Comércio exterior

'Negar a globalização significa pagar preço alto da marginalidade'

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25 de outubro de 2001, 16h59

A atividade do Comércio além fronteiras (fossem elas quais fossem) parece ter tido início no Mediterrâneo em tempos misteriosamente incalculáveis. Na Idade do Bronze as velas quadradas desde o Mar Negro atingiram o Atlântico descendo pela orla africana em rumo austral no heroísmo dos périplos iniciais. Na Idade do Ferro o Comércio marcou coordenadas geográficas para a África do Norte e Europa do Sul.

As rotas marítimas eram então decorrência utilitária do Comércio, não ato de conquista guerreira. (A fase militar veio depois, para proteção contra concorrentes predadores.) Certo é que os povos antigos cujas civilizações evoluíram tinham comércio organizado, regular e expansionista. Além disso, o Comércio foi o grande agente catalítico da aculturação: os povos autárquicos mantêm a fisionomia hermética de suas características sociais e plásticas, ao passo que a interdependência pelo Comércio determina a modificação na endosmose dos contactos. E o esforço de venda faz nascer tipos e atividades que se irradiam no espaço.

Devemos ao comércio as primeiras rotas em terra, fluviais e marítimas, o mercado, o universalismo da moeda, o câmbio, o crédito, institutos de seguros, ligas e consulados. O Comércio é pai do Direito Internacional Público na medida em que começou por sistematizar defesas em terras estrangeiras da pessoa e dos bens do comerciante. Foi também o Comércio informador valioso para a antropogeografia. Sua importância sempre foi tal que, na Idade Média, o jus commercii garantia a chamada “trégua das feiras” para sustentar a dinâmica do comércio em tempos de guerra.

E, de uma forma ou de outra, ao Comércio sempre interessou a paz, não a guerra, sendo inegável que o comércio internacional sempre esteve entre as interações mais importantes no desenvolvimento das civilizações. E os historiadores estão próximos da unanimidade ao registrar que a civilização floresceu mais nas cidades onde poliglotas heterogêneos praticavam o comércio transnacional (haja vista Veneza).

A globalização dos meios de produção de riquezas e de seu comércio nada mais é que estágio avançado de processo desencadeado com a abertura marítima por Vasco da Gama e a descoberta da América por Colombo, sendo certo que a descoberta do Brasil em 1500 era fruto de empreendimento comercial sem precedentes na história de Portugal.

Naquele contexto, a companhia das Índias Ocidentais, formada em 1621, tinha como objetivo no Brasil unicamente a obtenção de lucro rápido (algo que talvez tenha deixado seqüelas na formação de nossos capitães de indústria…). No Brasil, a abertura formal para o comércio exterior teve dois momentos marcantes: em 1808, com a abertura dos portos às nações amigas, cujo resultado imediato foi um grande benefício comercial para a Inglaterra até a primeira guerra mundial, e no começo dos anos 90 quando a Administração federal de então repetiu o gesto de abertura comercial.

A globalização, ao contrário do que diz o lugar-comum, não é inevitável. Podem nações-estado não querer abraçá-la por várias razões, desde a incompreensão do fenômeno até o temor, quase sempre justificado, de que a uniformização de práticas comerciais acabem por fazer valores culturais sucumbir ao nivelamento banal, começando pelo próprio idioma e indo até hábitos alimentares.

Mas negar, pura e simplesmente, adesão a esse processo significa pagar o alto preço da marginalidade e da irrelevância na comunidade das nações. Enquanto a irrelevância traz consigo somente o desdouro em um quadro internacional, os povos à margem do jogo econômico podem querer encontrar conforto e compensação em extremismos religiosos e políticos, quando não envoltos em pura escalada do crime comum. Em suma, confrontar a globalização pode significar a substituição da postura de um Estado-Nação pela postura de mera Província tribal.

Ao processo de globalização correspondem esforços de integração comercial regional que já nos deu a Ata de Iguaçu, em 1985 (superando conceitos geopolíticos anacrônicos relacionados com um passado de conflagrações e imperialismo brasileiro) e o Tratado de Assunção, em 1991 (o combalido MERCOSUL, cujo desmoronamento seria interessante perguntarmos a quem interessa: cui prodest?), e que nos conduzem agora a um tratado de livre comércio das três Américas.

Essas integrações regionais partem de uma natural formação de áreas geo-econômicas bilaterais (de que são exemplo EUA-Canadá, Austrália-Nova Zelândia, Brasil-Argentina) que evoluem para uniões econômicas plurilaterais, mais abrangentes, tais como a UE, NAFTA, AFTA/APEC, o 1o Tratado de Montevideo (ALALC, 1960), o Pacto Andino (1969), o 2o Tratado de Montevideo (ALADI, 1980).

Há também diferentes dimensões de integração política e militar, geralmente não dissociadas da integração comercial, cabendo mencionar, entre nós, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR, 1947) que se erigiu em um dos sustentáculos da Organização dos Estados Americanos (OEA, 1948), aquele recentemente reanimado pelo Brasil para acudir aos EUA em face de ataque externo.

O Brasil entra no século novo na condição de partícipe do jogo econômico internacional e dos esforços de integração comercial e econômica que se desenvolvem. Não apenas isso. O ato recente da Administração federal que instalou a Câmara de Gestão do Comércio Exterior deve marcar um nítido ponto de inflexão, para melhor, na história do comércio exterior no Brasil. Há, assim, um contexto geral favorável, ainda que não perfeito, ao fomento das exportações brasileiras.

E assim chegou o Brasil ao dies horribilis.

Já se tornou tautológico dizer que o dia 11 de setembro marca o início de uma nova era não apenas para os EUA, mas também para o resto do mundo. É de se esperar que, lá, conceitos antes sagrados relacionados com direitos humanos e liberdade de expressão, e não apenas o discurso politicamente correto, comecem a ser repensados.

A novidade está não em que tudo vai mudar (posto que é da essência do processo histórico a permanente mutação), mas em mutações mais rápidas e não obedientes a comando lógico! Enquanto a vida civilizada, e em seu bojo o Comércio, pressupõem a indispensabilidade do primado da lei, é possível que as relações comerciais internacionais, entre outras, devam também ser repensadas para que possam se contrapor à barbárie.

Entretanto, a períodos de grande comoção, como o que vivemos nos dias que correm, sobrevêm reacomodações geológicas no cenário do comércio internacional. Não deve haver na história dos povos crise política ou militar de graves proporções, como a atual, que não tenha gerado oportunidades comerciais para países atentos às transformações em andamento e aptos a uma adaptação rápida aos novos desenhos das relações internacionais.

(A título de exemplo, menciono o movimento tendente a usar os direitos humanos e a proteção ambiental como vetores de countervailing powers, ao invés da imposição de sobretarifas: países que nos últimos cem anos poluíram o ar não tem escrúpulos agora de invocar a poluição alheia, ainda que notavelmente de menor expressão, para justificar o desrespeito de regras de comércio internacional; assim também a questão do trabalho escravo, inexistente no Brasil, ao qual já pretendem equiparar o trabalho remunerado em bases que não as dos países mais industrializados).

Nesse sentido, o Brasil poderia desfrutar de algumas vantagens sobre outros países, que são, entre outras, a localização geográfica distante do palco das turbulências mais angustiantes, aliada ao fato de ser a economia dominante na América do Sul, centro de distribuição lógico para exportadores e fabricantes com olhos no MERCOSUL, a longa costa atlântica, a uniformidade cultural, a unidade de idioma, a ausência de violência política e de movimentos separatistas, para não falar de um sem-número de indicadores de pujança econômica.

(Meros exemplos seriam o fato de o Brasil ser o primeiro destino de investimentos americanos na América Latina, ou seja, ocupa a quarta posição no mundo, logo após o Canadá; ou, 30% de todos os investimentos americanos na América Latina vêm para o Brasil; ou, há mais investimentos americanos no Brasil que no México, ou Suíça, ou Austrália, ou França, ou Alemanha; e por aí afora. Alguém ainda acrescentaria a previsão de que o Brasil estará entre as três maiores plataformas exportadoras do mundo nos primeiros quinze anos deste século).

Mas ao esforço de integração comercial externa deve corresponder esforço de integração econômica interna, como prioridade para assegurar a paz, posto que a ausência de segurança interna na maioria dos Estados desconcerta a imagem de país pacífico e ordeiro que desejamos vender a parceiros comerciais do exterior.

Dadas as incertezas do futuro da economia e as circunstâncias adversas da conjuntura brasileira, seria preciso que a classe política e a Sociedade civil se unissem em torno da ação social que a Administração federal vem desenvolvendo com os recursos de que dispõe. Por uma vez, seria preciso deixar de lado as questiúnculas de lana caprina para abraçar os projetos governamentais sérios com o que se lhes possa acrescer.

O programa geral de incentivo às exportações naturalmente pressupõe não apenas segurança interna mas também infra-estrutura, e aí está o maior porto marítimo na costa paulista como exemplo da obra hercúlea que ainda recai sobre os ombros da Administração pública e do Congresso.

Cabe, por fim, esperar do empresariado a busca da excelência, visão cosmopolita, descortino, desatamento da proteção governamental e algo como um reinventar-se em face dos novos tempos, lado a lado com a reafirmação dos valores que são subjacentes do comércio entre as nações.

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