Ordens descumpridas

Ministro defende Intervenção em Estados que descumprem ordens

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12 de outubro de 2001, 16h25

A intervenção na administração pública, ao longo do tempo, tem sido compreendida com maior ou menor amplitude, correspondendo à dinâmica política. Forte nos momentos de continuada hipertrofia do Estado. Apenas imperativa ou estratégica, de molde a atender os momentos políticos contrastantes à ordem pública ou no cenário estratégico do equilíbrio entre os Poderes do Estado, quando, por intromissão usurpadora ou omissão, exaurindo a tolerância, dão passos contra a legalidade.

À vista da nossa República Federativa, com Poderes independentes e harmônicos (arts. 1º e 2º, C.F.), um deles deixando de fazer ou exorbitando, enfraquece os pilares da União.

O recíproco respeito entre os Poderes constituídos é indeclinável múnus no Estado de direito. Andante, a incompletude na tarefa constitucional incumbida a um deles fere a autoridade, a autonomia e a responsabilidade dos outros.

Nessa quadra de registros introdutórios e gerais, no sítio constitucional do Poder Judiciário, a inércia do Poder Executivo (Federal e Estadual) revela agravamento preocupante, não somente nas críticas afrontosas, mas também no consciente desrespeito às ordens judiciais, desestabilizando as forças sociais que dão vida ao Estado de direito.

Em verdade, denota-se estranho comportamento: fugindo do controle jurisdicional, o administrador público cria pessoal critério de “oportunidade ou conveniência” para cumprir, ou não, a determinação judicial. Transforma o julgado em instrumento de atividade política contra os interesses do cidadão.

Nesse cenário conflitante e causador de sofrimento à cidadania, a predita continuada inércia do Poder Executivo, de modo ampliado e crescente nos Estados-membros, está incentivando o descrédito em relação ao Poder Judiciário, convertendo a crença em desrespeito à sua competência e atividade jurisdicional.

Para o controle de manifesto descumprimento, não se pode ceder, sob pena de incentivo à desnaturação do balizamento constitucional entregue ao Judiciário. Um dos instrumentos é a intervenção na administração do destinatário da ordem judicial descumprida (arts. 34, VI, e 35, IV, C.F.).

Sem dúvida, na viseira da autonomia constitucionalmente assegurada aos Estados-membros e aos Municípios (arts. 25 e 29, C.F.), atinge o espírito federativo. No entanto, a partir da realidade do menosprezo ao controle judicial, essa tendência só será interditada com o clímax de ato interventivo, gerando sadia revolução legal na provocadora omissão reinante. É forma de revitalizar o dever jurídico de cumprir ordem judicial, com absoluta intangibilidade do resguardo à cidadania.

Sim, o princípio é da não-intervenção (1) . Mas, como adiantado, o próprio sistema constitucional obriga a possibilidade da intervenção contra as reações ofensivas à repartição de competências ditadas na Carta Maior.

Proclama-se, assim, a intervenção como antídoto constitucional aos comportamentos desagregadores, quando necessária à harmonia da unidade federativa.

Na sua lida, comporta comemorar os seus pressupostos constitucionais, de pronto, ganhando vulto o artigo 34: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para… VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial” (destaquei).

Está inequívoco que, descumprida “ordem ou decisão judicial” editada por Juiz de Tribunal competente, falta atribuível à autoridade de outro Poder, é irrecusável a oportunidade para o decreto interventivo.

É dizer, basta o comprovado descumprimento para justificá-lo. Pois, pela senda da motivação dessas considerações – em face da abusiva omissão dos Governos estaduais -, é obrigação do Poder Executivo proporcionar os meios necessários à efetivação da ordem ou decisão judicial. Não se cuida de mera cooperação na execução das determinações. É dever do qual não pode furtar-se. Deveras, seja pelo tempo decorrido (inércia) ou esquivas, o Poder Judiciário fica impedido por contrastante deliberação do Poder Executivo, usurpando a decisão de cumprir ou quando cumpri-lo – se vier o cumprimento. Por óbvio, atividade que não lhe cabe.

Sobre essas linhas, resta conferir, na sede constitucional, se a decisão determinando a intervenção e a decorrente comunicação (art. 22, Lei nº 8.038/90) encerram a participação judicial. A respeito, ganha significativo espaço registrar que, para o processo de intervenção , conforme o Poder coacto, na pertença da provocação, a Constituição Federal distingue três hipóteses (art. 36): solicitação do Poder Legislativo; solicitação do Poder Executivo; e requisição do Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça ou Tribunal Superior Eleitoral).


À força aberta, emoldura-se que, em relação ao Poder Judiciário, não se trata de “solicitação” e sim de requisição, significando ordem, exigência. Tem raiz no latim (requisitionem). Juridicamente, não é sinônimo de pedir, requerer ou demandar. É determinação de fazer (cumprir) por exigência legal.

Assim sendo, e assim é, decidida a intervenção , quanto aos aspectos formal e material, ao reverso da “solicitação” pelos Poderes Executivo e Legislativo (art. 36, I, C.F.), a sua execução independe de apreciação legislativa (art. 3º, parágrafo 1º, C.F.). A competência do Presidente da República não é discricionária, e sim vinculada à precedente decisão judicial (requisição), suficiente para a sua execução.

Vinculação a quem ou a quê? Sem dúvida, ao Poder requisitante (ou seja, à sua decisão, formalmente e ao seu conteúdo). A propósito, calha à lembrança objetiva lição do preclaro Manoel Gonçalves Ferreira Filho, (2) textualmente: “… é uma competência vinculada, cabendo ao Presidente da República a mera formalização de uma decisão tomada por órgão judiciário, sempre que a intervenção se destinar a ‘prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária’ (art. 34, VI) ou a ‘assegurar o livre exercício do Judiciário estadual’ (art. 10, VI). Nestas hipóteses a decisão sobre a intervenção cabe ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça, ou ao Tribunal Superior Eleitoral, mediante requisição (art. 36, II)” – destaquei .

A importância dessa distinção também tem o conforto da autoridade de preciosa lição do saudoso jurista Pontes de Miranda, verbis: “Quem a requisita é o Poder judiciário e o Presidente da República a executa: não há, propriamente, decretação de intervenção, porque a intervenção, na espécie, resulta da própria necessidade de se assegurar a ordem pública, a justiça, a despeito de se dizer que a decretação compete ao Presidente da República. Contudo, no sistema da Constituição de 1946, o decreto é formalmente exigido, em quaisquer casos, com todas as conseqüências que daí emanam. Porque nem sempre se pode prever se vai ocorrer (a) ou se vai ocorrer (b).

A extensão da intervenção, em se tratando da execução de ordem e decisões judiciárias, é ditada pela natureza do próprio obstáculo que se lhe opôs. Se, por exemplo, é o Governador do Estado-membro quem movimenta a força pública para a impedir, a intervenção interromper-lhe-á o exercício do cargo e será promovida a sua responsabilidade.” (…) “Ordem, entenda-se: qualquer comandamento. Judiciária: proveniente da justiça, e não só dos juízes. Em vez de ordem ou decisão judicial, o texto pôs: ordem ou decisão judiciária. Se alguém, que é órgão da justiça, ainda que não seja juiz, pode dar ‘ordem’ e ‘decidir’, a sua ordem ou a sua decisão é inclusa num dos dois conceitos” (3)

Agrega-se que as pertinentes disposições da Constituição Federal de 1988, pelo seu conteúdo, não escapam das observações transcritas.

Segue-se pelo fio das anotações feitas e dos ensinamentos transcritos que a requisição judiciária independe de aprovação pelo Congresso (art. 49, IV, C.F.) e não se sujeita, para decretação executiva, à vontade política do Presidente da República. Explica-se que o decreto presidencial, salvante as hipóteses da solicitação anotada, quando se trata da citada requisição judicial, substancialmente, não decreta a intervenção – já decidida pelo Poder Judiciário.

O prefalado decreto é para a nomeação do interventor (deliberação de natureza política), ato de mera execução administrativa do julgado, entregue à atuação de quem deverá, à ordem constitucional, cumprir as atividades executivas apropriadas à intervenção. Em contrário pensar, a requisição judicial (constitutiva de especificada obrigação de fazer) ficaria submetida à extravagante instância de índole política revisional.

Logo se vê que o círculo competencial do Presidente da República é restrito e com atribuição condicionada a simples atos executivos. Pois a “competência consiste na esfera delimitada do poder que se outorga a um órgão ou entidade estatal, mediante a especificação de matérias sobre as quais se exerce o poder de governo” (4)

Bem se espraia que a idéia de submeter-se a requisição judicial à vontade política do Poder Executivo ou à prévia apreciação legislativa seria processo órfão de previsão autorizativa. Bateria de frente com o enraizado entendimento de que “a competência, no Direito Público, tem que ter apoio na lei ou na Constituição” (5).

Assim, para concluir-se no sentido adverso, seria necessário que a Constituição Federal concedesse ao Presidente da República competência para nortear a intervenção conforme os seus critérios de conveniência ou oportunidade.


Inexistente, filia-se a conclusão terminativa de que não pode decidir se cumpre ou não a requisição. Deve cumpri-la. À mão de reforçar, por fim, assinala-se: “Cada autoridade dispõe de uma capacidade de agir que provém de uma regra de direito. Não há, em matéria administrativa, competência geral ou universal, por mais ampla que seja, ela decorre de uma previsão legal” (6) . Alonga-se que não há competência constitucional implícita para o Presidente da República deixar de cumprir a multimencionada requisição, nem o Poder Judiciário pode delegá-la, porque é da sua exclusiva atribuição.

Insista-se, a respeito da jurisdição e competência num Estado de direito; admitir em contrário seria malferir o princípio da reserva legal. Daí, expressando a requisição o poder reservado para a satisfação de interesses públicos, ser inaceitável a contenção da sua imediata executividade à liberação por vontade de outro Poder. No caso, demais, sob o tirante de lacuna, seria descabido cogitar-se de compreensão construída analogicamente ou por extensão, certo que a Constituição fixa expressamente a competência para a requisição em comento.

Decorrentemente, não teria repercussão imaginar-se a competência concorrente. Por essa travessia de razões, ampliar a competência do Presidente da República ou do Poder Legislativo, seja na execução ou validação congressual, pareceria “mera ficção” (Kelsen), em desfavor do Poder Judiciário, intérprete e aplicador da ordem jurídica constituída. Mesmo porque, ainda que hiperbólico o Executivo ou ansioso o Legislativo por mais poder, não podem potestate própria invadir competência jurisdicional, no cenáculo do Estado de direito, vital para o equilíbrio dos Poderes e para a preservação das liberdades fundamentais do cidadão.

Rente à exposição, não constituiria demasia estabelecer prazo judicial para o cumprimento da requisição, evitando tardança em desprestígio do Judiciário e eliminando a possibilidade de critério político contemporizador. Até aqui, a demora tem levado à perda de objeto, desmerecendo o Poder coacto e criando uma tradição de que nada acontecerá ao coator. Com o prazo, o descumprimento ensejaria a visão do crime de responsabilidade, por si suficiente para desestimular o pouco caso à decisão judicial.

Semeadas as idéias e demonstrado que a requisição judicial tem contornos diferenciadores, clareia-se que não se confunde com a “solicitação”. Define-se como instrumento da ordem jurídica, editada no exercício de expresso poder e conformando às finalidades do Estado de direito, favorecendo a federação – forma de Estado. É, pois, de se esperar que não pareça decisão inócua.

O Poder Judiciário não pode abdicar de competência assegurada constitucionalmente, devendo agir com eficiência, como guardião dos superiores interesses coletivos. Afinal, não serve aos governantes, mas aos governados.

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