberdade de expressão e a proibição de qualquer forma de obstáculos ou meios indiretos ao direito de informação, como se verifica com a exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista.

Concluo, assim, que não houve a recepção do art. 4º inciso V, do Decreto-Lei nº 972/69, pela CF/88, no que tange à exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista. Porém, não acredito que a existência do registro junto ao Ministério do Trabalho seja de todo despropositada, desde que não se faça a exigência do referido diploma, tendo em vista que, em todas as profissões, é salutar que exista uma entidade de controle e fiscalização daquelas pessoas que as exercem de modo profissional.

Nesse sentido, trago novamente as palavras de Jean Rivero, na obra citada, pág. 232: “A qualidade de jornalista profissional supõe duas condições de fundo: – a profissão deve ser exercida a título principal, de forma regular e remunerada, em uma publicação periódica, uma agência de imprensa ou em rádio e televisão; – o interessado deve ter esta como a principal de suas fontes de renda (Código do Trabalho, artigo L. 761 – 2).

A reunião dessas condições é constatada pela Comissão da Carteira de Identidade Profissional. A carteira permite ao titular prevalecer-se de medias tomadas pelas autoridades administrativas em favor dos representantes da imprensa”. Assim, tenho que a idéia subjacente ao trecho mencionado pode ser aproveitada no presente, ou seja, o registro em si mesmo não importa em qualquer cerceamento de direitos, diferentemente do que ocorre com a exigência do diploma de nível superior.

Resta presente, outrossim, o requisito do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, na medida em que aqueles que exercem a profissão de jornalista sem o devido registro (por não possuírem o diploma) podem vir a ser autuados a qualquer momento pela ré, bem assim o sofrer constrangimentos de toda sorte.

Não obstante, o pedido não merece atendimento em sua integralidade, na medida em que a declaração de nulidade de todos os autos de infração já lavrados importaria em irreversibilidade do provimento, o que é vedado em sede antecipação de tutela, a teor do parágrafo 2º do art. 273 do C.P.C.. Também a providência pleiteada de expedição de ofícios aos Tribunais pode aguardar a prolação de eventual sentença favorável, a fim de evitar tumultos desnecessários, que poderiam surgir no caso de sentença desfavorável ao autor.

Diante do exposto, Defiro Parcialmente o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, para determinar que a ré União Federal, em todo o país, não mais exija o diploma de curso superior em Jornalismo para o registro no Ministério do Trabalho para o exercício da profissão de jornalista, informando aos interessados a desnecessidade de apresentação de tal diploma para tanto, bem assim que não execute mais fiscalização sobre o exercício da profissão de jornalista por profissionais desprovidos de grau de nível universitário de Jornalismo, assim como deixe de exarar os autos de infração correspondentes, até decisão ulterior do presente Juízo, sob pena de cominação de multa diária, nos termos do art. 11 da Lei nº 7.347/85.

Cite-se e Int.

São Paulo 23 de outubro de 2001.

Carla Abrantkoski Rister

Juíza Federal Substituta

Processo nº 2001.61.00.025946-3

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