Direito e globalização

Veja a íntegra da conferência de FHC na OAB sobre globalização

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29 de outubro de 2001, 14h35

O presidente Fernando Henrique Cardoso esteve na sede da OAB, em Brasília, para apresentar uma conferência sobre o “Brasil no Século XXI – O Direito na Era da Globalização”. Na semana passada, foi a primeira vez que FHC e o presidente da OAB, Rubens Approbato, se encontraram, em público, depois da confusão durante a cerimônia de posse do ministro Marco Aurélio de Mello no STF.

Na ocasião, Approbato criticou o uso indiscriminado de Medidas Provisórias. FHC teria ficado constrangido com as excessivas palmas dos advogados presentes na cerimônia que foram incitados por Approbato. Mas no seminário, FHC fez questão de lembrar que é o primeiro presidente a ir à Ordem para participar de um debate.

“Mostra, por um lado, que a OAB está discutindo temas de tal relevância que justifica inclui-los na agenda do presidente. Por outro lado, que o clima de debate democrático no Brasil está consolidado”, disse.

Veja a íntegra do seminário de FHC

“Quero manifestar a minha satisfação de comparecer à OAB uma vez mais. Tive o prazer de comparecer à transmissão de cargo quando o Dr. Reginaldo de Castro assumiu a Presidência desta entidade, mas soube há pouco que sou o primeiro presidente da República que vem à Ordem para participar de um debate. Isto é muito significativo. Mostra, por um lado, que a OAB está discutindo temas de tal relevância que justifica inclui-los na agenda do presidente. Por outro lado, que o clima de debate democrático no Brasil está consolidado. O presidente vem aqui como cidadão, com tranqüilidade.

Isto me permite afastar do texto escrito para falar mais à vontade, mais amplamente, sobre o tema proposto. Gostaria de dividir a minha exposição em dois momentos. No primeiro, algumas reflexões, apenas para reafirmar o que já foi dito pelo Dr. Rubens Approbato, que teve a gentileza de me citar, sobre a questão mais genérica da globalização e dos desafios que se colocam a todos os países – e ao nosso, em particular. Em um segundo momento, para que se possa vislumbrar os caminhos a serem trilhados para que possamos ter uma inserção soberana nesta nova ordem global que está se formando.

O tema globalização, embora tenha ganhado ímpeto recentemente, não é novo. O grande debate da expansão do capitalismo no século XIX, e mesmo antes, foi o da globalização. Todos aqueles que pensaram a formação do sistema capitalista – dos conservadores até (Karl) Marx – mencionavam a tendência à expansão de um mesmo sistema produtivo. E a tendência, portanto, de que pouco a pouco se consolidasse uma ordem mundial. Já no século XX, alguns pensadores bastante críticos – Rosa de Luxemburgo à frente – mostravam que existia, realmente, uma tendência incontrastável no sentido de que a homogeneização das forças produtivas seria impor uma ordem econômica só.

A discussão que se travou mais tarde seria saber que ordem seria essa – se capitalista ou socialista. Por uma razão óbvia: é que as transformações tecnológicas foram de tal monta que era fácil prever a expansão do sistema produtivo e, com ele, os valores entranhados.

O que houve, recentemente, foi uma imensa aceleração desse processo, também em função de transformações no modo de produzir: no plano dos transportes e das comunicações. O computador coroou esse processo. Em um primeiro momento, o que chamava mais a atenção era a homogeneização das formas de produção. Depois, veio a dispersão das formas de produção.

Nos anos 60, quando trabalhei nas Nações Unidas, na Comissão Econômica para a América Latina, escrevi um livro chamado “Dependência e Desenvolvimento da América Latina”, com um companheiro chileno chamado Enzo Faleto. Naquela época, não existia a expressão multinacional. Chamava-se trust (cartéis). A expressão multinacional foi criada no fim dos anos 60 e começo dos anos 70, e, para fazer referência a esse processo, eu usei nesse livro a expressão, hoje insuficiente, de internacionalização do mercado interno. Mas não era isso o que estava ocorrendo. Aliás, isso também, mas estava ocorrendo uma internacionalização da produção.

A produção começava a se deslocar dos centros para países da periferia. Cada vez mais surgiam investimentos na periferia. Isto, nos anos 70, gerou um debate imenso na América Latina. Muitos achavam que isto não iria acontecer porque haveria uma aliança entre o imperialismo – assim chamado – e o latifúndio, que impedia o desenvolvimento daqueles países. Eu me pus do outro lado: a transformação está ocorrendo; há investimentos, em grande quantidade, em alguns dos países chamados de periferia do sistema capitalista. O que estava acontecendo era um processo que chamei, na época, de desenvolvimento dependente associado. Ou seja, uma associação. As forças produtivas estavam se integrando com todas as transformações nas relações de produção, societárias e na política também, no modo como se concebe o papel do país no conjunto das nações. Mas ainda estávamos engatinhando nessa discussão.


Nos anos 70, voltou à moda, entre os economistas, os sociólogos, a economia internacional, a internacionalização. Nos anos 80, isso explodiu. Principalmente pelo fato de que, com o computador, com a informação em tempo real, importa pouco onde está o quartel-general da empresa. Importa menos ainda onde se produz – pode-se produzir dispersamente, pois existe uma integração através das técnicas modernas de comunicação e de transporte. Isto é a base da internacionalização. O que ninguém imaginava é que, ao invés de esse processo se dar através de uma integração apenas crescente das forças produtivas, ele se deu através de uma integração rapidíssima do capital financeiro.

O que hoje se chama vulgarmente globalização é, muito mais, um processo, já na sua etapa final, aonde chegou o sistema financeiro. Isso teve uma repercussão imensa no mundo. Mudou, inclusive, a capacidade dos Estados nacionais, mesmo os mais poderosos, de regularem os fluxos de capital. Os bancos centrais ficaram pequenos diante da velocidade com que os fluxos privados de transferência de capital ocorrem. É um outro mundo.

Se eu quisesse ser provocativo, diria: é uma época pós-imperialista, porque na época chamada imperialista, as economias, as empresas, o mercado enfim, precisavam do Estado para se imporem. Hoje, as grandes empresas querem tudo, menos o Estado – do ponto de vista econômico, pois do ponto de vista político, estamos vendo que é diferente. Portanto, estamos em outra época, e as pessoas, às vezes, custam a se adaptar. É uma época, se quiserem dar um nome, pós-imperialista, com mecanismos que não dependem do poder estatal para que tenham eficiência.

Quando terminou a Segunda Grande Guerra, na ordem que estava se constituindo – anos 40, portanto antes das grandes transformações às quais me referi – , as grandes nações se organizaram no sistema de Nações Unidas. Também ocorreu uma organização das instituições que hoje chamam globais, que deveriam processar as relações entre as economias. A fixação, na época, era comercial. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nasceram aí. Mas o Fundo Monetário, crescentemente, passou a ser uma instituição para cuidar das solvências dos países, porque no fluxo de comércio entre as nações alguns países podiam ficar sem condições de pagar aquilo que deviam. Então, o FMI era uma espécie de banco central, mas não com todas as funções. Os empréstimos do Fundo passaram a ser, grandemente, destinados a certificar se o país seria solvente ou não. O problema da solvência era fundamental para os países mais ricos. Era uma questão de ajustar os fluxos financeiros aos fluxos de comércio. Muito bem. O processo que está ocorrendo, agora, não é apenas de desajuste dos fluxos de comércio, mas de uma imensa transformação entre os fluxos financeiros. O próprio FMI ficou frágil – ao contrário do que muita gente pensa – diante do poder imenso criado por essas novas tecnologias do capital financeiro.

Lorde Keynes, que era uma pessoa de visão, propôs algo diferente. Quando as instituições de Brettan Woods foram criadas – o FMI para dar liquidez aos países insolventes e o Banco Mundial para criar condições ao desenvolvimento econômico, a partir da experiência do Plano Marshall – o Fundo Monetário devia ser um banco central dos bancos centrais. Ou seja, ele percebeu que existiria uma massa de recursos financeiros muito grande que podia provocar crises de liquidez, interrupção do fluxo de dinheiro. Isto não foi aceito, sob o argumento – que se repete a cada instante – de evitar o que os ingleses chamam de risco moral: se quem vai emprestar está seguro de que vai receber de volta, não presta muita atenção às condições de pagamento do devedor.

Logo, se o FMI fosse sempre resolver as questões, os bancos iriam emprestar muito “irresponsavelmente” aos países necessitados. Então, não era bom. Era melhor deixar que o mercado penalizasse aqueles que tivessem errado no seu cálculo de risco. Keynes não pensava isso naquele momento. Ele pensava que era necessário – embora não fosse favorável, obviamente, a empréstimos sem uma análise de risco – uma instituição mundial com grande liquidez para poder fazer face aos gargalos financeiros que fossem ocorrer depois. Mas não aconteceu isso.

O que nós vimos, sobretudo nessa última década de 90, de grande expansão econômica no mundo, de enorme mobilidade dos fluxos financeiros, foi a substituição progressiva do papel dos bancos oficiais – o BIRD, o BID, os grandes bancos multinacionais – , perdendo força relativamente aos empréstimos privados. Em seguida nós vimos crises por falta da capacidade de liquidez, e, de repente, o mercado seca e deixa de fazer empréstimos.

Como tudo isso ficou interligado, passou a haver o que se chama hoje de contágio, que não se entende muito bem o que seja, mas funciona assim: se a Argentina está com dificuldade, contagia o Brasil. Por quê, não sei; mas é assim. Passamos então a assistir a uma série de crises. Só no meu governo, nem me lembro quantas foram. Em 1995, era a crise do México; em 97, da Ásia; em 96 não houve, graças aos céus; em 98, da Rússia; em 99, a do Brasil; em seguida, a da Rússia de novo, a crise da Turquia, da Argentina… crise, crise, interrupção do fluxo… Ou seja, a globalização passa por um momento de extrema dificuldade porque não possui os mecanismos globais de governança. Estou me referindo, por enquanto, aos aspectos financeiros. Depois falaremos dos aspectos políticos.


Os mecanismos ficaram frágeis. É claro que o Fundo Monetário, nesses últimos anos, se atualizou. Hoje, o FMI dispõe – não sei exatamente – de cerca de 100 bilhões de dólares nos fundos especiais de saques, que é um mecanismo de pronto-atendimento. Com isso, tem um pouco mais de manobra. As pessoas que não conhecem os mecanismos do mundo ainda vêem o FMI como se ele fosse o responsável, o culpado. Não. Em certas circunstâncias, ou ele entra ou o país fica paralisado. O problema é saber em que condições entra. O próprio FMI foi mudando as suas políticas.

Aqui, tivemos um acordo com o fundo sem que obrigasse a qualquer recessão, e, pelo contrário, incluindo a necessidade de uma cláusula de proteção social. Houve mudanças que a consciência comum não notou, na prática de funcionamento dessas instituições. O fato é que, pouco a pouco, algum recurso adicional foi sendo dado ao Fundo Monetário. Mas é insuficiente ainda, porque ele não tem propriamente essa função, e, segundo dizem, a nova administração americana está mais preocupada com o risco moral do que com a capacidade de intervenção do FMI. Essa questão não está resolvida. Estamos passando por um momento de grande turbulência na área financeira.

Por outro lado, tampouco foram sendo resolvidas as questões relativas àquilo que é fundamental, e diz respeito às legitimidades das decisões. As Nações Unidas nasceram sob o signo de alguma restrição, porque a Assembléia-Geral tem todo o poder mas quem, na prática, exerce esse poder é o Conselho de Segurança, nos assuntos centrais que dizem respeito às relações dos países. E o Conselho de Segurança já nasceu com uma distinção: cinco países têm direito de veto e, os outros, que são eleitos por um período de dois anos, não têm esse direito. Ou seja, já se criou, ali, um embaraço. Simultaneamente, foi havendo a descolonização, a formação dos países com vocação de autonomia nacional. O número de países cresceu enormemente. A Assembléia-Geral das Nações Unidas, hoje, é composta por uma imensa massa de países. Obviamente, os mais poderosos não aceitam, na prática, o princípio de que cada um vale um mesmo. Dirão que perdem a capacidade de exercer um poderio correspondente à sua força efetiva na economia, no campo militar etc.

Progressivamente, até o Conselho de Segurança deixou de exercer as funções centrais das decisões no mundo. A Assembléia-Geral passou a se ocupar de muitos temas importantes – o papel da ONU é importante na difusão de uma cidadania global, na questão das mulheres, do meio ambiente, do trabalho etc – , mas, em termos políticos, de decisões efetivas no comando do mundo, ela passou a ter menos voz. E nós vimos a criação de mecanismos extra-institucionais. O G-7, o G-8. O que é isso? Um grupo de nações que se autoproclamam – e são – ricas e que se reúnem. Decidem o quê? Com que legitimidade? Essa legitimidade está sendo posta em dúvida agora. Eles nem podem mais se reunir, fazem reuniões em navios. Há protestos nas ruas, há um visível problema de legitimidade nesse tipo de organismo, independentemente dos desejos ou da boa-vontade que possa ter.

A economia se globalizou, o sistema financeiro galopou nesse processo, as instituições disponíveis para controlar os mecanismos em nível mundial, por mais poderoso que possa ser o FMI, tornaram-se frágeis diante da capacidade do sistema financeiro de manobrar, independente de qualquer decisão. Ao mesmo tempo, não houve um processo simultâneo, nem de formação de uma consciência planetária de Direito, de participação, e nem a formação de instituições que tivessem a capacidade e a legitimidade de atuar com precisão.

Este não é todo o panorama. Outros processos ocorreram ao mesmo tempo. Alguns são bem notáveis, como o desmantelamento do mundo soviético e, portanto, a diminuição da hipótese de que o sistema global pudesse ser outro que não o capitalista – na prática, quem propõe isso são grupos residuais. Mas houve outro processo, que foi o da integração regional. Essa integração, em certos aspectos, teve avanços até mesmo no plano político, como é o caso da Europa. A União Européia e seus Altos Comissários criaram um parlamento que dá legitimidade popular às decisões que são tomadas.

Com menos força, porque baseado em mecanismos meramente econômicos, comerciais, está o Nafta, reunindo Estados Unidos, Canadá e México. E nós, aqui, com o Mercosul, tentando também algum coisa, com aspiração de chegarmos à união aduaneira e, portanto, na direção da União Européia. A despeito de todos os percalços que estamos sofrendo, mas com uma proposta de integração um pouco mais ampla.

Também na África houve um processo dessa natureza; na Ásia, simultaneamente, começou a existir uma nova teia de países que passaram a atuar na política internacional como atores organizados. Isso está ocorrendo. Temos uma indefinição quanto à forma institucional do controle das decisões, temos a formação de grupos de países muito poderosos que se arrogam como diretório do mundo, e temos a tentativa de integração que tem êxito variável conforme a região a que estejamos nos referindo. E temos o fato de que um país – os Estados Unidos – , tem um tal predomínio cultural, econômico, tecnológico, financeiro e militar, que freqüentemente toma decisões sem realmente prestar contas até mesmo ao grupo dos mais ricos.


O desafio da globalização é muito maior do que se possa imaginar, porque estamos vivendo – ousaria dizer – um outro momento da humanidade. No Rio, fiz uma palestra sobre meio ambiente. E voltei ao tema que de vez em quando gosto de abordar, que é o tema da humanidade. Estamos começando a dar razão aos ideais kantianos, da paz universal, e aos ideais hegelianos, da existência de um sujeito geral da história, que é a humanidade, que sempre foram criticadas pelos que tinham uma visão mais progressista. Diziam que isso é uma espécie de falsidade, porque não existe humanidade, e sim o país, a raça.

Agora, nós estamos vendo que pelo fato de tantas transformações terem ocorrido, pelo fato de tomarmos consciência dos limites que a natureza impõe às transformações que o homem deseja acrescentar a ela, exigindo uma consciência ecológica que vai além do interesse regional, começa a existir uma consciência sobre algo que diz respeito a todos os homens. Quem sabe a paz comece a ser sentida, à la kant, como uma necessidade universal.

Estou aqui fazendo digressão, estamos no começo do século XXI. Se formos nessa direção, estaremos assistindo a um século que vai criar um novo ancoradouro da história – se der certo. Porém, ao mesmo tempo, estamos usando um instrumental de outra época: os Estados são nacionais, as instituições internacionais têm limitações que já mencionei; enfim, há um descompasso. É isso, quando me refiro ao déficit de governança: descompasso.

É normal, as sociedades não são harmônicas, são contraditórias, esses processos todos são cheios de conflitos. A idéia de paz universal, de humanidade, são valores muito mais do que práticas. Mas valores que podem orientar comportamentos. Este é o nosso desafio. Como vamos encarnar esses valores e preservar os interesses concretos diante de todas as abstrações às quais estou me referindo, mas que têm também raiz na vida? Existem condições para que se comece a mover o mundo nessa direção? Que caminhos trilhar? Que fazer diante de tudo isso? Como reagir, de forma crítica e inteligente, que separe os riscos e as oportunidades, ou, melhor, que crie oportunidades a despeito dos riscos? O caminho tradicional é inviável hoje. O caminho tradicional é “vamos nos fechar”, autarquia. Em certa época, esse foi o caminho quase que normal.

A Alemanha do século XIX cresceu prussianamente. O modelo de crescimento era fechar porque a Inglaterra estava na frente dela, era defensora do livre comércio. O List (Friedrich List), como economista, propôs o oposto: protege, pois a Inglaterra, mesmo a França, estavam com maior produtividade. O Brasil fez isso também, à nossa moda: substituição de importações e implantação de tarifas altas, porque se não fosse assim não teríamos como avançar. Só que o mundo foi mudando.

E, independentemente das vontades políticas – há quem pense que basta vontade política; ah, se fosse assim! – , as realidades existem. O que aconteceu é que, num dado momento, era impossível deixar de ver que existia uma intercomunicação, graças à Internet e outros mecanismos. Os Estados não têm poder para controlar o fluxo de informações, inclusive os financeiros, que não passam materialmente pelas fronteiras. Quem ficou com o passado ficou com uma idéia que perdeu vitalidade, foi sendo estiolada pela transformação que a vida impôs. Ao dizer isso não se pode imaginar que tenha desaparecido o interesse nacional. Pelo contrário. A questão é: como fazer prevalecer os interesses nacionais nas novas condições? Freqüentemente, as respostas são antigas, não fazem prevalecer nada. Em vez do interesse nacional, o que prevalece é o atraso nacional. E o mundo não permite mais isso.

Certa vez, um líder do Partido Comunista Italiano esteve aqui e deu uma entrevista, acho que para IstoÉ, na qual disse que o problema não é saber se haverá ou não internacionalização; é saber se eles nos irão internacionalizar ou nós vamos nos internacionalizar. A diferença pode parecer sutil, mas é fundamental. O processo está aí, e não há mais como fechar. Agora, como se faz esse processo? Quem comanda os momentos? De que maneira se estabelecem regras de legitimidade? Como fica o Direito? Como se negocia? Estas são as questões.

Um país como o nosso, só no fim dos anos 80 e início dos anos 90, promoveu uma abertura da economia, mas sem negociação. Essa falta de negociação até hoje é lamentada, com razão, por muitos setores industriais importantes. Isso não é aceitável. Tudo tem de ser feito, numa expressão vulgar, no dá-cá-toma-lá. Sobre a mesa, o que está posto hoje, no plano econômico, é saber até que ponto um país como o nosso vai se incorporar – a que blocos, a que custo e com que vantagens. Um, óbvio, é o Mercosul. Óbvio e, me parece ser de consciência comum, achar que vale a pena manter e aperfeiçoar o Mercosul.


Os espaços nacionais, por maiores que sejam – e o nosso é enorme – não são suficientes. O setor produtivo requer escalas muito grandes, requer mercados maiores. Há uma concentração também grande de capacitação, de investimento etc, e, nos parece, do ponto de vista de interesse nacional, vale a pena manter mecanismos que levem a uma associação crescente e, se possível, na minha perspectiva sul-americana, que fortaleçam a posição não só do Brasil, mas de toda a região. Mesmo quando isso implique em algumas negociações que aparentemente não são vantajosas.

Deixe-me explicar melhor isso. Vou explicar contando uma pequena história. Quando estive na Alemanha, depois de eleito, almocei com o então chanceler Helmut Khol. Ele me disse: presidente, nasci numas região perto de Bonn que foi ocupada, na guerra, pelos franceses. Tenho parentes que perderam a vida na guerra contra a França. Quando era jovem, houve a ocupação pelos aliados e a região onde eu morava era francesa. Quando cruzava na rua com um oficial, eu tinha que sair da calçada para evitar agressões. Fomos criados com esse sentimento anti-francê, até que percebi que isso ia dar em outra guerra e mais gente iria morrer.

Então aderi fortemente à idéia da União Européia, que na época ainda não tinha esse nome. É claro que a Alemanha tem população maior que a França, é mais rica, mais forte, e por isso mesmo temos que fazer mais concessões. Ele disse ainda: o senhor é presidente de um país que, na sua região, tem o mesmo papel que a Alemanha – eu não acredito nisso, não, sou mais igualitário. Ele disse: o senhor tem que fazer uma aliança com os seus vizinhos, com a Argentina, especialmente. E se tiver que fazer algum acordo, quem tem de entender a necessidade do acordo é o Brasil, que é mais forte. Bem, com exagero ou sem exagero, se nós olharmos os interesses nacionais, não apenas no curto prazo, é verdade que a manutenção de uma região na América do Sul integrada, de paz, de democracia, de progresso, é vital para o Brasil. Esta me parece ser a primeira e a mais fácil de nossas decisões: o fortalecimento de mecanismos integradores na nossa região.

Esses mecanismos partem de tratados. É preciso fortalecer as regras de Direito relativas a eles. Pessoalmente, acho que devíamos avançar mais – o momento é ruim para dizer isso, estamos aí com vários desacordos com nossos vizinhos – na direção como ocorreu na Europa, de criar mais mecanismos de solução de controvérsias. Isso tem a ver com a soberania, que tem de ser pensada nos termos atuais, e não nos termos do século XIX. É preciso um sentimento de compartilhar, porque os outros também têm os interesses nacionais. É preciso que hajam mecanismos de dirimir essas questões. Enfim, me parece que esse é o lado mais simples para nós, brasileiros.

Está claro que nesse processo de globalização temos uma oportunidade, e essa oportunidade é tão verdadeira que é só olhar os fluxos de investimentos que aconteceram na nossa região. Esses investimentos vieram maciçamente para o Brasil. Tivemos investimentos da ordem de 100 bilhões de dólares nos últimos cinco anos, sendo que no ano passado foram 30 bilhões. Investimentos produtivos, não é capital especulativo. Por que vêm para o Brasil? Porque aqui temos universidade, temos tecnologia, temos mercado.

Nesta ordem: universidade, tecnologia, mercado. E investimentos numa enorme concentração, até perigosa do ponto de vista dos interesses do conjunto da região, pois não podemos imaginar que nossos parceiros ficarão felizes se houver muita concentração no Brasil. Mas a solução para isso não pode ser imposta por regras que não tenham aceitação. A solução é pensar no espaço geográfico e nas cadeias produtivas nesse espaço geográfico – uma parte produzida aqui e outra acolá. Ou é isso ou teremos uma concentração tão grande de desenvolvimento científico, tecnológico e empresarial num dos países, que os outros não irão aceitar.

É preciso um esforço construído de distribuição do espaço geográfico. Refiro-me não só à Argentina, como também ao Paraguai, Bolívia, Uruguai, amanhã a Venezuela, que quer se aproximar. Nós temos que ter uma compreensão mais ampla do que é o interesse nacional. O interesse nacional não é, num dado momento, favorecer um setor produtivo brasileiro apenas e, amanhã, por causa desse setor, impedir um processo muito mais amplo, que interessa ao conjunto da região – sobretudo, a nós. Mas esse, digamos, é o lado mais simples.

Um segundo grau de facilidade para se aceitar a idéia integracionalista, é a relação entre o Mercosul, o Brasil e a União Européia. Percebe-se que há uma aceitação maior porque – imagina-se – há menos riscos naquilo que todos temem, que é a perda de soberania, da nossa capacidade própria de decidir. Nós imaginamos – não sei nem se com razão – que a Europa terá menos capacidade de limitar nossa ação do que o nosso parceiro maior do hemisfério.


Parece ser mais fácil, ideologicamente, falar de relação com a União Européia do que com a Alca ou com o Nafta. E, politicamente, sem duvida. Economicamente, é extremamente complicado. Complicado porque o que acontece no caso do Brasil, Argentina e Uruguai é que são altamente produtivos em matéria agrícola. Altamente produtivos. Para se ter uma idéia, a produção de grãos no Brasil cresceu, de 1990 até agora, de 57 milhões de toneladas para 98 milhões de toneladas, embora a área plantada tenha aumentado muito pouco. Ou seja, a produtividade cresceu violentamente. Hoje somos altamente competitivos. O preço do produto brasileiro, eu diria, é quase imbatível em matéria agrícola. E começa a ser em matéria pecuária. Este ano vamos exportar o dobro da Argentina, cerca de um bilhão de dólares em carnes.

Isto entra em choque com os interesses agrícolas e a política agrícola comum da Europa. É um ponto delicado, mas não é insuperável. O preço da política agrícola comum é pago na Europa basicamente pelos países não- agrícolas – Alemanha e Inglaterra. Quem se beneficia mais são a França, Itália e Espanha. Agora a União Européia discute a entrada da Polônia.

A Polônia é um país agrícola. Se estenderem a ela os mesmos benefícios dados aos outros países da Europa, os contribuintes inglês e alemão vão ter de pagar muito. Então, temos aliados objetivos para uma negociação que nos seja proveitosa, pois não podemos entrar nessa negociação com a União Européia sem colocar, com muita clareza, que precisamos, efetivamente, de acesso ao mercado agrícola. Porque nós exportamos para a Europa muito mais agricultura do que manufatura.

O Brasil hoje exporta 52% de manufatura. Nós não somos um país basicamente de exportação agrícola. Vinte e cinco por cento são de produtos semi-industrializados e, o resto, de commodities. Com a Europa, são basicamente commodities. Não só na Europa. É que nós competimos com a Europa em terceiros mercados, como o Oriente Médio. E os subsídios nos prejudicam na competição por esses mercados. Então, há uma oportunidade que nós temos de aproveitar. Como a União Européia nos apresentou uma proposta de negociação, vamos fazer uma contra-proposta em Montevidéu, creio. O Brasil é partidário de uma contra-proposta agressiva. Estamos dispostos a entrar numa negociação comercial com a Europa. Dispostos, sim, a fazer algumas concessões, desde que nos sejam feitas outras tantas.

O outro bloco de oportunidades e riscos é a questão da negociação no seio do hemisfério. Como todos sabem, a posição do Brasil foi apresentada no tempo do presidente Itamar (Franco) – a proposta de fazermos um Alca. Eu assisti a reunião em Miami, eu era o presidente eleito, mas confesso que não estava informado dos termos da negociação. Fiz um discurso, naquele momento, dizendo que achava difícil, no prazo que se queria, uma integração. De lá para cá, o Brasil tem procurado dizer: olha, nós queremos negociar, sim, ponto a ponto, dentro de certas condições, mas queremos também prazo, porque precisamos de mecanismos que permitam a nossa produção se adaptar ao regime de concorrência.

Essa negociação está em curso. Há vários grupos negociando, e é preciso que a sociedade brasileira participe mais ativamente dessa negociação. O Brasil vai jogar muito favoravelmente à negociação com a União Européia. Precisamos entender que o que está em curso é uma negociação comercial. Porque, no caso, não há integração de tarifa externa comum. É comércio. Só Montesquieu dizia que comércio era instrumento de civilidade. Que o comerciante faz contato, conversa, socializa, e que, portanto, é uma forma avançada de civilização que levava – digo eu, não ele – a democracia. Isso naquela época. Hoje, o comércio não tem nada de soft. Comércio é negociação dura. Vamos nos inspirar em Montesquieu, mas não vamos nos esquecer de outras armas menos sofisticadas da negociação comercial.

Fui à reunião hemisférica no Canadá. Estavam presentes o presidente Bush (George W.) e todos os demais presidentes da região. Eu disse quais eram as nossas condições, com muita tranqüilidade, na língua deles. Nós precisamos entrar numa negociação que seja, como costumamos dizer na linguagem diplomática, tudo de uma vez só. Não venham negociar o que interessa a vocês para depois negociarmos o que interessa a nós. Ou negociamos tudo, e só quando todos os pontos estiverem acordados, ou então não é negociação. E especifiquei: nosso problema não é de estarmos contra o livre mercado. Ao contrário. É que nós queremos que ele seja livre.

O que não queremos é um livre mercado sujeito a salvaguardas, que tenha um instituto, como há nos Estados Unidos, que nem do governo é, que se reúne e diz: os EUA estão importando calçados demais; logo, os calçados importados estão prejudicando nossa produção, e aí impõem salvaguardas. Não podemos aceitar anti-dumping indiscriminado. Quem é que decide dumping, é só um lado? Não podemos aceitar o que se chama pico tarifárico. Nos EUA, a média das tarifas é muito baixa, mas quando chega a tarifa do produto que nos interessa, vai lá para cima. A nossa média é relativamente elevada – de 12, 13% – mas nunca ultrapassa 35%. Lá, pode ultrapassar. Então, a negociação deve ser objetiva, e precisa de advogado nisso. Alguém precisa escrever o texto de modo que fique claro. Não é uma questão política, abstrata.


Esse mundo que está sendo recriado é cheio de regras, e se não tiver regras, pior para nós. Precisamos de um Estado de Direito Internacional. Um comércio internacional baseado em regras também livres. Isso está em elaboração, com maior consciência da nossa parte. Essa negociação está em curso, com relação à integração do mercado comum. Nós brasileiros não precisamos ficar com medo. Temos que ter é consciência, coragem e disposição. Somos produtivos em muitos setores. Ainda agora, esse instituto americano a que me referi está falando em propor salvaguardas contra o aço brasileiro. Por quê? Porque a nossa indústria de aço é extremamente produtiva, é competitiva. A nossa indústria têxtil é competitiva. Aviões, nem se fala. Nós temos de passar de uma mentalidade que pensa que a defesa do Brasil é olhar para trás, concentrar renda, para uma mentalidade mais aberta, em que temos presente que é preciso ter regras, é preciso lutar, defender o interesse nacional, mas com competição. Porque a competição é que permite baratear o produto, oferecer mais vantagens à população, e, por último, dar riqueza ao país.

O que não pode é uma negociação, em nome do livre comércio, que leva ao protecionismo por parte daqueles que são mais poderosos. Essa é a questão que está posta na mesa de negociação. Não é uma questão ideológica. Se não for assim, não se assina um acordo. Mas, se for um bom acordo, se faz. Quando estavam discutindo quando seria o acordo, eu declarei, claramente: um bom acordo é amanhã. Um mau acordo é nunca. O Brasil tem que ter consciência de sua própria força – não há de se exagerar nessa força – mas nós a temos. E a força principal, hoje em dia, é a do cérebro. Temos que ajustar nossos cérebros, precisamos de gente sintonizada com os ares do mundo e com competência para defender os nossos interesses. Esse processo de globalização, de oportunidades e riscos no plano comercial está posto.

No plano dos investimentos, vai depender, basicamente, do nosso desenvolvimento, das universidades, da tecnologia e da melhoria da distribuição de renda para que nosso mercado seja mais poderoso. Isto não se resolve com um botão. É um processo, que está avançando. A discussão se desse processo todo vai derivar uma estrangeirização do setor produtivo foi mal colocada. Uma revista publicou, recentemente, a relação das 50 maiores empresas. Entre as 50, 28 são nacionais, puramente nacionais. Não existe mais, em nenhum país, a possibilidade de imaginar que seja 100%. Não é verdade que o setor produtivo nacional foi arrasado, como alguns mais exagerados dizem. Nem é verdade que houve um sucateamento. Nesses dez anos, o que se exporta é manufatura. É produto sucateado? Não.

Houve um avanço enorme da nossa capacidade. Grandes setores de produção estão sendo reorganizados e estão em mãos nacionais: siderurgia, petroquímica, minério de ferro, papel e celulose etc. E, o quanto possível, são fundos de pensão que participam deles. É uma certa socialização do controle do sistema produtivo. Precisamos criar um mecanismo pelo qual as bolsas possam sobreviver melhor, não apenas diminuindo o CPMF, mas fazendo com que, efetivamente, as empresas brasileiras de segunda e terceira linhas lancem títulos nas bolsas. E as primeiras, onde o governo pode influenciar, através das privatizações, para que elas sejam feitas também na bolsa e que possam disseminar mais o capital, criando um mercado de capitais que dê sustentação a um crescimento endógeno mais forte.

As grandes corporações, essas vão se capitalizar nos Estados Unidos, ou, eventualmente, em Londres. No mundo todo é assim. Vão lançar por lá seus recibos de ações porque querem se capitalizar em dólares. Isto não é uma questão de decisão política, mas porque o mercado é assim. Mas o que é de decisão política, e fortalecimento do mercado de capital local, é a possibilidade de se fazer o que estamos fazendo agora. Espero aprovar, nesses dias, a nova Lei de Sociedades Anônimas para proteger o sócio minoritário, para que a pessoa compre uma ação e não seja lograda. Esses mecanismos levam muitos anos para votar – democracia é assim mesmo -, mas estamos fortalecendo-os para que possamos entrar com mais firmeza e menos temor nesse processo de globalização que aí está, minimizando os riscos e tirando mas vantagens das oportunidades.

Quero fazer mais um comentário. Acho que estamos, agora, num momento muito delicado por causa dos acontecimentos de 11 de setembro, que mostraram o que já se sabia: por mais forte que seja uma potência predominante, ela não pode mandar sozinha. Não funciona. Na prática, começa a surgir a percepção de que temos de criar uma ordem menos assimétrica no mundo – tanto econômica quanto politicamente. Esta assimetria é que leva às reações que estamos assistindo, contra tudo o que é reunião de instituições, até multilaterais. É o sentimento de não-participação. Ou se aumenta a participação nos foros decisórios, ou então esse processo vai ter travas. Agora mesmo, a maior potência, para se mover contra um desafio que é de todos – o terrorismo – buscou alianças. Espero que daí derive um aprendizado: temos que marchar rumo a uma outra visão de mundo. Vai levar um século, eu sei, mas é preciso marchar para uma globalização mais solidária.

Uma globalização que tem povos como de boa parte da África, não vai funcionar a longo prazo. A consciência universal não vai aceitar mais isso. É a revalorização da ética. Porque o mundo dispõe de meios materiais tão poderosos que eticamente é inaceitável uma desigualdade grande assim. Esse processo começa com mercado a impor regras, mas agora é o contrário: são os valores que contam. Sem valores não há cimento para sustentar uma ordem, por mais poderosa que ela seja materialmente, ou por mais forte que seja militarmente. Acho que é essa a missão do Brasil. Nosso país tem a possibilidade – não é o único, nem tem tanta força que possa pensar ser capaz de fazer isso ou aquilo – , pois somos um país plural, efetivamente, com muitas raças, muitas religiões, muitos imigrantes, realmente vocacionado para paz. A nossa voz no mundo tem de ser ética, para chamar a atenção para esses fatos.

Nós podemos fazer isso sem suspeição, pois praticamos aqui o convívio. Hoje mesmo, venho como cidadão falar com a OAB, que é freqüentemente crítica. Nós fazemos isso. E, se fazemos isso, temos força moral para falar lá fora a respeito desses temas sem hipocrisia, sem cinismo, sem passadismo, sem recusar o que é irrecusável, que são as oportunidades e os fatos da globalização. Mas também sem aceitar as desigualdades que ela gera, sem que se faça a ligação mecânica “quanto mais globalizado, mais pobre”. Não é verdade quando dizem isso.

O problema é que podia ser muito menos pobre. Aceitou-se uma situação em que as assimetrias foram sendo mantidas. É muito importante, em um seminário de Direito, o tema dos riscos e das oportunidades da globalização. Que se discuta isso com a consciência de que hoje temos um país que, sem muita pretensão, é capaz, pela força de seu povo, de tomar decisões próprias, que não o afaste da globalização, que o faça não um parceiro solidário da globalização assimétrica, mas um parceiro ativo para que essa globalização seja cada vez mais solidária. Muito obrigado.”

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