Processo que segue

STF nega pedido de Jader para interromper inquérito

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1 de outubro de 2001, 23h25

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu nesta segunda-feira (1/10) liminar no Mandado de Segurança (MS 24.086) impetrado pelo senador Jader Barbalho (PMDB/PA) para interromper o processo investigatório que poderá desembocar na sua cassação.

Em seu despacho, o ministro repetiu fundamentos do pedido anterior, uma vez que o advogado de Jader, o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira usou as mesmas argumentações apresentadas no Mandado de Segurança (24.082) apresentado na semana passada.

Celso de Mello explicou que não havendo acusação e sem haver um processo para perda do mandato em curso, o senador não tem como invocar direito de defesa. A decisão de instaurar um procedimento investigatório, afirmou, é ato unilateral da Mesa do Senado, que tem ampla autonomia para isso.

O ministro ainda apontou no pedido o defeito de o Mandado de Segurança ter sido apresentado contra a Comissão de Inquérito do Conselho de Ética. Ainda que fosse cabível o pedido – o que não é o caso – o mesmo deveria ter sido apresentado contra a Mesa do Senado, que é quem tem os poderes que o senador desejava suspender.

O pedido foi ajuizado na última quinta-feira, menos de 24 horas depois de o ministro Celso de Mello ter indeferido seu pedido anterior, para suspender a votação do relatório final da Comissão de Inquérito do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado.

Neste segundo pedido, Jader Barbalho queria impedir a abertura do processo de cassação de seu mandato, por quebra de decoro parlamentar.

O senador Jader Barbalho é acusado de ter faltado com a verdade, ao negar qualquer vinculação com as aplicações realizadas com recursos desviados do Banpará, em pronunciamento no plenário do Senado, no último dia 11 de junho, durante o qual afirmou que “o relatório final do Banco Central do Brasil dedica um parágrafo inteiro a mim, excluindo-me e dizendo que, apesar do esmero, do interesse dos agentes de fiscalização, não chegou a nenhum indício ou prova que pudesse me indicar”.

Baseado no artigo 55, parágrafo 2º da Constituição Federal, Celso de Mello, onde se garante a plena defesa, mas dentro do processo de perda do mandato, Celso de Mello acrescentou em seu despacho um precedente que não fora mencionado na decisão anterior – o que envolveu o processo de cassação do deputado Jabes Rabelo.

Na ocasião, o Tribunal entendeu que não é cabível, nos casos de quebra de decoro, tolher os procedimentos do Legislativo, por conta do processo judicial – uma vez que a investigação faz parte das atribuições do Parlamento.

No pedido de concessão da liminar, Jader reclamou que a votação e aprovação do relatório da Comissão de Inquérito, propondo a instauração do processo de sua cassação, constituíram “ato ilegal” que fere seu “direito líquido e certo” de ter procedimento punitivo

instaurado contra si “apenas quando respeitadas a lei e as garantias individuais”.

O ministro Celso de Mello apontou ainda que “a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação da natureza interna corporis do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários do Poder Legislativo”.

Quanto ao indeferimento do pedido de liminar, Celso de Mello destacou que “recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de qualquer da Casas do Congresso Nacional – agindo nos estritos limites de sua competência institucional – realizar investigações ou promover inquéritos, com o objetivo de apurar fatos sujeitos a procedimentos incluídos em sua esfera de atribuições (precisamente como no caso), não obstante esses mesmos fatos constituírem objeto de inquéritos policiais ou de processos judiciais em curso.”

Leia a íntegra da decisão do ministro Celso de Mello no MANDADO DE SEGURANÇA 24.082-2

RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE: JÁDER FONTENELLE BARBALHO

ADVOGADOS: ANTÔNIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA E OUTROS IMPETRADA: COMISSÃO DE INQUÉRITO DO CONSELHO DE ÉTICA E DECORO

PARLAMENTAR DO SENADO FEDERAL

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado com a finalidade de obter, do Supremo Tribunal Federal, ordem que proíba, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal, de votar, na Sessão do próximo dia 27/9/2001, o Relatório emanado da Comissão de Inquérito, e que, subscrito por apenas dois (2) de seus membros (Senadores Romeu Tuma e Jefferson Peres), concluiu “pela admissibilidade da abertura de processo, por falta de decoro parlamentar”, contra o Senador Jáder Fontenelle Barbalho.

Cabe registrar que o Senador João Alberto, terceiro membro integrante da Comissão de Inquérito, órgão ora apontado como coator, proferiu voto em separado, no qual – depois de dissentir dos fundamentos e da conclusão constantes do Relatório em referência – propõe que o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal aguarde a conclusão dos procedimentos em curso perante o Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário do Estado do Pará, “sob pena de cometer injustiça, por ausência de provas, e de exorbitar de sua competência” (fls. 154).


O ora impetrante postula, ainda, que se determine, à Comissão de Inquérito, a elaboração de novo Relatório, “desta vez obedecendo as fronteiras legalmente impostas” (fls. 16).

O autor do presente writ constitucional requer a concessão de medida liminar, “para o fim exclusivo de impedir que o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal vote o relatório elaborado pela autoridade coatora” (fls. 16), até o final julgamento da ação mandamental.

Impõe-se observar, neste ponto, por necessário, que o exame das postulações deduzidas na presente sede mandamental justifica – na estrita perspectiva do princípio da separação de poderes – algumas reflexões prévias em torno das relevantíssimas questões pertinentes ao controle jurisdicional do poder político e às implicações jurídico-institucionais que necessariamente decorrem do exercício do judicial review.

Como sabemos, o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.

Na realidade, impõe-se, a todos os Poderes da República, o respeito incondicional aos valores que informam a declaração de direitos e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado.

Delineia-se, nesse contexto, a irrecusável importância jurídico-institucional do Poder Judiciário, investido do gravíssimo encargo de fazer prevalecer a autoridade da Constituição e de preservar a força e o império das leis, impedindo, desse modo, que se subvertam as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, em ordem a tornar essencialmente controláveis, por parte de juízes e Tribunais, os atos estatais que importem em transgressão a direitos, garantias e liberdades fundamentais, assegurados pela Carta da República.

Vê-se, daí, na perspectiva do caso ora em exame, que a intervenção do Poder Judiciário, nas hipóteses de suposta lesão a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, reveste-se de plena legitimidade constitucional, ainda que essa atuação institucional se projete na esfera orgânica do Poder Legislativo, como se registra naquelas situações em que se atribuem, à instância parlamentar, condutas tipificadoras de abuso de poder.

Isso significa, portanto – considerada a fórmula política do regime democrático – que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis.

Uma decisão judicial – que restaure a integridade da ordem jurídica e que torne efetivos os direitos assegurados pelas leis – não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou, em unânime decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal:

“O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

– A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

– O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.

O CONTROLE DO PODER CONSTITUI UMA EXIGÊNCIA DE ORDEM POLÍTICO-JURÍDICA ESSENCIAL AO REGIME DEMOCRÁTICO.

– O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional.


Com a finalidade de obstar que o exercício abusivo das prerrogativas estatais possa conduzir a práticas que transgridam o regime das liberdades públicas e que sufoquem, pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, atribuiu-se, ao Poder Judiciário, a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, inclusive aqueles praticados por Comissão Parlamentar de Inquérito, quando incidir em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais, no desempenho de sua competência investigatória.”

(RTJ 173/806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Em suma: a observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.

É que o poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.

Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.

O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais outorgadas pela ordem jurídica aos cidadãos em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República.

A separação de poderes – consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional – não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício do direito de protesto contra abusos que possam ser cometidos pelas instituições do Estado.

As razões ora expostas bem justificam a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal conhecer da presente ação mandamental, eis que a alegação de ofensa a princípios de índole constitucional – precisamente por introduzir, no exame da controvérsia, um dado de natureza jurídica – descaracteriza a existência de questão política, permitindo, desse modo, ante a inocorrência de ato interna corporis, o exercício, por esta Corte, de sua jurisdição constitucional.

Lapidar, sob tal aspecto, o magistério, erudito e irrepreensível, de PEDRO LESSA (“Do Poder Judiciário”, p. 65/66, 1915, Francisco Alves):

“Em substância: exercendo atribuições políticas, e tomando resoluções políticas, move-se o poder legislativo num vasto domínio, que tem como limites um círculo de extenso diâmetro, que é a Constituição Federal. Enquanto não transpõe essa periferia, o Congresso elabora medidas e normas, que escapam à competência do poder judiciário. Desde que ultrapassa a circunferência, os seus atos estão sujeitos ao julgamento do poder judiciário, que, declarando-os inaplicáveis por ofensivos a direitos, lhes tira toda a eficácia jurídica.”

É por essa razão que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação da natureza interna corporis do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários do Poder Legislativo.

Daí a precisa observação de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969”, tomo III/644, 3ª ed., 1987, Forense), cujo magistério – embora acentuando a incognoscibilidade judicial das questões políticas atinentes à oportunidade, conveniência, utilidade ou acerto do ato emanado do órgão estatal – registra advertência, que cumpre não ignorar:

“Sempre que se discute se é constitucional ou não, o ato do poder executivo, ou do poder judiciário, ou do poder legislativo, a questão judicial está formulada, o elemento político foi excedido, e caiu-se no terreno da questão jurídica.” (grifei)

Assentadas essas premissas, e considerando que o Senador Jáder Barbalho alega transgressão ao que dispõe o texto da Constituição da República, notadamente no que se refere à garantia da plenitude de defesa (que imporia, ao próprio Conselho de Ética, a inquirição do impetrante) e ao princípio da separação de poderes (que impediria a Comissão de Inquérito de examinar questões afetas ao Poder Judiciário), entendo – presente esse específico contexto – que se revela suscetível de conhecimento esta ação de mandado de segurança, eis que a invocação de tema constitucional faz instaurar, de modo pleno, a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, para apreciar a controvérsia exposta nesta sede processual.

Passo, desse modo, a apreciar o pedido de medida liminar.

Impende assinalar, neste ponto, que, sem a cumulativa configuração dos pressupostos necessários ao deferimento do provimento cautelar postulado (fumus boni juris e periculum in mora), torna-se inviável o exercício da faculdade a que alude o art. 7º, II, da Lei nº 1.533/51.


Como se sabe, o deferimento da medida liminar, que resulta do concreto exercício do poder cautelar geral outorgado aos juízes e Tribunais, somente se justifica em face de situações que se ajustem aos pressupostos referidos no art. 7º, II, da Lei nº 1.533/51: a existência de plausibilidade jurídica (fumus boni juris), de um lado, e a possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora), de outro.

Sem que concorram esses dois requisitos – que são necessários, essenciais e cumulativos -, não se legitima a concessão da medida liminar.

Orienta-se, nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“Mandado de segurança. Liminar. Embora esta medida tenha caráter cautelar, os motivos para a sua concessão estão especificados no art. 7º, II da Lei nº 1.533/51, a saber: a) relevância do fundamento da impetração; b) que do ato impugnado possa resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida a segurança.

Não concorrendo estes dois requisitos, deve ser denegada a liminar.”

(RTJ 112/140, Rel. Min. ALFREDO BUZAID – grifei)

Tenho para mim que a pretensão mandamental deduzida pelo impetrante não se reveste de plausibilidade jurídica.

Com efeito, não me parece, ainda que em sede de estrita delibação, que, no caso ora em exame, a Comissão de Inquérito tenha desrespeitado a garantia da plenitude de defesa, pois ainda não se instaurou o processo político-administrativo a que se refere o art. 55, § 2º, da Constituição.

É que a Comissão de Inquérito – que constitui a longa manus do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar – limitou-se a atuar numa fase estritamente pré-processual, realizando diligências investigatórias destinadas a comprovar, ainda que de modo sumário e preliminar, os fatos que poderão substanciar, em momento oportuno, o ulterior oferecimento de acusação formal contra o ora impetrante, por suposta prática de atos alegadamente incompatíveis com o decoro parlamentar.

Isso significa, portanto, que a fase ritual em que presentemente se acha o procedimento de apuração sumária e preliminar dos fatos não comporta a prática do contraditório, nem impõe a observância da garantia da plenitude de defesa, eis que a investigação promovida pela Comissão de Inquérito reveste-se, no presente momento, do caráter de unilateralidade, impregnada que se acha de inquisitividade, circunstância essa que torna insuscetível de invocação a cláusula da plenitude de defesa e do contraditório.

É por essa razão que JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I/157, item n. 82, 2ª ed., 1965, Forense), ao versar o tema da investigação policial, adverte que não tem pertinência, nessa fase procedimental, caracterizada pela nota da unilateralidade da apuração dos fatos, a invocação do princípio do contraditório, exatamente por ainda não haver sido instaurado o concernente processo:

“Um procedimento policial de investigação, com o contraditório, seria verdadeira aberração, pois inutilizaria todo esforço investigatório que a polícia deve realizar para a preparação da ação penal.”

Essa lição – considerada a similitude desses institutos (investigação policial e investigação parlamentar) – revela-se inteiramente aplicável à atividade igualmente investigatória desenvolvida pela Comissão de Inquérito, instituída pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal, pois, também no caso ora em exame, mostra-se prematura a pretendida observância da garantia do contraditório e da plenitude de defesa, eis que ainda não se instaurou, na forma do art. 15 da Resolução SF nº 20/93, e para os fins a que se refere o art. 55, § 2º, da Carta Política, o pertinente processo de perda do mandato, por suposta falta de decoro parlamentar.

Não foi por outro motivo que o Supremo Tribunal Federal, já sob a égide do novo ordenamento constitucional, pronunciou-se sobre a natureza do inquérito policial, enfatizando, quanto às implicações desse procedimento de investigação penal, não lhe ser aplicável a garantia do contraditório:

“O inquérito policial constitui mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, destinado a subsidiar a atuação do Ministério Público. Trata-se de peça informativa cujos elementos instrutórios – precipuamente destinados ao órgão da acusação pública – habilitá-lo-ão a instaurar a persecutio criminis in judicio.

……………………………………………..

– A investigação policial – que tem no inquérito o instrumento de sua concretização – não se processa, em função de sua própria natureza, sob o crivo do contraditório, eis que é somente em juízo que se torna plenamente exigível o dever de observância do postulado da bilateralidade e da instrução criminal contraditória.


A inaplicabilidade da garantia do contraditório ao procedimento de investigação policial tem sido reconhecida tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência dos Tribunais (RT 522/396), cujo magistério tem acentuado que a garantia da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo da persecução penal em juízo.”

(RTJ 143/306-307, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

O fato irrecusável é um só: a investigação preliminar e sumária, promovida pela Comissão de Inquérito (que atua como verdadeira fact-finding commission), encontra suporte no art. 17, § 2º, da Resolução SF nº 20/93, nela não havendo a figura do acusado, porque ainda inexistente qualquer acusação formal e também porque inocorrente a própria instauração do processo político-administrativo a que alude o art. 55, § 2º, da Carta Política, e cuja disciplina ritual observará o que dispõe o art. 15 da Resolução SF nº 20/93, oportunidade em que será, então, assegurada ampla defesa ao parlamentar, com todos os meios a ela inerentes, inclusive aquele referente á garantia do contraditório (CF, art. 55, § 2º).

É certo que o Estado, em tema de punições de índole disciplinar ou de caráter político-administrativo, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade censória, o postulado da plenitude de defesa, pois – cabe enfatizar -, o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer sanção punitiva imposta pelo Poder Público exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/68-69, 1990, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/176 e 180, 1989, Saraiva; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, “O Direito à Defesa na Constituição de 1988”, p. 71/73, item n. 17, 1991, Renovar; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “O Direito à Defesa na Constituição”, p. 47-49, 1994, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/268-269, 1989, Saraiva; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 401-402, 5ª ed., 1995, Atlas; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 290 e 293-294, 2ª ed., 1995, Malheiros, v.g.).

Daí a incensurável lição de HELY LOPES MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, p. 588, 17ª ed., 1992, Malheiros – grifei), para quem a cláusula constitucional pertinente à garantia de defesa impõe “não só a observância do rito adequado como a cientificação do processo ao interessado, a oportunidade para contestar a acusação, produzir prova de seu direito, acompanhar os atos da instrução e utilizar-se dos recursos cabíveis”, sob pena de nulidade do procedimento administrativo e da própria sanção punitiva que nele venha a ser eventualmente imposta (RDA 97/110 – RDA 114/142 – RDA 118/99).

Ocorre, no entanto, que essa diretriz constitucional (CF, art. 5, LV), assim interpretada pelo magistério da doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais, somente terá aplicação, se e quando se tratar de processo (administrativo ou judicial), não, porém, quando se cuidar, como no caso, de simples apuração sumária destinada a subsidiar futura acusação formal contra qualquer parlamentar, a quem vier a ser imputada a prática de ato incompatível com o decoro inerente às Casas legislativas.

Uma vez instaurado o processo de decretação de perda de mandato, por suposta infração ao que dispõe o art. 55, II, da Constituição, resultante de formal oferecimento da representação, por parte de que dispuser de legitimidade ativa para tanto (CF, art. 55, § 2º), aí, então, impor-se-á, por efeito do que determina a própria Carta Política (CF, art. 55, § 2º), a observância da garantia indisponível da plenitude de defesa.

Antes, porém, tal como precedentemente já enfatizado, não se revelará aplicável a garantia a que se refere o art. 55, § 2º da Constituição, pois, na fase pré-processual de apuração sumária e preliminar dos fatos e respectivos elementos probatórios, inexiste – considerado o contexto emergente da presente causa – qualquer possibilidade jurídica de imposição da sanção constitucional de perda do mandato, tal como se discutiu, amplamente, no Plenário desta Corte, quando do julgamento do MS 21.861-DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA.

De outro lado, cumpre enfatizar que a Comissão de Inquérito – considerada a extrema gravidade dos fatos submetidos à sua apuração (muito dos quais mantendo, entre si, possível vínculo objetivo de conexão) – dispõe de plena liberdade de atuação para investigar e para esclarecer os eventos que motivaram, no plano institucional, a reação do Senado da República.


O aprofundamento e a extensão das investigações promovidas pela Comissão de Inquérito visam a um só propósito: o de permitir a apuração da verdade real sobre os fatos que caracterizariam a alegada falta de decoro parlamentar.

A circunstância de esses mesmos episódios serem objeto de investigação penal ou de processo judicial não impede, nem inibe o Conselho de Ética do Senado Federal, seja diretamente, seja por intermédio de Comissão de Inquérito, de também apurar os fatos, na exata medida em que as informações deles decorrentes mostrarem-se relevantes para os fins a que alude o art. 55, II, da Constituição da República.

Cabe relembrar, neste ponto, que, recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de qualquer da Casas do Congresso Nacional – agindo nos estritos limites de sua competência institucional – realizar investigações ou promover inquéritos, com o objetivo de apurar fatos sujeitos a procedimentos incluídos em sua esfera de atribuições (precisamente como no caso), não obstante esses mesmos fatos constituírem objeto de inquéritos policiais ou de processos judiciais em curso:

“AUTONOMIA DA INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR.

– O inquérito parlamentar, realizado por qualquer CPI, qualifica-se como procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria, circunstância esta que permite à Comissão legislativa – sempre respeitados os limites inerentes à competência material do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição – promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir, eventualmente, sobre aspectos referentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a processos judiciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual. Doutrina. Precedente: MS 23.639-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno).”

(MS 23.652-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Esse tem sido o entendimento manifestado por eminentes autores (JOÃO DE OLIVEIRA FILHO, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, in Revista Forense, vol. 151/9-22, 13; ALCINO PINTO FALCÃO, “Comissões Parlamentares de Inquérito – Seus Poderes Limitados – Relações com a Justiça – Testemunhas”, in Revista Forense, vol. 185/397-399, item n. 4; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 34-35, 1999, Ícone; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Comissão Parlamentar de Inquérito (Atuação – Competência – Caráter investigatório)”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 6/171-185, 180; CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1946”, vol. 2/80, item n. 315, 5ª ed., 1954, Freitas Bastos):

“Em virtude da natureza da investigação parlamentar, nada impede, entre nós, que ela se realize paralelamente com o inquérito policial ou o processo judiciário.”

(NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do Inquérito Parlamentar”, p. 45/46, 1964, Fundação Getúlio Vargas – grifei)

Sendo assim, e tendo presentes as razões expostas, indefiro o pedido de medida liminar.

2. Requisitem-se informações ao órgão ora apontado como coator, encaminhando-se-lhe cópia da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 26 de setembro de 2001 (23:50h).

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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