Metralhadora giratória

Ministro do STJ critica proliferação de leis no Brasil

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12 de outubro de 2001, 16h19

Ministro do STJ desde 1998, Gilson Dipp atua na Quinta Turma, especializada em Direito Penal. Por isso, acompanha com interesse a tramitação, no Congresso Nacional, da proposta de reforma do Código Penal e da legislação penal e processual-penal.

Nesta entrevista exclusiva à Revista Consultor Jurídico, o ministro fala de crime organizado, de corrupção, da Lei de Responsabilidade Fiscal, da corregedoria-geral da União e da proliferação desenfreada de leis.

Didático, quando necessário, sagaz nas críticas pertinentes que faz, Dipp considera que o brasileiro tem mania de leis. “Para resolver problemas de ocasião, o governo não hesita em propor e o Congresso Nacional em aprovar as leis oportunistas. Basta que a mídia apresente o problema, e, pronto, a lei está feita, como num passe de mágica”, ironiza.

Segundo Dipp, a falta de técnica na elaboração da lei, a começar pelo uso inadequado da linguagem, impõe ao intérprete e aos aplicadores da lei (Juízes e Ministério Público), a tarefa de compreender aquilo que nem o legislador parece ter entendido.

Veja a íntegra da entrevista

A proposta do novo Código Penal introduz a tipificação de um crime que tem sido preocupação do governo federal: o organizado, que muitas vezes tem o envolvimento de autoridades. Isso é um avanço?

Acredito que sim. Se a proposta passar, o Brasil será o primeiro país do mundo a ter essa tipificação de crime. A organização criminosa consiste no acerto prévio entre particulares, empreiteiros de obras públicas, empresas prestadoras de serviços ou fornecedores de bens e agentes públicos de todos os níveis e hierarquias – e insere-se na máquina estatal e até nas campanhas eleitorais, visando a posteriores benesses.

O crime de organização criminosa ocorre quando duas ou mais pessoas se unem para praticar infrações, neutralizando funcionários públicos e autoridades. A obra dos corruptos abrange os pagadores, os recebedores e os seus protetores. O dinheiro público desaparece nas obras, em terceirização, compras, contratos, financiamentos privilegiados, subsídios ilegais, sonegação, enfim, um emaranhado de importâncias movimentadas entre quem se beneficia e quem facilita.

Haverá algum agravante para desestimular a cooptação de funcionários públicos?

Um dos artigos prevê a punição específica de criminosos que se envolvam com policiais, promotores, juízes ou outros funcionários públicos, que tenham a obrigação de investigá-los.

Esse artigo pretende abraçar os crimes de organização como de bicheiros e traficantes, ou seja, a típica atividade que se chama mafiosa, quando um grupo se une para a prática do delito, mas a característica é o modo de agir desse grupo.

E quanto às penas?

Pela proposta, a pena será de 4 a 8 anos de reclusão, além dos crimes que eventualmente venham a ser praticados.

O combate à corrupção tem preocupado o mundo. Criminosos costumam se refugiar em países com leis mais brandas, o que fazer para evitar isso?

A idéia principal dos organismos internacionais é a criação de um programa comum de cooperação técnica nos planos civil, administrativo e penal para a harmonização das legislações nacionais, de modo a não haver discrepâncias no tratamento do crime de corrupção e a responsabilização criminal das pessoas jurídicas envolvidas em suborno de funcionários públicos.

A corrupção é um mal que está disseminado por todo o planeta e envolve cifras elevadas. De 10% a 15% do valor de todas as transações comerciais internacionais são gastos em subornos de funcionários públicos, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Por esse motivo, a questão tem sido discutida em reuniões internacionais. Em 1999, houve duas.

A primeira foi realizada em Washington D.C., sob a coordenação do então vice-presidente dos EUA Al Gore. A segunda, promovida pela ONU e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ocorreu em Paris. Reunidos na França, 250 peritos da ONU analisaram várias convenções internacionais e legislações nacionais sobre corrupção de funcionários público e apresentaram um dado impressionante.

O produto do crime de corrupção (dinheiro pago por particular a funcionário público) circula rapidamente: pode dar quatro voltas ao mundo em 24 horas, passando por diversos bancos e países, o que dificulta qualquer investigação. Com tanta rapidez, não há Justiça que possa competir…

Principalmente se precisar de uma carta rogatória… Não é, ministro?

É verdade. Quando bem sucedida, uma carta rogatória leva dois anos para ser cumprida. No âmbito do Mercosul, por exemplo, apenas 30% das rogatórias são cumpridas. As 70% restantes sequer recebem resposta.

A mesma solução poderá ser usada para combater a lavagem de dinheiro?

O encontro de Paris concluiu que, além de elaborar leis que criminalizem a corrupção, os países devem também ajustar a legislação para dificultar a lavagem de dinheiro.

Os peritos recomendaram ainda que os grandes centros financeiros internacionais adotem regras que permitam detectar operações decorrentes da corrupção.

E quanto à corrupção funcional?

As Nações Unidas sempre estiveram preocupadas com a corrupção funcional, especialmente em relação às transações comerciais internacionais, que enfraquecem a integridade e a credibilidade das administrações estatais, debilitando as políticas sociais e econômicas.

Diversos seminários internacionais promovidos pela ONU e pela OCDE concluíram que a corrupção e o suborno minam a credibilidade das instituições, pervertem o comércio e são prejudiciais ao desenvolvimento da economia.

Por isso, a corrupção funcional é um dos temas mais importantes na luta contra a delinqüência transnacional, estimando-se que os ganhos ilícitos correspondam a 5% do valor dos investimentos estrangeiros e das exportações em países minados pelo suborno. Nas transações internacionais, a importância anual pode chegar a US$ 80 bilhões.

E o que fazer, ministro, diante desta realidade?

Por isso é importante uma cooperação penal internacional. Já se percebe nitidamente essa cooperação na elaboração de leis visando a combater a criminalidade econômica, a criminalidade organizada e a corrupção. O fenômeno da criminalidade transnacional é uma constatação.

Crimes praticados por pessoas poderosas têm configuração muito mais complexa do que aqueles tipificados no Direito Penal clássico. A criminalidade decorrente da globalização é organizada. Além dos delitos serem praticados por pessoas poderosas, os efeitos produzidos são enormes, não só do ponto de vista econômico, mas também político e social. Gera, de regra, corrupção de servidores públicos e até mesmo de governantes.

E de que forma poderá haver essa cooperação penal internacional?

Não é muito fácil. Aí aparecem as dificuldades de harmonização das legislações nacionais, dificuldades até de índole constitucional, sobrevindo a necessidade de revisão dos critérios já existentes de cooperação internacional. É preciso desenvolver novas formas de cooperação internacional para enfrentar a recente criminalidade.

Um exemplo de ação conjunta é a criação do Tribunal Penal Internacional, que recebeu a adesão de numerosos Países, entre eles o Brasil, e a reformulação das questões relacionadas à extradição. O Senado Federal elaborou recentemente um Decreto Legislativo aprovando o texto da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, realizada em 1997, em Paris.

A Convenção trata exclusivamente da corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros. Tratando-se de corrupção de servidor público nacional, aplica-se, em princípio, ao corruptor a lei penal do país em que o fato foi cometido. Quanto ao funcionário, incide a norma penal do país de origem. A Convenção recomendou a punição de crimes correlatos à corrupção funcional, como o tráfico de influência.

Qual o impacto de medidas adotadas pelo governo federal como a criação da corregedoria-geral da União no combate à corrupção?

A criação da corregedoria-geral da União é uma daquelas medidas que, aparentemente, visam mais a solucionar um anseio da opinião pública, do que a questão atávica da corrupção. Pode, até, futuramente, vir a tornar-se um órgão eficiente no âmbito das investigações administrativas. Também é sintomático que o governo tenha enviado ao Congresso projeto visando a reintroduzir a Lei de Mordaça, só que na versão atual, valendo para todos os cidadãos.

Pelo texto, será considerado crime “dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe fato de que o sabe inocente”. Isso é um contra-senso jurídico. “Fato” é um conceito amplo demais para constar de uma lei e “saber inocente”, ou seja, o conhecimento prévio da inocência, é conceito subjetivo, como têm afirmado alguns juristas. Com isso, as pessoas de boa-fé não mais apresentarão denúncias de corrupção e irregularidades, já que será exigido do denunciante apresentar provas e não suspeitas, como seria o normal.

A Lei de Responsabilidade Fiscal tem sido criticada e considerada exagerada. O senhor concorda?

Há uma unanimidade no reconhecimento da necessidade de uma legislação rigorosa no controle dos gastos públicos. Na verdade, a lei contém muitas imperfeições, que deverão ser atenuadas, eliminadas, na medida em que venha a ser interpretada e aplicada. O certo é que, em meio a muitos protestos, a Lei de Responsabilidade Fiscal está em plena vigência e qualquer gestor público está sujeito a sanções administrativas – como suspensão de repasses voluntários de recursos – caso cometa desvios em relação à capacidade de endividamento anual.

Pela lei, prefeitos ou governadores não podem iniciar uma obra se não houver previsão orçamentária para ser concluída ainda no mandato. Também não podem se comprometer com gastos para seus sucessores cumprirem, mesmo em caso de reeleição. A lei estabeleceu os fatos passíveis de punição, não fixando, porém, as sanções.

Por isso, a Lei 10.028/2000 tipificou os crimes de responsabilidade fiscal e definiu as penas para os infratores – sanções penais e administrativas. Leis anteriores, entretanto, já previam sanções políticas (cassação de mandato), administrativas e civis (indenizações) e penais (penas privativas de liberdade e pecuniárias).

O Brasil tem mania de leis, que nem sempre saem do papel. Qual sua opinião sobre isso?

Não é de hoje que o Brasil padece de ilusão legiferante. Acredita-se que uma lei se torna eficaz assim que chega aos códigos e entra em vigor. O derrame de leis sem a adequada previsão de meios para fazer com que elas sejam cumpridas desmoraliza as regras de convivência civilizada.

Pior, serve para mascarar a inabilidade estatal em lidar com o aparato normativo existente ou mesmo para dissimular a incompetência do governo para resolver problemas sociais. Desde a Lei dos Crimes Hediondos, a fórmula se repete: um determinado ilícito chama a atenção da mídia e pronto! o governo envia Projeto de Lei ao Congresso para resolver o mal de ocasião.

Executivo e Legislativo mostram então, aprovada a lei, um suposto empenho no combate ao crime. O mesmo critério se repetiu em várias ocasiões recentes: é o caso dos crimes contra a saúde pública. Após a repercussão do primeiro acontecimento envolvendo laboratórios farmacêuticos, surgiu a lei que tornou a falsificação de medicamentos crime hediondo.

A falta de técnica na elaboração da lei, a começar pelo uso inadequado da linguagem, deixa ao intérprete e ao aplicador da lei (Juízes e Ministério Público), a tarefa de compreender aquilo que nem o legislador parece ter entendido. De outro lado, o cidadão pode até imaginar que a mania de fazer leis é manobra diversionista fazer parecer que o Estado toma providências. Será que toma?

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