As palavras e as coisas

Cláudio Tognolli lança 'Sociedade dos Chavões' na terça

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23 de novembro de 2001, 8h29

É no espaço entre o que se diz e o que se compreende que se localiza o poder de convencimento. A carga de idéias que se transmite em uma mensagem, raciocínio ou argumento é que define a sua compreensão.

O livro A Sociedade dos Chavões, do jornalista, músico e professor universitário Cláudio Júlio Tognolli não se trata de um manual de comunicação. Na verdade, vai além disso porque entra pelo campo da psicanálise e da lingüística. Traz entrevistas exclusivas feitas pelo jornalista com o célebre Timothy Leary (guru de grandes comunicadores, como o Beatle John Lennon) e com o cartunista Will Eisner (criador do Spirit).

O título da obra se justifica por um dicionário com três mil lugares-comuns usados na imprensa de todo o mundo. Os verbetes mostram como o pensamento e a maneira de se comunicar das pessoas estão condicionados a padrões de raciocínio que, se são claros, muitas vezes não têm nada a ver com o que se pretendeu expressar.

O livro não trata especificamente dos dramas de juízes e advogados. Mas acaba tratando desse buraco negro – a distância entre o que se quis dizer e o que se disse – onde são enterrados milhares de pedidos judiciais, rejeitados não por faltar a razão de pedir, mas por deficiência da mensagem.

Com 256 páginas e prefácio do notável Alberto Dines, “A Sociedade dos Chavões” é um lançamento da Editora Escrituras. A noite de autógrafos será na próxima terça-feira (27/11), a partir das 18h30, na livraria da Vila, à rua Fradique Coutinho, 951, em São Paulo.

Terceiro livro de Tognolli, o lançamento é uma adaptação da tese de mestrado defendida por ele na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 1991.

O autor mostra nesse trabalho como as palavras chave e clichês programam as pessoas – uma ciência que Tim Leary chamava de memética (do francês meme-chose). Além da entrevista feita com o avatar do subconsciente, antes de sua morte, em 1997, Tognolli publica no livro a vasta correspondência trocada entre os dois.

No prefácio, Alberto Dines, escreve que o livro “traz uma idéia que, feliz ou infelizmente, ainda não virou um lugar comum: ou o jornalismo é essencialmente crítico, ou não é jornalismo”.

Leia o prólogo de A Sociedade dos Chavões

Das Claves às Chaves

O presente estudo foi pensado anos a fio. Terá nascido não do axioma epistolar que divide o mundo entre a letra que mata e o espírito que vivifica, mas da música. O primeiro trabalho, no início dos anos 80, consistia em coletar os clichês de jazz, rock, country e de algumas estruturas da chamada música erudita.

Jorge Luis Borges havia chamado a atenção do autor quando da frase: “Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram à condição de música, que não é outra coisa senão forma” (in: A Muralha e os Livros, outras inquisições, 1950).

Nosso intuito heurístico, de descoberta, era pois mostrar que a música não seria tão pura assim, como vindica o escritor argentino. Procedi à coleta de clichês musicais. Devidamente gravados, escritos e catalogados, com a inestimável ajuda do professor Marcus Ricardo Rampazzo e, mais tarde, com os sábios conselhos do mestre Hans Joachimm Koellreutter.

Por volta de 1984 iniciamos a coleta dos chavões de imprensa, nos moldes do que havia sido feito com os clichês e patterns musicais. O autor chegou a compor uma lista de 3 mil chavões de revistas e jornais, cuja índole era algo parecida com aquela do dicionário das idéias fixas, colocado por Gustave Flaubert ao fim de bouvard et pécuchet. O que se tratava, digamos, de uma brincadeira estética para o autor, foi levado a sério pelos jornalistas Alberto Dines e Augusto Nunes, quando do curso Abril para jornalistas, em 1985. Somente a partir deles, e tão-somente, tive o empuxo de tornar aquilo um estudo.

Os trabalhos teriam sido impossíveis sem atenções devidamente chamadas na mídia, e me refiro precisamente à bem aventurança da jornalista Rosângela Petta. A partir de sua reportagem sobre os trabalhos (os nossos chavões, Jornal do Brasil, 9 de abril de 1987) pude acessar gente tão preciosa como Millôr Fernandes, que me franqueou acesso a Paulo Rónai e a Fernando Sabino, que por sua vez franqueou acesso ao seu belíssimo lugares-comuns.

Borgiano de carteirinha carimbada, o autor encontrou no bruxo da Calle Maipu postulados que, também, se lhe empuxaram a prosseguir o trabalho. A análise das Obras Completas de Jorge Luis Borges revelou, nesse primeiro momento da pesquisa, um viés de que a linguagem, da literatura em geral, e da imprensa em particular, estava se esgotando. Nesse mundo borgiano, o desapreço ao jornalismo é universal. “A imprensa, agora abolida, foi um dos piores males dos homens, já que tendia a multiplicar até a vertigem textos desnecessários” (In: Utopia de um homem que está cansado, O livro de Areia, 1975).

Ou, por outra: “Não me envergonho de ter querido ser jornalista, rotina que agora me parece trivial. Lembro ter ouvido Fernández Irala, meu colega, dizer que o jornalista escreve para o esquecimento e que seu desejo seria escrever para a memória e para o tempo”(In: O Congresso, O Livro de Areia, 1975). Ainda, na mesma obra, Borges orna o conto Avelino Arredondo com o extrato “ávido leitor de jornais, custou-lhe renunciar a esses museus de minúcias efêmeras”.

Seria, digamos, laxismo da pesquisa deixar passar que a palavra, enfim, entrava em crise até na literatura. Mais uma vez, o início da pesquisa recorreu ao axiomático habitat borgiano. “As palavras são símbolos que postulam uma memória compartilhada. A que agora quero historiar é a minha somente; os que a compartilharam morreram” (In: O Congresso, O livro de Areia, 1975). A mesma linhagem de escassez se repete noutro extrato, da mesma obra, no conto O espelho e a máscara: Em Borges, a nossa Sociedade dos Chavões já vem de há muito: “Atribuíste a cada vocábulo sua genuína acepção e a cada nome substantivo o epíteto que lhe deram os primeiros poetas. Não há em toda a loa uma única imagem que não tenham usado os clássicos”.

A análise do mundo borgiano, que presidiu os primeiros passos do presente estudo, quase nenhuma concessão faz à palavra. “Um fato qualquer, uma observação, uma despedida, um encontro, um desses curiosos arabescos em que se compraz o acaso, pode suscitar a emoção estética. A sorte do poeta é projetar essa emoção, que foi íntima, em uma fábula ou em uma cadência. A matéria de que dispõe, a linguagem, é, como afirma Stevenson, absurdamente inadequada” (In: Epílogo, História da Noite, 1977).

A seara de Borges, enviesada, postula a todo o momento um resgate da palavra, num processo, para ele, quase sem saída. “A palavra teria sido no princípio um símbolo mágico, que a usura do tempo desgastaria. A missão do poeta seria restituir à palavra, ao menos de modo parcial, sua primitiva e agora oculta virtude. Dois deveres teria tido todo o verso: comunicar um fato preciso e tocar-nos fisicamente, como a proximidade do mar” (In: Prólogo, A Rosa Profunda, 1975).

Em outros textos, Jorge Luis volta à carga sem delongas. “Escrever um poema é ensaiar uma espécie de magia menor. O instrumento dessa magia, a linguagem, é bastante misterioso. Nada sabemos de sua origem. Só sabemos que se ramifica em idiomas e que cada um deles consta de um indefinido e cambiante vocabulário e de um número indefinido de possibilidades sintáticas.” (In: Inscrição, Os Conjurados, 1985). Enfim, bem a seu estilo, Borges sugeria, e só isso, sobre o que seria a linguagem -uma impossibilidade, para ele, bem wittgensteiniana. “Erroneamente, supõe-se que a linguagem corresponde à realidade, a essa coisa tão misteriosa que chamamos realidade. A verdade é que a linguagem é outra coisa”. (In: A Poesia, Sete Noites, 1980).

Sobre o que fazer quanto a isso, o esgotamento da expressão, Borges é ainda mais misterioso. “O que fazer com as gastas palavras -com os Idola Fori de Francis Bacon – e com alguns artifícios retóricos que estão nos manuais? À primeira vista, nada ou muito pouco. No entanto, basta uma página do próprio Stevenson ou uma linha de Sêneca para demonstrar que a empresa nem sempre é impossível… Whitehead denunciou a falácia do dicionário perfeito: supor que para cada coisa existe uma palavra. Trabalham às cegas. O universo é fluído e cambiante; a linguagem é rígida”. (In: Epílogo, História da Noite, 1977). Ainda sobre a linguagem, refere: “A linguagem, observou Chesterton, não é um fato científico, e sim artístico; foi inventada por guerreiros e caçadores e é muito anterior à ciência”.

Mas, mesmo nesse corte, Borges conferia nada ou quase nada ao mundo inapreensível que a linguagem tenta capturar, isto é, simbolizar. “A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem nos dizer algo, ou algo nos disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, seja talvez o fato estético”. (In: A Muralha e os Livros, Outras Inquisições, 1950). Este é o impalpável universo borgiano.

De Borges, parti para a linguística, psicanálise e filosofia da linguagem. O mesmo espírito heurístico tentou se buscar em gente tão diferente como Wittgenstein, Freud, Lacan, Schaff, Lorenzer, e até em ícones da cultura pop, como Will Eisner e Timothy Leary. Nossa meta: o espírito de época visto através dos chavões, até mesmo no niilismo coquete (Susan Sontag) das mais novidadeiras formas de expressão da palavra. Em nenhum momento, há que se ressaltar, postula-se aqui a caça milenarista aos lugares-comuns. Escrever sem eles, ou tentar escrever, incide naquilo que José Guilherme Merquior apontava como efeito iatrogênico: do mal causado pelo próprio tratamento. Trata-se aqui, portanto, de um mapeamento, não de uma assepsia.

O trabalho, portanto, pretendeu ser um pequeno tratado sobre o encolhimento da linguagem, na sociedade em que o e-mail é a mensagem. Ou, como referiu George Steiner: “O escritor de hoje tende a usar muito menos palavras, e muito mais simples, tanto porque a cultura de massa diluiu o conceito de instrução como porque diminuiu extraordinariamente o conjunto de realidades das quais as palavras podem dar conta de modo necessário e suficiente”.

Este trabalho teria sido impossível sem a ajuda de minha orientadora Maria Aparecida Baccega (ECA-USP), e sobretudo da paciência do psiquiatra Phd Timothy Leary -na época em que não havia o e mail, Leary fazia questão de me enviar pelo correio postal (“snail mail”, correio lesma, como dizia) longas e laboriosas missivas, respondendo às minhas indagações.

Paciência igual tiveram meus antigos chefes, Suzana Camargo, Bizuca, Julio César de Barros, Julio Bartolo e José Carlos Ruy, ao permitir estudos em meio à carga horária do Departamento de Documentação da Editora Abril, o Dedoc. Devo ao jornalista Elio Gaspari a oportunidade de ter podido, eu mesmo, construir os meus clichês, pela primeira vez, trabalhando numa de redação.

O presente trabalho também não existiria caso não tivesse tido a oportunidade de minha correspondência em Miami, pela Folha de S. Paulo, onde, graças à boa vontade dos jornalistas Otavio Frias Filho, Leão Serva e Marcelo Beraba, tive tempo para pensar os finalmentes de tudo.

O livro é dedicado a Ogladys Volpato Tognolli, Luciana Nogueira Camargo, Claudio Picazio, Dora Tognolli Guglielme, Alberto Dines, Álvaro Alves de Faria Sérgio de Souza.

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